Aquele cara que mora no meu bairro

Meu nome é Manoel. Quando eu tinha 5 anos de idade, eu vi um rapaz aparentando seus 20 e poucos anos com uma espécie de curativo no olho esquerdo. Eu sabia que ele morava perto da minha casa, só não sabia onde exatamente. O tempo passou e de vez em quando eu via aquele mesmo sujeito passando pela rua, sempre com o mesmo curativo no olho. No decorrer da minha juventude, isso nunca me incomodou. Até que quando eu fiz meus 37 anos de idade, um detalhe me intrigou: Aquele cara parecia simplesmente não envelhecer! Trinta e dois anos depois de eu tê-lo visto andando pelas ruas do bairro onde morei a minha infância inteira, aquele cara com o curativo no olho esquerdo continuava a aparentar ter seus 20 e poucos anos de idade. E outra: Que ferimento era aquele no olho dele que em 32 anos não sarou? Depois que eu pensei nisso, nunca mais o vi.

Mais três anos se passaram e eu estava comemorando o meu aniversário de 40 anos em uma churrascaria, onde convidei alguns amigos de infância. De repente eu vi ele! Era um dos garçons do lugar! E sempre demonstrando silenciosamente a juventude de um rapaz de 20 anos que na minha cabeça seria impossível para ele! Mesmo se ele tivesse 18 anos de idade quando eu tinha 5, agora 35 nos depois, ele teria que ter 53! Disfarçadamente, comi meu churrasco, conversei com os amigos que convidei para comemorar comigo, mas sem perder o sujeito de vista. No fim da festa, fiquei dentro do meu carro, esperando o sujeito sair para eu discretamente segui-lo. Tranquei o carro e fechei bem os vidros. Como os vidros do meu carro são fumê, não tinha como ele saber que estaria sendo seguido. Estranhamente, eu dormi que nem percebi. Não sei se foi o efeito da cerveja ou se eu estava cansado e nem me dei conta deste detalhe. Só sei que acordei com o celular tocando a musica que coloquei como despertador e que me acordava todos os dias pra eu ir trabalhar. Parei a música do celular, liguei o carro e fui pra casa. Como eu sempre fazia ao chegar em casa, olhei a caixa de correio. Um pequeno envelope estava junto com algumas costumeiras propagandas e a conta de luz. Peguei tudo e levei para o meu quarto. Joguei as propagandas fora, olhei a conta de luz: O mesmo valor de sempre. Abri o pequeno envelope que não tinha remetente, olhei um pequeno papel escrito em letras de computador bem grandes:

[ A curiosidade matou o gato.]

Aí eu pensei: “Será que eu dormi no carro naturalmente? Ou fui induzido a dormir? Talvez por alguma coisa colocada na minha comida ou na minha bebida naquele restaurante?” Fiz a minha higiene matinal e fui trabalhar. Porém, fiquei com aquilo na cabeça o dia todo.

Quando cheguei em casa, meu gato Josias miava desesperado. Algum covarde furou o olhinho esquerdo dele. O bichinho estava desesperado de dor! Peguei o bichano e fui correndo para o veterinário. O veterinário fez um curativo no olho do meu gato e deu-lhe um analgésico. O Doutor Marcos deixou bem claro, que seria impossível recuperar a visão do olho esquerdo do meu bichinho e por isso, ele estava cego de um olho. Fiquei arrasado ao ouvir aquilo, pois aquele gato era quase um filho pra mim. Eu pensei: “Foi aquele desgraçado! Se vingou em cima do meu gato por eu ter cogitado em segui-lo naquele dia!”

No dia seguinte, eu estava tão louco de raiva, que me esqueci de ir trabalhar. Eu estava tão focado na minha vingança, que só me lembrei que tenho um emprego depois que cheguei na padaria pra tomar o meu café e analisar o que fazer. Enquanto aquele café quentinho e gostoso descia quente na minha garganta, surgiu uma idéia. Olhei no celular o horário de abertura da churrascaria. Dezenove horas! Saí do trabalho mais cedo, dizendo ao chefe que era um cão urgente. Ele compreendeu e me liberou. Fiquei dentro do carro do outro lado da calçada esperando desde as 18 horas o sujeito chegar. Nada! Esperei até meia noite (a hora de fechamento da churrascaria) e nada do sujeito aparecer. Saí do carro e ao ver um faxineiro lavando a fachada da churrascaria, perguntei:

- Me diz uma coisa, quem é aquele garçom que usa um curativo no olho esquerdo?

- Não tem ninguém que usa curativo no olho aqui.

- Como não? Ele estava trabalhando de garçom ontem aqui.

O rapaz coçou a cabeça e disse:

- Muitos garçons extras são colocados em caráter emergencial. Talvez o Senhor esteja se referindo a um deles. Mas a gente não sabe direito quem é quem. O dono contrata temporariamente qualquer pessoa, então pode ser qualquer pessoa, entende?

- Entendo...

Voltei frustrado e com mais ódio ainda. Quando saí com o carro, vi ao longe o faxineiro pegar o celular e ligar pra alguém. Cheguei em casa e senti um forte cheiro de sangue. Acendi a luz da sala e estava escrito bem grande na parede em letras de sangue:

[ Eu avisei! ]

Fui à cozinha e vi um as patas e o tórax de um bicho cozinhando em fogo bem baixo na minha panela grande, uma que só uso em dias de festa pra fazer caldo verde ou cachorro quente. Havia rastros de sangue pela casa toda. Fui na área de serviço e constatei o que eu não gostaria de constatar: O couro do meu gato estava pendurado no varal, o que denotava que o que estava cozinhando em fogo baixo na minha panela eram partes do meu gato. Comecei a chorar quando abri a lixeira de onde vinha um cheiro forte e vi os órgãos internos do meu bichinho jogados no meio do lixo como se fossem as tripas de uma galinha. Voltei à cozinha, desliguei o fogo e vi na pia a cabeça do gato ao lado do cutelo que a cortou ainda muito sujo do sangue dele. O MEU cutelo, usado pra degolar o MEU gato, o meu filho de quatro patas. Aquilo me chocou e me traumatizou. Passei a madrugada inteira chorando. Não consegui dormir.

Na manhã seguinte, fui à delegacia, prestei queixa e quando voltei com os policiais pra averiguarem a situação, a minha casa estava limpa, sem nenhum rastro de sangue. Minha panela grande estava lavada e guardada. Meu cutelo estava guardado no faqueiro. A lixeira da área de serviço estava vazia. Não havia rastro de nada. Nem a mensagem, antes escrita com o sangue do meu gato, na parede. Fui chamado de volta à delegacia, onde o delegado, muito sério e muito ríspido me disse em tom de voz baixo, porém rascante e intimidador:

- O Senhor acha que isso aqui é brincadeira?

- Não Senhor, Doutor! Eu to falando a verdade. Estava tudo li do jeito que eu falei, até a cabeça do meu gato degolado na pia! Quem matou o meu gato, aproveitou esse tempo em que eu saí de casa pra reorganizar e limpar tudo!

- Mas a tua casa é fácil assim de entrar? O Senhor não costuma trancar a porta quando sai?

- Tranco, todas as portas.

- E como o Senhor então me explica o tal sujeito caolho assassino de gatos ter entrado duas vezes na tua casa com a maior facilidade? Não foi encontrada nenhuma marca de arrombamento. Essa estória está muito mal contada!

Quase chorando de raiva por não ter como provar a minha denuncia, eu retruquei:

- Então tá, Doutor Delegado, eu mesmo vou investigar e trazer provas de que o meu gato foi assassinado por aquele cara, seja lá quem ou o que ele for.

Saí da delegacia muito puto, cheguei ao trabalho atrasado outra vez. Eu trabalho como gerente em uma loja de artigos diversos. Como o meu chefe é muito meu amigo e já sabia da perda do meu bichinho, ele simplesmente aconselhou:

- Eu vou perdoar essas duas vezes, mas evita chegar atrasado, porque se eu ficar perdoando sempre, dá “ruim” pra mim. Estamos combinados?

- Estamos chefe.

Naquela noite, quando cheguei em casa, minha vizinha me chamou:

- Seu Manoel!

- Diga, Dona Maristela!

- Olha quem resolveu passar a noite aqui em casa!

Fiquei branco de terror ao ver no colo da minha vizinha o meu gato Josias vivo e com os dois olhos bons. Cheguei perto dela, que sorria acariciando o tórax dele. Cheguei perto com muito medo e o peguei no colo das mãos carinhosas dela. Dona Maristela era exatamente 10 anos mais velha do que eu e de vez em quando me dava umas cantadas. Cheguei a ficar com ela duas vezes, mas eu não queria compromisso com ninguém. Levei o Josias no colo e ele demonstrou carinhosamente toda a sua saudade. Agradeci à vizinha e fui pra dentro de casa. Coloquei o Josias na cama, onde ele sempre dormia do meu lado. Analisei bem a minha casa, as portas, as janelas, todas as possibilidades de alguém entrar e sair sem arrombar nada e sem ser notado. Todas as janelas tinham grades. A porta dos fundos tinha trancas internas. No fim das contas eu percebi que só quem tinha a chave da porta da frente é que poderia entrar sem deixar sinais de arrombamento. E só EU tinha a chave.

No dia seguinte, eu fui trabalhar ainda assustado com os últimos acontecimentos. Ao chegar no meu local de trabalho, dei de cara com a porta fechada com um cartaz escrito: “Fechado por motivo de falecimento.”

Vi o meu chefe aos prantos sentado na cadeira de uma das mesinhas da padaria que ficava ao lado da loja onde eu trabalhava. Sentei-me à mesa com ele e perguntei:

- O que aconteceu, chefe?

Com a cabeça baixa e chorando muito, ele respondeu:

- Manoel! A minha tia morreu!

- Meus sentimentos. É pena que eu não a conhecesse.

- Conheceu sim! Era tua vizinha, minha Tia Maristela. Morava ao lado da tua casa. Morreu ontem, ao meio-dia. Eu só soube ontem à noite, quando cheguei em casa, a minha mãe me ligou e avisou. Eu perguntei: “Mas mãe! Por que a Senhora não me avisou antes?” Ela me disse que era pra não atrapalhar o meu trabalho, porque eu dependo desta loja pra viver e a minha mãe sabe o quanto eu era apegado à Tia Maristela.

- Você tem certeza de que ela faleceu exatamente meio-dia?

- De acordo com os médicos sim, encontraram o corpo dela caído na varanda, era 1:10h da tarde, mas os exames comprovaram que ela passou mal e infartou meio-dia em ponto, quando estava pendurando umas roupas no varal. Mas por que essa curiosidade toda? Que diferença isso faz?

- Não, nada, desculpe a minha curiosidade, mas é que às vezes eu sou meio entrão assim mesmo. Desculpe, amigo. Pense que a tua tia Maristela agora está no céu, do lado de Deus, em um lugar muito melhor do que este.

Conversei um pouco com o meu chefe até meio-dia. Almocei com ele e fui ao enterro da Dona Maristela. Confesso que o meu pranto foi tão sincero quanto os dos familiares dela. Uma mulher tão gentil. Um amor de pessoa que se foi por um infarto aos 50 anos de idade. Tão jovem pra morrer.

Depois de todas as cerimônias e o corpo sepultado, abracei o meu chefe e fui pra casa. Ainda atordoado com os últimos acontecimentos. De repente eu vi na mesinha de centro da minha sala, um pequeno envelope de papel todo em branco e com um pequeno bilhete dentro. Em letras de mão bem legíveis, escrito à caneta azul, estava escrito no bilhete:

[ Sim, eu infartei a tua vizinha Maristela. ]

[ Sim, o que você viu ontem à noite eram os fantasmas do teu gato e da tua vizinha. ]

Fiquei apavorado ao ler aquilo! Com o que eu estava lidando afinal? O que era aquilo que parecia ser um homem eternamente jovem e com o olho esquerdo eternamente ferido? Então, eu analisei: “Hoje u vou faltar ao trabalho e vou a pé andar pelo meu bairro todinho até encontrar onde mora este sujeito. Mas e se eu perder o emprego? Não! É melhor fazer isso à noite!”

Depois disso, todas as noites depois do trabalho eu pegava o meu carro e ia de casa em casa, analisando e pesquisando quem eram os moradores. Fui na maioria das casas, me passando por recenseador, sem encontrar sequer alguma referencia do cidadão em questão. Até que cheguei em um lugar ermo, que ninguém ousava por os pés. A casa abandonada da falecida Família Horsemann. Eu pensei: “É isso! Se é uma criatura sobrenatural, é óbvio que se esconde em um lugar onde ninguém tem coragem de ir!”

Voltei em casa e fui novamente naquele local sombrio e arrepiante. Deixei meu carro do outro lado da rua, tranquei bem e levei comigo uma lanterna e um revólver calibre 36. A porta da frente estava muito bem trancada e era de madeira maciça, seria quase impossível arrombar. Então eu comecei a rodear a casa. No quintal, um cão semelhante a um Rottweiler com pequenos chifres e a cabeça de uma cobra na ponta de um rabo de aproximadamente um metro, me olhava com olhos vermelhos que pareciam brilhar no escuro. O animal tentou morder a minha perna, tive que atirar nele pra não morrer, um tiro certeiro na cabeça. O cão caiu morto. Quase chorei de remorso ao ver aquilo, eu nunca havia matado um animal antes. A porta dos fundos estava estranhamente destrancada. Ao girar a maçaneta, ouvi o cão se levantando. Entrei e tentei fechar a porta atrás de mim, mas o cachorro colocou a cabeça entre a porta, me impedindo de fechar. Segurei o pescoço do cachorro com a porta, impedindo-o de entrar. Mesmo com um furo de bala na cabeça, o bicho forçava a porta, dando mordidas no ar, tentando ferozmente me morder. Seus olhos vermelhos cheios de sangue eram aterrorizantes! Disparei mais uma vez contra a boca do bicho até acabar a munição e mesmo com o focinho e a boca perfurados de balas, o bicho insistia em tentar me morder e forçava a porta com uma força incomum. Então eu vi que estava dentro de uma cozinha. Peguei o martelo de bater bifes que estava na pia e dei marteladas na cabeça do cão maldito até colocá-lo pra fora e fechei a porta. Tranquei com o único trinco que aquela porta tinha. Vasculhei toda a cozinha, sem encontrar coisa alguma. Passei por um corredor, que dava acesso a um quarto, um banheiro e mais um quarto e a sala, respectivamente. Aquela casa abandonada, por dentro estava incrivelmente com tudo limpo e organizado. Entrei em um dos quartos, iluminei com a lanterna. Havia coisas típicas de um quarto qualquer: Uma cama de casal, um criado mudo, um guarda-roupas contendo algumas roupas carcomidas pelo tempo. Fui até o banheiro e depois até o outro quarto. Nada de anormal. De repente eu ouvi a voz de Maristela falar baixinho de dentro de um dos quartos: “Cuidado Manoel!” Me arrepiei todo ao ouvir aquilo, mas recarreguei o revólver e segui em frente até o fim do corredor. Entrei em uma confortável sala de estar, com uma mesa de jantar com 6 cadeiras bem no meio, uma televisão bem antiga perto da porta, um sofá e duas poltronas de com estofado de couro. De repente, pula do teto em cima de mim, o sujeito do tapa-olho! Tentei lutar contra ele, mas a agilidade dele era sobre-humana. Em poucos segundos ele estava torcendo o meu braço. Puxei o revólver com minha outra mão e dei um tiro na perna dele. Ele parecia não sentir a dor do tiro, até que dei outro atingindo a parte de baixo do tórax dele. Ele não soltava o meu braço de jeito nenhum, mas a expressão de dor dele me animava. Dei mais dois tiros atingindo outras duas partes do tórax dele. Foi quando ele me soltou. Afastei-me dele e atirei na cabeça os dois últimos tiros que eu tinha. Ainda assim, ele me olhou nos olhos com o olho direito e perguntou:

- Por que quer me matar?

- Porque mataste o meu gato e a minha vizinha.

- Eu fiz o que foi necessário pra tentar fazer você parar de investigar quem eu sou! Se você não fosse tão teimoso, estaria com os dois vivos!

- Que raio de criatura é você? Um demônio?

- Não! Sou de carne e osso feito você! Só vim de outro planeta. Sofri um acidente ao pousar a minha nave e ela agora está destruída de forma irrecuperável. Assim que cheguei aqui, descobri duas particularidades sobre o teu mundo: Uma é que as condições climáticas daqui não permitem que um ferimento qualquer em mim cicatrize. Por isso eu tenho o olho esquerdo ferido desde a primeira vez em que você me viu. A segunda é que aqui eu posso viver eternamente sem envelhecer. Mas você estragou tudo! Os tiros que você me deu agora vão me matar lentamente por hemorragia. Parabéns, humano! Você matou uma criatura muito superior a você em vários sentidos e de uma inteligência que vai muito além da tua humilde capacidade de entendimento.

- Quem mata um gato, ou um “simples” ser humano só pra manter um segredo idiota desses, não merece o título de “superior”.

Fui embora vendo o cachorro dele, que certamente também era alienígena, agonizando com os ferimentos no gramado da casa. Senti-me péssimo por matar pela primeira vez um animal e uma pessoa, mesmo esta pessoa sendo alienígena. Mas voltei pra casa com a sensação de dever cumprido, por eliminar um indivíduo que matou a minha vizinha e o meu gato e que certamente mataria muito mais pessoas pra manter o seu segredo ao longo da vida dele.

FIM

Eduard de Bruyn
Enviado por Eduard de Bruyn em 07/03/2019
Código do texto: T6591654
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