Joanne e Mário- CLTS 06
Mário talvez não notasse, mas Joanne reparava em como sua tia estava com uma aparente pressa para ir embora. Algumas vezes ela notou a mulher olhando de um lado para o outro de forma sutil. Era como se ela não esperasse a hora de voltar para casa sem eles, mas como o ônibus teimava em demorar a tia não tinha escolha a não ser continuar esperando na rodoviária.
Apesar de ser somente um ano e meio mais velha a menina sabia dos perigos que poderiam os rondar. Como a tia não parecia se preocupar era ela que tomava conta do mais novo e cuidava para que ele não falasse com estranhos. O menino tinha um perigoso hábito de achar que qualquer que falasse com ele era amigo e se não bastasse isso quando estava em algum lugar novo Mário não gostava de ficar sentado, tinha que andar para conhecer o local. Não foi com grande surpresa que a menina notou que conversava com uma mulher que ela não conhecia.
A senhora idosa que tinha uma cicatriz no pescoço, como se fosse uma mancha, que pegava até uma parte do queixo. Ela estava oferecendo uma maçã para Mário. A menina juntou as peças na sua mente e correu até o irmão antes que ele pudesse ter mordido a fruta. Tomou-a da mão do garoto e devolveu para a mulher:
-Sinto muito, senhora, mas o meu irmão não pode aceitar coisas de estranhos.
-Porque você fez isso? Eu estava com fome.-protestou Mário, mas se calou imediatamente diante do olhar firme da irmã mais velha.
-Joanne, vejo que não se lembra de mim.- disse a senhora com um sorriso que talvez tentasse ser amigável, mas que apareceu tremendamente assustador para a menina. Ela achou semelhante aos sorrisos que os vilões dão quando querem dizer que são uma ameaça ao herói. Saber que ela sabia seu nome a deixou ainda mais nervosa. – Moro perto do pai de vocês, do outro lado do pequeno rio para ser mais exata. Sempre via vocês brincando quando eram menores e passaram as férias lá. Mas agora que estou lembrando apenas fui apresentada ao Mário, você conhecia somente de vista.
-Eu lembraria se já tivesse lhe visto.
-Talvez não tenha reparado em mim, mas acredite nunca me esqueço de um rosto.- disse tentando novamente ser amigável- E vejo que cresceu para se tornar uma ótima irmã mais velha. Não vou interferir na sua decisão. –disse guardando a maçã junto com outras frutas um pouco antes de um ônibus chegar- Meu ônibus chegou. Espero vê-los novamente.
Joanne não tinha a mesma expectativa, mesmo sabendo que pelo que falou ela estaria perto da casa do pai deles.
-Você não presta atenção nas histórias que leio para você?- sussurrou para o irmão quando a idosa já tinha ido.
Mário olhou para ela como se ela tivesse falando outra língua ou tivesse surtado.
- Você não reparou nos detalhes e na aparência dela? A maçã podia está envenenada. - disse Joanne.- Que nem aquela que a madrasta da branca de neve deu para a princesa.
Joanne deixou as palavras no ar para que o irmão absorvesse.
A tia deles cansada de olhar de um lado para o outro estava no celular e pareceu ignorar tanto a conversa entre os irmãos como a interação com a idosa, mesmo sendo próximo dela. Joanne suspeitava que a tia além de tudo não planejava os acompanhar na viagem como era o planejado. Essa suspeita se mostrou correta, pois quando finalmente tirou os olhos do telefone disse que eles iriam acompanhados de uma amiga dela que estava indo para aquela região. A tia saiu segundos depois do ônibus chegar depois de algumas poucas palavras de despedida. Joanne olhou para a amiga da tia e pensou que ela fosse dizer algo tranqüilizador antes de embarcarem, mas a única coisa que disse com o olhar distante foi:
-Dizem que essa é a estrada para esquecer ou ser esquecido.
-Que?- exclamou a menina sem entender nada. A tia tinha conseguido encontrar uma amiga ainda mais estranha que ela.
-A estrada por onde o ônibus vai. Ela é a estrada para quem quer esquecer ou ser esquecido. - falava a moça com uma voz distante e calma. Era como se recitasse um poema enquanto falasse. O que tornava tudo mais surreal.
-Acho que quem queria esquecer a gente é a nossa tia.- disse quando já estavam dentro do ônibus, porém por algum motivo a frase ficou na sua mente.
-Não ligue para ela. –foi apenas o que respondeu a moça, com a voz um pouco mais firme.
Os lugares eram marcados e ela agradeceu por não ter que ficar junto com aquela mulher, pois não queria ouvir mais frase como aquela da estrada. Não ficou junto com o irmão, mas de onde estava o via muito bem. A poltrona era confortável e ela sentiu todo o cansaço pesar em seus olhos. Não queria dormir, mas isso acabou ocorrendo.
Quando abriu os olhos estava em uma canoa no meio do rio que ficava na frente da casa do pai. Tudo parecia encoberto pela neblina que sempre se forma um pouco antes do amanhecer, mas essa parecia mais densa que o normal. Não era possível ver as margens, mas de alguma forma ela sabia que Mário estava em uma delas e que estava em perigo.
-Mário!- disse tentando remar em direção de uma das margens mesmo que estivesse sem direção.
-Joanne!- a voz do irmão lhe fez saber que estava na direção certa. A neblina na margem estava ainda forte, mas ela conseguia ver o chão que pisava. E isso a fez gritar, pois notou que havia ossos naquela margem do lago. Pelo tamanho deviam ser ossos de crianças. Seu medo instintivo a fez recuar alguns passos, mas seu amor pelo irmão a fez seguir aquela trilha o chamando. O som seco de ossos se quebrando atrás dela a fez ter certeza que era seguida, mas não teve coragem de virar. Parecia que uma névoa invisível ia tornando seus passos cada vez mais difíceis. Tinha a sensação de está andando por baixo d’água.
Acordou ainda com a sensação de que precisava ajudar Mário e sentindo um pouco de frio. Seus olhos demoraram a acreditar que a imagem dele distante apenas algumas poltronas era mesmo real. Esfregou os olhos e prometeu não dormir. Tinha medo do que encontraria no fim da assustadora trilha.
-Você está bem?- a mulher que estava ao seu lado perguntou.
-Sim. Tive apenas um pesadelo. - disse notando que havia chorado enquanto sonhava –Não foi real. – disse mais para si mesma.
- Essa estrada parece ser boa para gerar pesadelos, mas acho que até o fim da viagem você esquece o sonho. Dizem que essa estrada é boa para esquecer.
“Ou ser esquecido”-pensou a menina se lembrando de uma frase que ouviu uma vez. Que dizia que a morte é o esquecimento. A imagem daqueles ossos escondidos pela névoa, esquecidos pelo tempo, voltaram a mente.
-Meu filho sumiu nessa estrada quando ia pescar com um colega.-continuou a mulher- Nunca o acharam. Ainda me lembro do casaco verde que ele usava.
-Sinto muito.- foi apenas o que conseguiu dizer.Joanne sentiu um nó na garganta. A mulher pegou na sua mão por um momento como que para buscar forças.
-Desculpe lhe falar essas coisas, garotinha. Você não tem nada a ver com isso. Não quero lhe dá mais pesadelos com essa conversa.
-Se falar lhe fizer bem, estou aqui para ouvir.- Joanne era um pouco mais madura do que outras meninas da sua idade. Certa vez ela ouviu que crianças sem mãe amadurecem mais rápido. Ainda mais quando tem que cuidar do irmão mais jovem.
Um momento de silêncio se seguiu até que voltou a falar:
-Ele não foi o único. Outros garotos de oito anos sumiram também dessa cidade e de regiões próximas. – fez uma pausa por um momento e a durante o silêncio a imagem dos ossos do seu sonho voltaram novamente a mente de Joanne, assim como a sensação de que tinha que defender seu irmão. Os desaparecidos tinham a idade de Mário.
- Costumo pegar esse ônibus e percorrer essa estrada até o final e depois voltar. Tenho a impressão que uma parte dele ainda está na estrada, nessa área, em algum lugar que ainda não procuramos. – disse a mulher com palavras sussurradas.
Joanne não sabia o que dizer, por isso apenas encostou a cabeça no ombro da mulher para lhe dá conforto. Ela desejava que o garoto fosse encontrado. Seguiram em silêncio até o momento de Joanne e o irmão descerem. Despediram-se afetuosamente.
Quando desceram do ônibus a menina puxou o irmão para o mais perto possível dela. Ainda tinha um pedaço a pé, por uma estrada que ônibus não entrava. Estava com todos os seus sentidos em alerta, diferente da moça que procurava alguma coisa na mochila.
-Você ainda se lembra onde é a casa de seu pai não é? Tenho que encontrar com uns amigos aqui perto, então é nesse momento que nos separamos.
“Será que estou cercada de pessoas irresponsáveis? Minha tia conseguiu arrumar alguém mais irresponsável que ela.” pensou a menina ao analisar que era muito perigoso mandar duas crianças por uma estrada de terra, cheia de mato e com poucas casas caso precisassem de ajuda. Joanne queria acreditar que ela estava brincando. Não iria deixar Mário correr esse risco.
-Pior que não lembro.- disse mesmo lembrando muito bem. Não iria sozinha.
-De qualquer forma é só seguir direto até o rio. Não tem erro.- disse já se direcionando para o outro lado. Passava protetor solar no rosto agindo como se as crianças não fossem mais problema dela mesmo.
Naquele momento Joanne se viu literalmente diante de dois caminhos. Poderia arriscar e ir sozinha para a casa do pai ou seguir a moça mesmo que ela não soubesse para onde ela ia. E se o lugar para onde ela fosse se mostrasse mais perigoso? Esses amigos dela poderiam ser ainda mais estranhos do que ela. Se ouvia uma música ao longe, associou que tinha relação para onde ela estava indo. Devia ser algum tipo de festa.
Resolveu arriscar ir para a casa do pai enquanto estava claro.
O mato alto dos dois lados fazia sua sensação de insegurança aumentar. No começo do caminho ainda encontraram turistas que estavam indo para a estrada principal ou cachoeiras que ficavam na direção em que a moça foi. Mas depois de um tempo tudo se tornou silencioso. Em alguns pontos viam algumas casas, mas quase nenhuma pessoa. Joanne olhava de forma desesperada para todos os lados. Esperando que a qualquer momento um monstro pulasse para arrastar o irmão para a floresta.
Seus olhos se arregalaram e não conseguiu segurar o grito quando viu uma figura lhe encarando. Era um homem idoso que estava sentado em uma pedra no meio do mato. Apoiava-se em uma placa já consumida pela ferrugem.
-Cuidado pequenos, no fim desse caminho tem uma criatura que se alimenta da inocência de crianças.- disse olhando fixamente para eles.
Joanne se sentiu paralisada e incapaz de correr apenas puxou Mário mais para perto. Começou a ter a sensação que tudo naquele dia estava querendo lhe mandar um recado que dizia sobre tudo para que ficassem longe do rio. Não achava coincidência o sonho e o aviso do idoso falarem exatamente sobre como tinha algum perigo no lugar. Assim com aquela idosa estranha que segundo o que disse morava na outra margem do rio e com o relato da mulher do ônibus. Estava começando a juntar as peças. Começou a achar que aquela idosa era uma bruxa que seqüestrava criancinhas para se alimentar da inocência delas. Ela devia ter pego o filho daquela pobre mulher que conheceu no ônibus e estava atrás de Mário.
Talvez aquela maçã envenenada que ofereceu para Mário fosse somente o começo do plano dela. Tinha que o deixar longe do rio.
-Pare de assustar as crianças, pai.- disse outro homem se aproximando atraído pelo grito dela.- Não ligue para ele, garotos. Uma das coisas que ele mais gosta de fazer para passar o tempo é ficar sentando na beira da estrada contando histórias para assustar turistas. Qual foi a história que ele contou dessa vez? Da sereia da cachoeira ou algo relacionado com um lobo gigante? Crianças, esperem. Não corram tão rápido!
Joanne mal o ouvia, quando recuperou suas forças correu para onde pensou que a moça foi, ali com certeza teria mais gente e a bruxa não teria coragem de os atacar. Sem falar que era longe do rio. Segurava firmemente na mão do irmão.
-Francamente, pai, porque fica fazendo essas coisas? Podia até as colocar em perigo.
-Elas ficariam em perigo se tivessem ido para o rio. O lobo e a sereia podem até não existirem mais, porém tem realmente algo muito mal no fim da estrada.
Algo na forma como o pai falou fez o rapaz chamado Alberto quase acreditar nele. Quase. Pensou em ir atrás das crianças, mas lembrou de todo trabalho que tinha esperando por ele. Além disso, pensou que elas deviam ter corrido de volta para os pais delas.
*
-Para onde a gente vai?- perguntou Mário cansado de tanto correr.- A casa do papai não é por aqui.
-Aquele caminho não é seguro e talvez nem a casa dele. Não com aquela bruxa morando ali perto. Tenho que lhe deixar seguro. - Joanne disse e tinha medo que não conseguisse fazer isso. Olhou ao redor e notou que em algum ponto haviam se perdido. A estrada parecia ficar ainda mais estreita e as árvores maiores. Achava que a moça não tinha ido por ali e nem nenhum dos tais amigos. Não havia sinal de música.
Uma sensação de perigo começou a lhe arrepiar os pelos das costas. Tinha a sensação que era observada. Andou mais uns passos e viu ao longe um pequeno vislumbre do rio. Havia corrido tanto e voltado para o lugar de onde tentava fugir. Ouviu um barulho como de galhos quebrando, que cada vez mais se assemelhavam com ossos se partindo. Correu sem olhar para trás até quando uma mão pesada a segurou firmemente.
-Me solte!
-Joanne, porque estão gritando e correndo?Estava que nem louco procurando vocês.Cadê sua tia? – disse seu pai estendendo os braços para os receber. Joanne ao sentir ser envolvida pelos braços do pai se colocou a chorar e contou tudo. Ele pareceu revoltado com a atitude da tia e da amiga dela, mas não acreditou muito na teoria dela sobre a vizinha.
-Mas pode deixar que vou lhes proteger dessa tal bruxa.- disse sorrindo para a filha.
Ele ainda falava quando passaram por um lago que ficava na beira da estrada. A menina viu dois rapazes e uma moça sentados na margem enquanto um garotinho nadava. Ele tinha quase a idade de Mário. Joanne levantou a mão para acenar, mas antes que fizesse isso o menino passou o dedo rapidamente no pescoço simulando um corte. Indicando que eles estavam em perigo.
“Legal, mais gente estranha”pensou Joanne tentando ignorar. Se sentia segura com o pai.
-Garoto, pare de assustar a menina.- um dos rapazes gritou da margem levemente irritado.
-Mauro, acho que essas crianças podem está em perigo.- um dos rapazes se virou para o outro e comentou depois que as crianças passaram.
-Só por causa do que o garoto fez? Ele fica fazendo isso para quase todo mundo que passa. Além disso ,elas estão calmas com quem deve ser o pai delas.
-Sei não.-disse se levantando para ir atrás deles.
-Você está vendo coisa onde não tem, Kelvin. –disse o outro o puxando com um tom de voz preocupado com ele – Eu, você, minha irmã e o garoto viemos aqui para relaxar e esquecer. Essas crianças estão bem e você tem que cuidar de melhorar também.
*
Aos poucos a sensação de segurança que o abraço do pai transmitia começou a se tornar em outra coisa. Tinha uma sensação de medo sem explicação alguma. Era como se a sua garganta fosse se fechar. Talvez tivesse pego muito Sol ou estivesse com fome. Desmaiou.
Acordou naquela mesma canoa no meio do rio. O mesmo sonho, porém dessa vez no sonho estavam sua tia, a amiga dela e as pessoas que encontrou ao longo da estrada. A menina gritava pedindo ajuda, mas nenhum deles parecia ouvir.
-Criança, você não entendeu nada. – era como se o rio falasse ao mesmo tempo que outras vozes que vinham de dentro dela. Parecia decepcionado e com pena. Água começou a encher a canoa que começou a afundar. Mas quando olhou bem, notou que era sangue que inundava a embarcações. As pessoas perto somente olhavam.
Acordou e pensou que ainda estivesse no pesadelo. Seus olhos demoraram a se acostumar com a escuridão. Parecia está presa no que parecia o porão da casa do seu pai. Não estava sozinha. Seu irmão e um garoto com uma roupa bem gasta estavam lá também. Mas ainda assim Reconheceu que era um casaco verde.
-Tinha um outro menino, mas ele o enterrou no quintal. Junto com os outros quando ele fez nove anos. Somente quer meninos de oito. - o menino falava rápido demais.
Naquele momento teve a certeza que realmente não tinha entendido nenhum dos sinais. Estivera olhando para o lado errado da margem o tempo todo.
Temas: Serial Killer, contos de fadas e um pouco de embarcações(a canoa)