O gatinho

Jorge chegara em casa com muito mau humor, depois de um dia duro de trabalho no mercado que gerencia. Estava cansado, queria preparar sua refeição e dormir. Após estacionar a motocicleta na calçada da pequena residência em que vivia sozinho, não era casado, apesar dos 38 anos, teve dificuldade para localizar a chave da porta. As luzes dos postes eram fracas e não ajudavam. Foi quando ouviu um miado penoso. Olhou para a sua esquerda, ainda com a cabeça baixa, e viu um filhote de gato negro, muito magro, com rarefação de pelos, aparentando fome e necessidade de cuidados veterinários. O filhote continuou miando.

- Diabo de gato! – Bradou Jorge.

Não conseguia localizar as chaves. O gato continuava a miar cada vez mais alto.

- Cala a boca! – gritou.

Ao que o gato respondeu miando mais. Precisava ser alimentado. Com temperamento nas alturas, Jorge foi até o gato, que não se assustou ante a presença ameaçadora do humano, e o chutou. O filhote caiu em meio ao mato elevado do terreno baldio que ficava ao lado da casa do agressor. Não esboçando mais nenhum som. Aparentava estar morto.

- Bem feito, foi me provocar!

Minutos depois achou a chave e finalmente entrou em casa, praguejando e xingando a tudo e a todos pela vida difícil que tinha.

No dia seguinte, quando mais uma vez chegava em casa, ouviu o mesmo miado penoso. Olhou para o lado e lá estava o gato que chutara na noite anterior. Miando, no mesmo lugar, pedindo para ser alimentado. Jorge ficou admirado por ele ainda estar vivo depois do golpe violento. Não achava as chaves e se irritava com o gato. Correu em direção a ele tentando assustá-lo, como o animal não esboçava reação, chutou-o novamente. Entrou para a casa.

Na terceira noite, a cena se repetia. Jorge não aguentava mais o felino, então olhou para os lados e achou um pedaço de madeira bem cumprido. Pegou-o e foi em direção ao filhote indefeso. Deu-lhe várias pancadas, até que ele, depois de muito sangrar, morreu. Ou pelo menos foi o que pareceu.

Ao entrar em casa e passar pela primeira salinha e pelo curto corredor, ligou a lâmpada da sala posterior, e quase morre de susto ao ver um senhor sentado em uma das cadeiras da mesa de jantar. Ele estava virado para a entrada do corredor, como se Jorge. Calçava sapatos sociais brancos, calça de linho cinza e camisa social branca. Os cabelos eram grisalhos e possuía algumas rugas. Tinha uma boa aparência.

- Você é aquilo a quem nós chamamos de “caso perdido”. – Falou o estranho.

- Quem é você e como entrou em minha casa? – Berrou Jorge.

- Isso, é uma coisa que pouco importa, só importa o que acontecerá a partir de agora.

- Eu vou chamar a polícia – Falou Jorge enquanto atabalhoadamente tirava o celular do bolso da calça jeans surrada que vestia.

- Não dará tempo. – Disse o homem – Mas preciso lhe explicar algo: Deus regula todos os mundos, o dos vivos e o dos mortos e, por vezes, nós demônios, temos permissão para agir ante seres iguais a você. – O estanho falava isso com um sorriso no rosto.

Jorge não disse mais nada, apenas olhava de olhos arregalados aquele louco, enquanto aguardava a Polícia Militar atender a sua ligação. Como demoravam.

- Aquele pobre gato que você golpeou era a sua oportunidade de redenção. Era a sua última oportunidade. Tantas foram as maldades feitas por você contra os outros, nem os inocentes perdoou. Lembra dos gatos que envenenou quando era criança. Pois é, a conta também está sendo cobrada agora. Pode pegá-lo – finalizou o estranho olhando para o lado, como houvesse alguém atrás dele.

Debaixo da mesa, passando por trás da cadeira do estranho, surgiu o mesmo gatinho que Jorge pensara que matara. O animalzinho sentou sobre as duas patas traseiras e enrolou a pequena cauda no corpo. Depois olhou por alguns segundos o homem malvado à sua frente. Jorge estava atônito. O gato recomeçou a caminhar, não miava mais de jeito nenhum, pois sua fome seria saciada logo. A cada passo que ele dava, o seu tamanho aumentava, bem como os pelos, dentes.

Jorge virou-se para correr, mas antes que desse dois passos, sentiu o peso de uma criatura enorme em suas costas. Dentes gigantescos cravavam em seu pescoço, esguichando sangue, abafando o seu grito. O pequeno gato faminto havia se transformado em um grande tigre negro, espécie que, obviamente, não existe. Não nesse mundo. O animal se banqueteou, deixando apenas as sobras que a polícia periciaria dias depois.

A tudo o homem, ou melhor, o demônio, observava. Pensava: “sempre é bom aproveitar as oportunidades para se redimir”.

.....

Na noite seguinte, em outra cidade, um outro homem chamado Raimundo chegava em casa e quando foi abrir a porta, deparou-se com um pequeno gato negro miando de fome.

Aermo Wolf
Enviado por Aermo Wolf em 07/03/2019
Código do texto: T6592053
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