O GATO

Sempre suspeitei que fosse o próprio diabo. Devido àquele primeiro encontro sem querer no beco, em que o vi na situação cabulosa em que se encontrava. Não é todo o dia que vemos um gato estraçalhando a garganta de um homem daquele jeito, como eu vi. Era um gato grande, maior do que qualquer um. Mas a aparência era de um gato doméstico, comum mesmo. Cuidei para não ser visto, mas um descuido me fez deixar cair uma lata de cerveja da pilha de lixo ao recuar e daí já era.

Aqueles olhos brilhantes e vivos foram direto pra cima de mim e nada pude fazer. Tentei correr, mas o bicho era rápido, via sua sombra se mover pelas paredes e não o achava, estava sempre à frente.

Deixei ele me seguir até em casa, o que eu podia fazer? Era um gato branco, de olhos amarelos e sempre mantinha distancia, me encarando de longe, desconfiado. Deve estar me achando um louco por deixar o gato ficar em casa, depois do que vi ele fazer lá no beco. E nem eu entendo o que deu em mim. Me afeiçoei ao bicho e além do mais ele não incomodava. Aparecia quando queria, ficava dias, semanas fora. Eu até sentia falta em alguns momentos.

Mas isso foi antes daquela noite. Estava sentado assistindo tv. Era 3 horas da madrugada de sábado, via um filme antigo, acho que era O Monstro da Lagoa Negra, isso. Quando comecei a ouvir um barulho na janela, umas pancadas, estavam ficando mais altas e frequentes até que eu fui ver. Ao abrir dei de cara com o gato. Todo sujo de sangue e tinha folhas e galhos grudados a ele. E estranhamente eu não achei que o sangue era dele. A princípio deveria ficar preocupado, sei lá. Mas não foi o que me passou pela cabeça e sim aqueles olhos malditos. Os olhos arregalados e irritantes. Gatos não tinham aquele olhar, era um olhar de homem, de alguém que te encara, desafia, quer que você revide.

Roçou em mim, rodeou a mesa da sala, depois pulou sobre ela então deu uma mordida numa maçã verde que estava na fruteira e depois olhou pra mim e disse:

-Meu caro, Hank. Jovem tolo que não teve muitas experiências na vida. Você nem poderá dizer que foi o primeiro a ver um gato falar, no caso este gato. O próprio gato. Rei dos gatos. Mas foi o primeiro enxerido que me viu sem querer. Então, estivesse pensando esse tempo todo em como isso acabaria. Porque você sabe o que viu. Sabe que não foi uma visão, nem estava louco.

-Sua coisa, escuta. Não me importo com o que estava fazendo. Pra quem eu falaria e quem acreditaria? Gatos não saem por ai cortando gargantas de mendigo nas ruas.

-Falou o perito em gatos. Está bem. Não estou aqui pra discutir o comportamento dos gatos com você. -O gato agora passeava pelo sofá, perto de mim. Aquele rabo comprido se estendendo reto enquanto se espichava enfiando as unhas no estofado. Caçoava de mim, estou bem certo disso.

-O que quer então? Só pode ter vindo do inferno pra levar a minha alma embora. Onde estava com a cabeça quando deixei você me seguir. Ainda cuidei, dei comida, deixei ficar aqui em casa.

-Se se sente melhor, diria que não teria outra opção. Isso estava destinado a acontecer. Você acredita em destino caro Hank?

-Eu não acreditava que gatos falassem. O que posso dizer agora que estou falando com um? Acho que sim, acredito em destino.

-Vou dizer o que tens de fazer e também as vantagens que o nosso negócio trará pra você. Se fizer exatamente o que eu estou dizendo você vai ser bem-sucedido e eu vou poder cumprir com o meu destino nesta terra. É o seguinte: -O gato me contou tudo e eu fiz exatamente como ele tinha dito. Abri meu restaurante, que inaugurou em 4 de julho de 1987. Não me perguntem como mas o bichano bancou tudo. Eu, claro, estava convicto que o animal era satanás e que agora eu estava em dívida, condenando minha alma e nem me importei.

Mesmo sabendo que o principal ingrediente do cardápio era feito com carne humana selecionada.

Funcionava assim:

Escolhia as pessoas aleatoriamente na rua. Seguia a sua rotina normal. Supermercado, se cuidava da alimentação, do corpo, dai eu fazia os relatórios. Os que se encaixassem no perfil eram escolhidos. Aí vinha uma segunda etapa.

Fazia contato com eles. Me inscrevia na academia que a pessoa frequentava, esbarrava em livrarias, na padaria, de forma casual e ai iniciava o ritual. Com mulheres aconteciam até flertes. Eu não ia desperdiçar a chance.

Mesmo sabendo que teria de matá-las depois. Era para o restaurante. Sua carne não ia apodrecer e servir de alimento para vermes, mas teria um fim mais nobre, alimentaria seres humanos. Morte por esganamento era a mais recorrente. Claro, com os caras exigira mais violência, então um tiro na testa não envolvia luta corporal nem disputa de forças e era rápido e discreto, com o silenciador.

Primeiro você esfola elas, tira toda a pele. Essa é a parte mais difícil. A pele humana é difícil de sair, mas o endiabrado do gato me ensinou como fazer direitinho. Ai depois você corta a cabeça, os pés, as mãos, não servirão de coisa nenhuma. Ai você destrincha. Começo com os antebraços, são cortados em duas partes longitudinalmente, são bons pedaços e os braços, tríceps, bíceps; deltoides, trapézios, dorsales, lumbar, abdominales, cuadriceps.

O preparo é algo que requer uma boa experiência. A carne humana é de cor escura, gosto amargo e forte, por isso ela tem que ser temperada de um dia para o outro e ficar marinando. Usa-se amaciante para carne e tempera-se com sal, pimenta e cominho, cebola e alho e deixa-se numa bacia de tamanho considerável e tampada. Depois tempera-se com alecrim e sálvia e pronto, é só cozinhar. Não aconselho fritar a carne, não sei porque, mas o gosto não é muito bom. A melhor preparação é mesmo assada. Boas partes para o preparo são rins, fígado, bexiga e pulmões. Retire as glândulas dos rins corte-os em fatias e seque na farinha. Depois doure na boca do fogão. Refogue alho, pimenta, coloque os rins e tempere com o sal e limão. Em seguida cozinhe em fogo brando com água e deixe formar um caldo, acrescente vinho branco, e vegetais (pode ser rabanetes e aspargos). Deixe reduzir um pouco e sirva.

Nesses 6 meses em que o restaurante está aberto já foram servidos mais de 8 mil pratos. O empreendimento é um sucesso e meus amigos, não está sendo nada fácil dar conta da demanda.

Não podia mais ficar matando gente. Além disso tinhas as inspeções sanitárias e várias pessoas às quais eu tinha que molhar a mão pra poder dar o jeitinho e deixar o negócio legalizado com os distribuidores e abatedouros de carnes forjados, sabe como é?

Mas como continuar matando essa gente, com o rigor que o nosso processo exigia na velocidade em que estava crescendo o restaurante? Recrutando mais matadores. E foi o que fizemos. No começo tudo fluiu da melhor maneira. Mas ai percebemos que os corpos começaram a aparecer com perfurações e deformações, o que nos fez perder tempo e dinheiro, pois tínhamos que matar mais gente e cremar os corpos que não poderiam mais ser usados pro abate. Só quando Arok, o gato, começou a supervisionar os abates foi que a coisa toda se arranjou. Não é fácil. Nem sabíamos que a coisa ia tomar essa proporção. Pelo menos eu não sabia, mas Arok, acho que ele sabia, o ladino.

Uma noite, em 1990, já tinham se passado 3 anos, portanto, desde que abrimos. Atendemos uma família de tailandeses. Notei que desde o início eles ficaram desconfiados de mim, do restaurante, tudo.

Quando chegaram os pratos e a menina, se chamava Letícia, soube pois foi como a chamou a irmã mais nova quando brigavam, começou a comer, ela deu um grito e arrastou a cadeira se afastando. Dizia:

-Que nojo, que nojo! Que isso! -Tinha uma unha no prato dela. Até ai tudo bem, podia argumentar que era de um dos cozinheiros. Mas o pior veio depois. O que eles pediram foi uma sopa e lá estava o alvo da reprovação ferrenha da jovem, não era uma simples unha e sim um globo ocular humano que boiava na sopa. Ai não dava pra dizer que tinha sido relaxo do cozinheiro.

Foi um escândalo. O restaurante foi fechado, claro e tivemos que explicar. Contratamos um bom advogado que argumentou que um dos abatedouros que supostamente nos vendia a carne, estava com as fiscalizações sanitárias atrasadas e como foi investigado depois seus métodos de abate estavam abaixo do esperado nos quesitos de qualidade. Pagamos uma multa estratosférica. Mas conseguimos nos safar. Só não pudemos continuar com o restaurante.

Fui pra Espanha com o gato. Zaragoza era um bom lugar para se viver. Viver bem, como queríamos. Quanto ao nosso plano do restaurante, bom. Não foi exatamente como queríamos, mas fizemos. Deu certo por um tempo.

Arok me levou pra um restaurante numa tarde de domingo, porque queria que eu experimentasse a comida.

-O que achou?

-É divina. Maravilhosa. Nunca provei nada igual.

-Então, esperto. Porque este foi o meu primeiro cliente. O restaurante foi inaugurado em 1309 e existe até hoje. Godofredo, o homem que o fundou, é mais esperto que você e acredite, não precisou de ajuda. Foi responsável pelas mortes de mais de 600 pessoas e nunca foi descoberto. Em cada lugar lhe davam um nome. Em Londres ficou conhecido como Jack o Estripador. Na Hungria foi responsável por algumas mortes atribuídas à Isabel Bathory. Na alemanhã, Fritz Haarmann, o vampiro de Hanover, também levou a culpa por alguns dos assassinatos de Godofredo.

-E como esse Godofredo conseguiu viver tanto tempo? Isabel Bathory e Fritz Haarmann estão distantes, na linha de tempo da história, mais de trezentos anos. Como isso é possível?

-Boa tarde, senhores. O que vão querer? –Olhei pra cima, assustado e me encarava um senhor velho, carcomido, com um bigode pomposo e careca. Decrépito. Dava ânsia só de encará-lo.

-Olá Godofredo, -disse o gato para o meu espanto. –Prepare o carro chefe da casa, aquele que só você sabe fazer. Lembra?

-Qualquer coisa para o meu senhor. E para beber?

-Um Cabernet Sauvignon cairia bem, obrigado. Sabe que estava aqui justamente explicando pra este biltre, um desgraçado qualquer que na minha desesperada tentativa de te arranjar um substituto, fiz dono de um dos mais conceituados restaurantes da américa, como você fazia para ser tão bom no seu ofício. Acredita que em 3 anos conseguiu falir com o seu negócio? Bom, tem gente que não leva jeito mesmo para os negócios. O que me diz, um ano de aprendiz aqui contigo achas que podes dar jeito?

-É, já estou velho meu Senhor. E creio que os anos extras que me deste já estejam se esvaindo.

-Concedo-lhe mais uns duzentos anos extras se ensinares este aí. Preciso eu é de descanso e se não encontrar ninguém terei de deixar o ofício e dizer ao meu mestre que fracassei. Como bruxo não posso me dar ao luxo de fracassar. Você sabe, não é?

-Sim. Vou ver o que consigo. Mas olhando assim, será que fizeste uma boa escolha? Não parece ser o tipo para este serviço em particular.

-É o que me resta meu caro. Não posso arriscar demais nesse tipo de negócio. Vamos ver no que isso vai dar. O que está nos trazendo? É vitela? O cheiro está ótimo.

-Perfeitamente senhor. Escolhidas especialmente para pessoas da mesma estirpe que a sua. São tailandesas, puras. De 8, 10 e 12 anos. Todas irmãs. Acabavam de chegar de uma viagem à América. A mais velha se chamava Letícia, uma menina adorável e faladeira que só. Não que isso seja relevante. Mas quanto mais felizes melhor é a carne, não é Senhor? -Disse isso e deu uma piscada pro gato, o espanhol desgraçado.

O gato, que era um facínora, acostumado com as coincidências mais esdrúxulas inimagináveis não deve ter se surpreendido como eu e na sua ironia caricata levantou o copo e brindou comigo.

-Beba garoto, beba. Os ares da Espanha já estão te fazendo bem. Percebes? Aquela nossa conversa de destino, lembra? Entendeste agora? La vida es bella, rapazote. Viva y aprenda!