Maldito

Deixo aqui o meu relato sobre os fatos que me assombram desde a minha infância conturbada. Eu vi, mesmo sem querer ter visto, o meu pai (Ou o que a sua lembrança era pra mim) se jogar na frente do trem enquanto minha mãe tentou inutilmente, e aos prantos, correr atrás dele para impedi-lo. Eu não lembro direito por ser apenas uma criança, mas eu me recordo de não sentir tristeza, medo, ou raiva... Eu senti repulsa. Apenas observei a cena e logo em seguida desejei não ter sido capaz de ver aquilo. As rodas do trem dividiram seu corpo ao meio, dilacerando uma das partes que voara com o choque, e não sei como explicar, mas sua cabeça rolara a poucos metros de meus pés e eu tive a impressão de que os olhos dela se fixaram diretamente nos meus.

Depois desse fatídico dia, tudo mudou em minha vida. Eu já era uma criança tímida que me isolava e não conversava com qualquer um, contudo eu passei a ser mais quieto e menos sociável que o normal. Nem com minha mãe eu falava. E não ia adiantar muito tentar conversar com ela, afinal ela passava o dia inteiro sentada no sofá com aquele olhar apático e dopada de remédios que ela deliberadamente misturava com cervejas baratas. A tv ficava ligada o dia todo no mesmo canal. Minha mãe se transformara em um objeto da casa, como uma estátua de cera deprimida que só se levantava para ir ao banheiro e para ir dormir em sua cama que sempre estava bagunçada, isso quando ela não dormia no próprio sofá.

Os anos foram passando, e eu alcançara a adolescência. A pior fase da minha vida. Eu nunca deixei de ser tímido e meu maior desejo do universo era ser invisível, não para poder entrar nos lugares sem ser visto, mas sim para nunca ser notado. Porém mesmo assim, eu não me considerava triste, apenas indiferente ao mudo alheio à minha volta.

O bullyng na escola era diário: Humilhações, agressões e piadas fundamentadas no suicídio de meu pai. E eu apenas ficava calado, mesmo quando era espancado na saída apenas por ser o garoto isolado que só usava roupas pretas e pintava as unhas (De preto).

Minha mãe nunca me questionava sobre meus olhos roxos, ou sobre as cartas que a escola mandava pra nossa casa exigindo respostas para as minhas faltas sem justificativas, pois sempre que era possível eu cabulava as aulas pra sair e beber com alguns colegas. Eles não eram meus amigos, apenas curtiam encher a cara comigo e jogar garrafas vazias nos telhados de casas aleatórias depois que já estávamos bêbados e chapados de maconha barata.

Mas chegou um dia em que minha mãe definitivamente nunca mais questionaria nada nem se ela mesma quisesse, pois eu a encontrei morta na cozinha. Ela morreu por overdose de barbitúricos e antipsicóticos e nem fez questão de deixar um bilhete ou um sinal pra mim. Olhei para seu corpo no chão. Ela estava de costas e havia vômito envolta de seu corpo. Seus olhos estavam abertos, e eu tive a estranha impressão que eles estavam fixados no meu olhar. Então eu resolvi chamar a ambulância e vi seu corpo ser enrolado em um saco e levado embora. Seu velório foi esquisito, quase não havia ninguém, e foi justamente ali que eu conheci a irmã mais velha da minha mãe, que me chamou para ir morar com ela com um certo brilho de receio em seu olhar quando se aproximou de mim. Eu aceitei.

Alguns dias morando com minha nova família eu fui conhecendo-os aos poucos. Havia minha tia, suas duas filhas gêmeas que eram alguns anos mais velhas do que eu e meu tio, um cara carrancudo que quase nunca conversava e só respondia as perguntas com sílabas.

No começo era tudo normal, cada um em seu quarto, fazendo qualquer coisa e seguindo o ritmo banal da vida em si. Mas de repente coisas estranhas começaram a acontecer. Como por exemplo, no dia em que ambas as minhas primas tentaram queimar seus olhos com uma resina derivada de hidróxido de sódio. As duas ficaram dias no hospital e uma delas chegou a perder 80% da visão do olho esquerdo. Quando foram questionadas sobre o que levaram as duas a cometerem essa loucura elas não souberam explicar.

Após receberem alta do hospital, as duas nunca mais foram as mesmas. Elas Ficavam o dia todo quietas e não conversavam. Eu me sentia um mero expectador, apenas observando e sem questionar como sempre fiz em toda a minha vida, até um dia em que tentei conversar com elas e oferecer um pouco de empatia, mesmo sendo péssimo em fazer isso, mas as duas me evitaram e chegaram até a chorar quando viram o meu rosto. Dali em diante resolvi de uma vez por todas não me envolver com absolutamente nada que não era do meu interesse.

Passado mais alguns dias depois do acidente com as minhas primas veio a tragédia. Acordei durante a noite com os gritos desesperados da minha tia e com o desespero do meu tio buscando uma serra em sua maleta de ferramentas que ficava na garagem. Levantei-me para ver o que estava acontecendo e me surpreendi quando cheguei ao quarto das duas e vi ambas penduradas pelo pescoço por uma corda na barra de aço que suspendia a cortina. Uma estava enforcada ao lado da outra, e quando olhei para seus olhos eu tive novamente a impressão de que seus olhares estavam fixados no meu. Meu tio serrou as cordas enquanto minha tia estava de joelhos no chão, completamente transtornada.

Depois disso, tudo ficou ainda mais estranho naquela casa. Ninguém falava com ninguém e o silêncio chegava a ser perturbador em alguns momentos. Minha tia transformara-se em uma estátua de cera, tal qual minha mãe quando presenciou a morte de meu pai. Ela ficava o dia todo na cama, com os olhos inchados de insônia e sendo diariamente cuidada pelo meu tio. Ela não se levantava da cama pra nada, nem mesmo pra fazer as suas necessidades fisiológicas. Então o cara carrancudo que nunca conversava comigo sempre estava ali, trocando a fralda de sua esposa enquanto lutava com o luto da perda de suas filhas em silêncio e buscando forças para tentar ajudá-la sem demonstrar fraqueza. E eu como sempre, apenas observava e não dizia nada.

Passaram-se algumas semanas após a morte das garotas quando outra tragédia aconteceu. Minha tia, em uma crise histérica, cortara sua carótida com uma lâmina de barbear. Meu tio tentou socorrê-la, mas ela perdera muito sangue e morreu no caminho para o hospital. Eu estava presente com ele dentro da ambulância no momento em que ela faleceu de olhos abertos. Seus olhos estavam claramente fixados nos meus e isso me assustou. Havia algo errado acontecendo, e eu de certa forma estava envolvido nessa trama.

A casa que já estava silenciosa tornara-se ainda mais quieta com apenas eu e o meu tio morando ali. Nós não nos falávamos e quase não nos víamos. E quando nos encontrávamos nos corredores não nos olhávamos ou no cumprimentávamos. Eu sentia que sua dor era forte demais e sua apatia perante a morte de suas filhas e esposa fez com que ele ficasse o dia todo transitando pela casa como se estivesse confuso.

Até que um dia eu tentei quebrar o silêncio. Ele estava parado na sala quando cheguei e tentei iniciar um diálogo. Ele olhou pra mim e eu pude perceber que seu semblante carrancudo transformara-se em uma expressão medonha, de quem acabara de passar por uma situação de medo extremo. Foi quando ele gritou que não aguentava mais tudo aquilo e correu para a garagem, onde além de suas ferramentas ele matinha sua escopeta guardada em um armário. Eu corri atrás dele, mas foi inútil. Quando entrei na garagem ele já estava com o cano da arma dentro da boca. No momento em que eu ia tentar dizer algo que o fizesse desistir de fazer aquela loucura ele apertou o gatilho. Eu pude ver seus miolos pintarem a parede da garagem de vermelho e o cheiro de sangue embrulhou meu estômago. Caminhei até seu corpo e não me surpreendi quando notei que ele morrera de olhos abertos. Seu olhar estava fixado em mim.

Eu não sei explicar o que estava acontecendo, mas havia uma maldição dentro de meu corpo. Todos ao meu redor estavam se matando e eu era o culpado por isso. Eu era amaldiçoado pela morte. Minha indiferença que eu tive durante toda minha vida transformara-se em culpa de repente. Aquelas pessoas não haviam se matado. Eu as assassinei de forma indireta. Eu fui o algoz de suas mortes. E foi por isso que eu peguei a escopeta ensanguentada que estava nas mãos do cadáver do meu tio e a coloquei contra minha testa. Pensei se aquela seria a solução correta para acabar de vez com minha maldição, mas eu estava com medo de puxar o gatilho e me exterminar. Foi durante este meu curto período de culpa que eu vi de relance que havia um velho espelho pendurado na garagem, todo empoeirado de tão velho. Eu vi meu reflexo nele e pude ver meus olhos. Meu olhar era maligno e me fez sentir um pavor inexplicável.

Resolvi então escrever este relato ates de tomar a decisão mais macabra de toda a minha vida. Voltei a colocar a arma em minha testa. Pensei se aquelas pessoas na escola que me humilhavam ou os meus colegas que bebiam comigo também haviam se suicidado, mas deixei as suposições de lado e fechei meus olhos amaldiçoados. Apertei o gatilho, quebrando de uma vez por todas a maldição que me envolvia.

Às vezes apenas a morte pode curar algumas doenças, ou maldições sem explicações, como foi no meu caso.

Eu era maldito, então foi necessário...

(Guilherme Henrique)>> A insônia me traz certos momentos de criatividade mórbida...

PássaroAzul
Enviado por PássaroAzul em 02/03/2019
Reeditado em 03/03/2019
Código do texto: T6587845
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