PRIMEIRO LUGAR
-A CASA DOS MIL LAMENTOS- CLTS 06
A primeira criança a sumir se chamava Pedro. Aconteceu numa tarde de agosto enquanto a sua mãe estendia os lençóis secos no varal para tirar o mofo. O vento estava forte e os tecidos leves voavam e cobriam seu rosto ao serem retirados do cesto. Um minuto de distração e a mulher parou de ouvir as risadas do garotinho que corria pelo terreiro. Pensou, a princípio, que o menino tivesse entrado na casa. Chamou, gritou, procurou pelas veredas, bateu nas portas dos vizinhos. Nada.
O lugar era pequeno, todos se conheciam. Alguns amigos formaram equipes de busca pela mata e outros procuraram pelas estradas vicinais. A última pista que tiveram da criança foi o caminhãozinho colorido que estava com o menino no instante do desaparecimento. O brinquedo foi encontrado próximo à margem do rio. Dois homens mergulharam na esperança de encontrar o corpo, mas nem sinal do Pedrinho.
Naquele mesmo dia, horas depois, foi a vez da caçula da dona Mirtes. Aurora sumiu enquanto brincava de esconder com as suas amiguinhas, perto da estrada. As buscas desta vez foram mais amplas. Carroceiros que passavam por ali ajudaram, procurando nos lugarejos próximos, sem sucesso. Foi assim que descobriram que crianças de outras vilas também haviam sumido.
Quando a terceira criança sumiu, o pânico já havia se instalado no lugar. Ninguém mais tinha liberdade de sair sozinho e havia sempre algum adulto de olho nos grupos de crianças que brincavam nas áreas comuns. Toda a vigilância, porém, não evitou que, na semana seguinte, mais duas crianças fossem levadas, duas da mesma casa, a mais jovem, um bebezinho de apenas oito meses e sua irmã de dez anos.
Assim como os desaparecimentos iniciaram, também pararam por um tempo. A sombra da morte fizera suas vítimas, era hora de partir.
A quadra chuvosa havia passado e as rodas da carroça no chão poeirento produziam um ruído crocante e hipnótico. A menina e seu irmãozinho pareciam imersos no mais profundo dos sonos. Os dois dormiam serenos, embalados pela vibração das tábuas.
Naquela manhã um homem os havia sequestrado.
A mãe havia deixado os dois em casa, e saiu para lavar roupa no chafariz público. No fim da tarde, já perto de escurecer, o homem alto empurrou a porta. As crianças dormiam quando ele chegou. Um cheiro doce inundou todo o quarto e eles mergulharam no mundo de sonhos perfeitos, onde seriam felizes para sempre...
Ainda estavam na estrada quando Alice acordou. A menina olhou em volta para saber onde estava. O caminho era diferente de tudo o que havia visto. Galhos e folhas saídos das árvores que margeavam os dois lados do caminho, se arrastavam pela madeira da carroça. Eram vegetais estranhos com uma aparência túmida. Das folhas intumescidas gotejava um líquido espesso, betuminoso, de odor repulsivo. Quando o vento tocava as pesadas folhas e seus frutos, o som de um murmúrio vindo de mil almas sem consolo, enchia de tristeza o coração dos viventes.
Depois de uma série de curvas seguidas, cruzaram o portão de ferro carcomido e continuaram por um caminho bem aberto que os levou até uma construção antiga, em ruínas. A medida que se aproximavam, a vegetação se tornava menos exuberante, e a poucos metros da casa não havia mais árvores, apenas esqueletos retorcidos da vegetação morta.
Quando a carroça encostou na calçada da velha casa, a menina já havia saltado com o irmão no colo e estava escondida atrás de uma pedra. Alice viu o condutor apeando e batendo a capa que usava, para limpar a poeira. Viu quando ele os procurou no meio da palha com gestos bruscos. Então Felipe acordou. E chorou... A lua saía de trás das nuvens no exato instante em que o homem se virou na direção do barulho. A luz batendo diretamente sobre a sua figura revelou um medonho rosto sem olhos, os dedos longos terminados em garras e a boca sem lábios de onde saíam as pontiagudas presas. Antes que a menina pudesse fazer qualquer coisa, o monstro deu um longo salto e foi cair bem na frente de onde ela se escondia. Alice estava perdida.
Dentro da casa o piso era de tacos de madeira, mal pregados. No centro do cômodo havia uma mesa enorme com dez lugares, oito deles ocupados por crianças, dentre elas, algumas suas conhecidas.
Alice não tinha onde se esconder, oito pares de olhos infantis viraram-se imediatamente para ela. Um dos meninos levou o indicador até os lábios, fazendo sinal de silêncio. O homem havia sumido com o bebê.
Uns trinta minutos depois ele voltou com uma grande travessa de onde saía a fumaça sinuosa de um ensopado. As crianças olhavam para o líquido, aflitas, enquanto o carroceiro, agora vestido como um mordomo, servia grandes conchas do caldo vermelho acobreado.
Em seguida a sineta que estava sobre a mesa foi tocada e a casa inteira estremeceu com o som de passos que se aproximavam, fazendo um estrépito apavorante.
Alice não estava preparada para o que viu a seguir: Da larga porta de folhas duplas, eis que surge uma criatura gigantesca e muito larga, com pés semelhantes às patas redondas de um elefante, a cada passo que o monstro dava pela frágil madeira do recinto, o assoalho ganhava novas rachaduras, trincando-se aqui e ali, como se fosse abrir-se em um enorme buraco, de repente.
As crianças à mesa seguravam as mãos umas das outras, tremendo... Alice olhava para elas e para o ser que se avolumava, se aproximando. Um monstro com aparência feminina, farejando o ar como um animal faminto.
Do lado de fora, na estrada além do portão, as plantas se agitavam e frutos semelhantes a pequenos rostos verdes, bramiam seus lamentos para a noite.
A criatura sentou à cabeceira numa cadeira esculpida em pedra. Então estendeu a enorme mão sobre a toalha de linho, e puxou a travessa com o resto da sopa para perto de si. Em seguida meteu a mão dentro do caldo e retirou de lá uma coisa esférica, como uma grande batata corada pelo molho ferruginoso. Alice só conseguiu decifrar do que se tratava quando a “mulher” girou o alimento com as mãos e cravou os dentes em um dos lados, arrancando o pedaço com facilidade. Foi nesse momento que a menina viu as órbitas vazias em um rosto conhecido. Ali, cozido em seu próprio sangue e sendo devorado por aquela fera monstruosa, estava o que um dia fora a cabeça do seu amigo Pedrinho.
O grito da menina saiu de sua boca sem que ela pudesse contê-lo. O sequestrador e a mulher monstro voltaram suas faces bizarras para ela. Por um momento, Alice imaginou que seria estraçalhada ali mesmo, mas depois de alguns segundos os dois seres retornaram para a comilança, indiferentes.
No dia seguinte, dez pessoas sentaram à mesa, uma delas era Alice. Quando a enorme travessa foi trazida, a mão esquerda da pequena Aurora foi o primeiro pedaço de carne tirado do caldo grosso. Mais uma vez as crianças se recusaram a comer, mais um dia com fome, alimentando-se de frutinhas secas que caíam de árvores distantes. Alice pensava o tempo inteiro em uma fuga, só não havia concretizado ainda porque não sabia onde o irmão estava.
Na noite do terceiro jantar, um menino foi escolhido, Alice sabia que era uma questão de tempo para que seus pedaços fossem devorados em um tétrico banquete. Precisava fazer alguma coisa. Após o repasto não saiu imediatamente do salão. Ficou num dos cantos torcendo para que os monstros não dessem pela sua presença. Viu quando a mulher elefante se afastou e o mordomo recolheu a louça. Já era madrugada quando o mordomo reapareceu. Pegou então um molho de chaves e saiu andado até onde as crianças estavam guardadas. Desceu a pequena escada. Sacou do bolso um embrulho com um pó brilhante com cheiro adocicado e o lançou no ar. Em seguida subiu com uma menininha no colo... A mais nova do grupo. Só não era mais nova que Felipe, seu irmão.
Não sabia o nome da menininha, era tão pequena que nem ela mesma saberia dizer. Ninguém das outras crianças a conhecia, e agora a sua pequena vida chegaria ao fim. Sem carinho, sem esperança, sem os cuidados da mãe.
Alice acompanhou o homem alto enquanto ele levava a criança para a pedra. A mulher – elefante já estava lá, aguardando. Colocaram o corpo adormecido na posição do golpe, mas, antes que o machado descesse sobre o delicado pescoço, a criança abriu os olhos e gritou. Os dois não esperavam por isso, a criança se agitava e tentava fugir. Por fim rolou o corpo e caiu no chão. Para evitar que fugisse, a mulher monstro pisou em sua cabeça esmagando o seu crânio e espalhando o seu conteúdo pelo chão.
Assim que as crianças acordaram elas se deram conta do sumiço da caçula. Aquela menina pequena e ingênua era o último resquício de inocência que havia naquela casa.
No meio da tarde um dos garotos se desesperou. Aproveitou que ninguém estava pelo quintal e correu para saída. Passou pelo portão de ferro e continuou correndo, à medida que avançava pelo caminho ia sentindo um forte abatimento. As plantas estendiam os galhos para impedi-lo e seus frutos gritavam escancarando as boquinhas de onde pingava uma baba verde. Até que o menino caiu.
Antes de conseguir se levantar, vários galhos se abaixaram até à altura de seu corpo e se enroscaram pelas suas pernas, puxando-as. Outro enlaçou o pescocinho delgado do menino apertando-o até que começasse a partir. Num ato final, o tentáculo de madeira arrancou a cabeça, trazendo junto a coluna vertebral inteira.
As crianças, enfileiradas no quintal da propriedade assistiram, perplexas, até que os pedaços foram arrastados pelas malditas plantas para dentro da floresta. Naquele momento Alice entendeu o motivo pelo qual as crianças não tentavam fugir da casa, apesar do portão sem cadeado.
O quarto onde as crianças dormiam agora tinha vários lugares desocupados, a iminência da morte enfraquecia o caráter, começaram a brigar entre si. Alice, por ser a mais novata, era o principal alvo das remanescentes. Uma noite as outras crianças a amarraram na cama para que fosse ela a escolhida. A menina tentava se soltar, mas a fraqueza causada pela alimentação escassa a impedia. No dia seguinte, porém, continuava viva.
Durante a tarde em que só restavam três crianças, viram o homem alto preparando a carroça e se encheram de esperança, Era terrível, mas o fio de humanidade que ainda havia dentro delas não conseguia deixar de se alegrar com a vinda de mais gado para o abate. Passaram o dia de vez em quando olhando para a estrada, tentando ver a carroça retornando cheia. Tentando adiar o inevitável. No refeição seguinte, olharam com indiferença mais um amiguinho ser devorado, e até aceitaram comer o pouco que colocaram nos pratos, sentindo mais nojo do que tristeza.
Na noite em que Alice dormiu sozinha no porão da casa, não teve sonhos. Comeu a sopa e roeu o braço da Maria laconicamente, nada mais importava. No dia seguinte, para sua surpresa, continuava viva. Correu até o pátio para ver se havia novas crianças, mas tudo estava tão igual a antes. Por que fora poupada?
Só quando a hora do jantar chegou foi que ela conseguiu compreender: Sobre a mesa, bem assado e com uma maçã na boca, num arremedo de refeição de gente normal, estava um bebê gorducho com aparência apetitosa, seu irmão Felipe.
O cheiro estava ótimo. Comeu com gosto.
No dia seguinte o homem alto trouxe uma nova leva de crianças. Alice suspirou, aliviada. Com a chegada daqueles inocentes o risco dela própria virar refeição diminuía muito, mas não era inexistente. Sentia que os dois monstros a viam com uma criança especial. Assim como eles, não tinha mais escrúpulos em devorar cada jantar macabro que as demais crianças recusavam. Parou de dormir no porão. Se ajeitava nas poltronas de couro rasgado da casa e assim evitava que o homem alto a entorpecesse com o pó adocicado, mas sabia também que a melhor maneira de ficar indiferente ao sofrimento das novas vítimas era estar sempre distante.
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Muito longe dali uma reunião enchia o salão principal da igreja. Distribuídos em bancos rústicos, homens e mulheres dos povoados onde as crianças haviam desaparecido elaboravam uma estratégia de ataque.
Já há algum tempo descobriram o homem alto levando um órfão, e o haviam seguido até a floresta. Não conseguiram alcançá-lo a tempo, os que iam na frente morreram estraçalhados pelas plantas. Os que retornaram para suas vilas juntaram-se aos outros para resolver o que fariam. Uma ação era necessária.
Alice notou que havia algo errado. O homem alto chegou com apenas uma criança, quando o costume era trazer cinco ou seis. Viu quando ele passou direto para a parte de cima da velha casa e demorou a voltar. Era tarde e a menina conduziu o menino novo para o porão onde ele se juntou aos demais.
Os dias seguiram tensos e silenciosos. Alice passou a ajudar na preparação dos jantares, e, lembrando das comidas que a mãe fazia, começou a introduzir ervas aromáticas nos assados e sopas, deixando a comida mais apetitosa. Dizia para si mesma que era a necessidade que a obrigava a isso, mas a verdade era que se deliciava com as sinistras iguarias.
Mais uma vez a carroça partiu. Alice calculou o retorno do homem para dali a quatro noites. Mas ao amanhecer do segundo dia, antes mesmo de escutar o trote do cavalo chegando, era possível ver o céu tomado por nuvens de fumaça negra e ouvir os guinchos das árvores que se retorcendo entre as altas chamas que as consumiam. O dia do juízo chegara, afinal.
De dentro da casa, os urros da mulher elefante eram medonhos. Chorava como uma mãe pelos filhos, enquanto, na floresta, os frutos com rostos de bebê chiavam, estalavam, e explodiam sob a ação do calor extremo. Seus gritos de agonia eram como o som de mil lamentos.
Em pouco tempo a multidão chegou aos portões disposta a tudo. As crianças, trancadas no porão, gritavam desesperadas e esmurravam o alçapão lá embaixo. Alice olhava para o cômodo sem saber que atitude tomar. Mesmo sendo uma criatura gigantesca, a mulher elefante não conseguiu se defender por muito tempo. Foi arrastada até uma das árvores ressecadas do pátio e lá amarrada e queimada entre gritos insandecidos.
Algumas pessoas destrancaram o alçapão e tiraram as crianças de lá. Reuniram todas no centro do pátio para que pudessem ser vistas pelos pais e mães. Depois de atearem fogo na velha casa, todos foram embora.
Pelo caminho era possível ver o que restara da floresta, a carroça do homem alto e os restos dele no chão. A longa capa, balançando ao vento, agora era um trapo inútil sobre o seu corpo sem vida.
A mãe de Alice a conduzia para casa. A menina caminhava de cabeça baixa, havia muito para ser explicado, e muito mais a ser escondido.
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O quarto das crianças estava exatamente igual ao que era antes. Clarissa passara a dormir lá desde o sumiço dos filhos. A volta de Alice não aplacara a dor da mulher. Não tivera coragem para perguntar, mas, de alguma forma, o rosto devastado da filha era suficiente para que ela entendesse que haviam perdido Felipe para sempre.
Fizeram uma festa para as crianças sobreviventes. Distribuíram brinquedos, reabriram a escola. A passagem do tempo, panaceia invísível para as mazelas da alma, ia tirando o peso da tragédia de dentro do coração dos inocentes.
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Não demorou muito para que coisas estranhas voltassem a acontecer. Primeiro foram os animais pequenos. Desapareciam por algum tempo e depois as cabeças eram encontradas pelas valas da cidade. Quando a pequena Lúcia sumiu do seu berço, ninguém imaginou que pudessem ser os monstros canibais que haviam devorados seus filhos. Estavam mortos, afinal. No conselho da comunidade, um lenhador levantou a hipótese de que tanto os animais como a bebê tivessem sido levados por algum animal. Um lobo enorme que já fora visto por algumas pessoas na floresta.
Enquanto os moradores se ocupavam em caçar um lobo sobrenatural que devorava criancinhas, o verdeiro monstro agia livremente e estava faminto.
Alice estava sempre pelos cantos. A menina se recusava a voltar para a escola e quando a mãe a questionou, alegou que não conseguia mais ler os livros de estudo. A verdade era que desde o tempo em que estivera com os seus sequestradores, Alice percebeu que a sua capacidade de enxergar as coisas ia diminuindo a cada dia, em compensação, o seu olfato se tornava mais poderoso a ponto de conseguir separar cada ingrediente colocado nas sopas feitas pela sua mãe.
Outras crianças desapareceram. As buscas ao lobo gigante se intensificaram, especialmente depois do ataque à velha senhora que morava numa casinha no meio da floresta. Sua neta havia jurado ter visto um enorme lobo sobre ela. A roupa ensanguentada era prova suficiente para que os moradores pegassem suas armas e matassem todos os animais que encontraram pela frente.
Quando Alice sumiu, sua mãe já não tinha mais lágrimas para chorar. Já perdera o bebê para os monstros e a mãe para um lobo gigante. Resolveu que era hora de sair dali.
Contam que depois da partida de Clarissa a vila entrou em plena decadência. Seus conhecidos foram todos indo embora, e as poucas famílias que restaram foram morar na floresta e ganhavam algum dinheiro com a venda de lenha.
Eventualmente, algumas crianças ainda sumiam. A maior parte das pessoas acreditava que aquilo era obra do lendário lobo mau. Poucos sabiam que no fundo da floresta uma bruxa quase completamente cega atraía crianças para sua casa com cheiro de doce. No fim das contas tudo virou lenda, contos de fadas que as mães liam para que os filhos não fizessem travessuras.
Enquanto as criancinhas dormiam, uma irreconhecível Alice passava o pó doce e entorpecente nas paredes da casa de sua avó. Quem sabe no dia seguinte tivesse mais sorte...
TEMA: CONTOS DE FADAS
O lugar era pequeno, todos se conheciam. Alguns amigos formaram equipes de busca pela mata e outros procuraram pelas estradas vicinais. A última pista que tiveram da criança foi o caminhãozinho colorido que estava com o menino no instante do desaparecimento. O brinquedo foi encontrado próximo à margem do rio. Dois homens mergulharam na esperança de encontrar o corpo, mas nem sinal do Pedrinho.
Naquele mesmo dia, horas depois, foi a vez da caçula da dona Mirtes. Aurora sumiu enquanto brincava de esconder com as suas amiguinhas, perto da estrada. As buscas desta vez foram mais amplas. Carroceiros que passavam por ali ajudaram, procurando nos lugarejos próximos, sem sucesso. Foi assim que descobriram que crianças de outras vilas também haviam sumido.
Quando a terceira criança sumiu, o pânico já havia se instalado no lugar. Ninguém mais tinha liberdade de sair sozinho e havia sempre algum adulto de olho nos grupos de crianças que brincavam nas áreas comuns. Toda a vigilância, porém, não evitou que, na semana seguinte, mais duas crianças fossem levadas, duas da mesma casa, a mais jovem, um bebezinho de apenas oito meses e sua irmã de dez anos.
Assim como os desaparecimentos iniciaram, também pararam por um tempo. A sombra da morte fizera suas vítimas, era hora de partir.
A quadra chuvosa havia passado e as rodas da carroça no chão poeirento produziam um ruído crocante e hipnótico. A menina e seu irmãozinho pareciam imersos no mais profundo dos sonos. Os dois dormiam serenos, embalados pela vibração das tábuas.
Naquela manhã um homem os havia sequestrado.
A mãe havia deixado os dois em casa, e saiu para lavar roupa no chafariz público. No fim da tarde, já perto de escurecer, o homem alto empurrou a porta. As crianças dormiam quando ele chegou. Um cheiro doce inundou todo o quarto e eles mergulharam no mundo de sonhos perfeitos, onde seriam felizes para sempre...
Ainda estavam na estrada quando Alice acordou. A menina olhou em volta para saber onde estava. O caminho era diferente de tudo o que havia visto. Galhos e folhas saídos das árvores que margeavam os dois lados do caminho, se arrastavam pela madeira da carroça. Eram vegetais estranhos com uma aparência túmida. Das folhas intumescidas gotejava um líquido espesso, betuminoso, de odor repulsivo. Quando o vento tocava as pesadas folhas e seus frutos, o som de um murmúrio vindo de mil almas sem consolo, enchia de tristeza o coração dos viventes.
Depois de uma série de curvas seguidas, cruzaram o portão de ferro carcomido e continuaram por um caminho bem aberto que os levou até uma construção antiga, em ruínas. A medida que se aproximavam, a vegetação se tornava menos exuberante, e a poucos metros da casa não havia mais árvores, apenas esqueletos retorcidos da vegetação morta.
Quando a carroça encostou na calçada da velha casa, a menina já havia saltado com o irmão no colo e estava escondida atrás de uma pedra. Alice viu o condutor apeando e batendo a capa que usava, para limpar a poeira. Viu quando ele os procurou no meio da palha com gestos bruscos. Então Felipe acordou. E chorou... A lua saía de trás das nuvens no exato instante em que o homem se virou na direção do barulho. A luz batendo diretamente sobre a sua figura revelou um medonho rosto sem olhos, os dedos longos terminados em garras e a boca sem lábios de onde saíam as pontiagudas presas. Antes que a menina pudesse fazer qualquer coisa, o monstro deu um longo salto e foi cair bem na frente de onde ela se escondia. Alice estava perdida.
Dentro da casa o piso era de tacos de madeira, mal pregados. No centro do cômodo havia uma mesa enorme com dez lugares, oito deles ocupados por crianças, dentre elas, algumas suas conhecidas.
Alice não tinha onde se esconder, oito pares de olhos infantis viraram-se imediatamente para ela. Um dos meninos levou o indicador até os lábios, fazendo sinal de silêncio. O homem havia sumido com o bebê.
Uns trinta minutos depois ele voltou com uma grande travessa de onde saía a fumaça sinuosa de um ensopado. As crianças olhavam para o líquido, aflitas, enquanto o carroceiro, agora vestido como um mordomo, servia grandes conchas do caldo vermelho acobreado.
Em seguida a sineta que estava sobre a mesa foi tocada e a casa inteira estremeceu com o som de passos que se aproximavam, fazendo um estrépito apavorante.
Alice não estava preparada para o que viu a seguir: Da larga porta de folhas duplas, eis que surge uma criatura gigantesca e muito larga, com pés semelhantes às patas redondas de um elefante, a cada passo que o monstro dava pela frágil madeira do recinto, o assoalho ganhava novas rachaduras, trincando-se aqui e ali, como se fosse abrir-se em um enorme buraco, de repente.
As crianças à mesa seguravam as mãos umas das outras, tremendo... Alice olhava para elas e para o ser que se avolumava, se aproximando. Um monstro com aparência feminina, farejando o ar como um animal faminto.
Do lado de fora, na estrada além do portão, as plantas se agitavam e frutos semelhantes a pequenos rostos verdes, bramiam seus lamentos para a noite.
A criatura sentou à cabeceira numa cadeira esculpida em pedra. Então estendeu a enorme mão sobre a toalha de linho, e puxou a travessa com o resto da sopa para perto de si. Em seguida meteu a mão dentro do caldo e retirou de lá uma coisa esférica, como uma grande batata corada pelo molho ferruginoso. Alice só conseguiu decifrar do que se tratava quando a “mulher” girou o alimento com as mãos e cravou os dentes em um dos lados, arrancando o pedaço com facilidade. Foi nesse momento que a menina viu as órbitas vazias em um rosto conhecido. Ali, cozido em seu próprio sangue e sendo devorado por aquela fera monstruosa, estava o que um dia fora a cabeça do seu amigo Pedrinho.
O grito da menina saiu de sua boca sem que ela pudesse contê-lo. O sequestrador e a mulher monstro voltaram suas faces bizarras para ela. Por um momento, Alice imaginou que seria estraçalhada ali mesmo, mas depois de alguns segundos os dois seres retornaram para a comilança, indiferentes.
No dia seguinte, dez pessoas sentaram à mesa, uma delas era Alice. Quando a enorme travessa foi trazida, a mão esquerda da pequena Aurora foi o primeiro pedaço de carne tirado do caldo grosso. Mais uma vez as crianças se recusaram a comer, mais um dia com fome, alimentando-se de frutinhas secas que caíam de árvores distantes. Alice pensava o tempo inteiro em uma fuga, só não havia concretizado ainda porque não sabia onde o irmão estava.
Na noite do terceiro jantar, um menino foi escolhido, Alice sabia que era uma questão de tempo para que seus pedaços fossem devorados em um tétrico banquete. Precisava fazer alguma coisa. Após o repasto não saiu imediatamente do salão. Ficou num dos cantos torcendo para que os monstros não dessem pela sua presença. Viu quando a mulher elefante se afastou e o mordomo recolheu a louça. Já era madrugada quando o mordomo reapareceu. Pegou então um molho de chaves e saiu andado até onde as crianças estavam guardadas. Desceu a pequena escada. Sacou do bolso um embrulho com um pó brilhante com cheiro adocicado e o lançou no ar. Em seguida subiu com uma menininha no colo... A mais nova do grupo. Só não era mais nova que Felipe, seu irmão.
Não sabia o nome da menininha, era tão pequena que nem ela mesma saberia dizer. Ninguém das outras crianças a conhecia, e agora a sua pequena vida chegaria ao fim. Sem carinho, sem esperança, sem os cuidados da mãe.
Alice acompanhou o homem alto enquanto ele levava a criança para a pedra. A mulher – elefante já estava lá, aguardando. Colocaram o corpo adormecido na posição do golpe, mas, antes que o machado descesse sobre o delicado pescoço, a criança abriu os olhos e gritou. Os dois não esperavam por isso, a criança se agitava e tentava fugir. Por fim rolou o corpo e caiu no chão. Para evitar que fugisse, a mulher monstro pisou em sua cabeça esmagando o seu crânio e espalhando o seu conteúdo pelo chão.
Assim que as crianças acordaram elas se deram conta do sumiço da caçula. Aquela menina pequena e ingênua era o último resquício de inocência que havia naquela casa.
No meio da tarde um dos garotos se desesperou. Aproveitou que ninguém estava pelo quintal e correu para saída. Passou pelo portão de ferro e continuou correndo, à medida que avançava pelo caminho ia sentindo um forte abatimento. As plantas estendiam os galhos para impedi-lo e seus frutos gritavam escancarando as boquinhas de onde pingava uma baba verde. Até que o menino caiu.
Antes de conseguir se levantar, vários galhos se abaixaram até à altura de seu corpo e se enroscaram pelas suas pernas, puxando-as. Outro enlaçou o pescocinho delgado do menino apertando-o até que começasse a partir. Num ato final, o tentáculo de madeira arrancou a cabeça, trazendo junto a coluna vertebral inteira.
As crianças, enfileiradas no quintal da propriedade assistiram, perplexas, até que os pedaços foram arrastados pelas malditas plantas para dentro da floresta. Naquele momento Alice entendeu o motivo pelo qual as crianças não tentavam fugir da casa, apesar do portão sem cadeado.
O quarto onde as crianças dormiam agora tinha vários lugares desocupados, a iminência da morte enfraquecia o caráter, começaram a brigar entre si. Alice, por ser a mais novata, era o principal alvo das remanescentes. Uma noite as outras crianças a amarraram na cama para que fosse ela a escolhida. A menina tentava se soltar, mas a fraqueza causada pela alimentação escassa a impedia. No dia seguinte, porém, continuava viva.
Durante a tarde em que só restavam três crianças, viram o homem alto preparando a carroça e se encheram de esperança, Era terrível, mas o fio de humanidade que ainda havia dentro delas não conseguia deixar de se alegrar com a vinda de mais gado para o abate. Passaram o dia de vez em quando olhando para a estrada, tentando ver a carroça retornando cheia. Tentando adiar o inevitável. No refeição seguinte, olharam com indiferença mais um amiguinho ser devorado, e até aceitaram comer o pouco que colocaram nos pratos, sentindo mais nojo do que tristeza.
Na noite em que Alice dormiu sozinha no porão da casa, não teve sonhos. Comeu a sopa e roeu o braço da Maria laconicamente, nada mais importava. No dia seguinte, para sua surpresa, continuava viva. Correu até o pátio para ver se havia novas crianças, mas tudo estava tão igual a antes. Por que fora poupada?
Só quando a hora do jantar chegou foi que ela conseguiu compreender: Sobre a mesa, bem assado e com uma maçã na boca, num arremedo de refeição de gente normal, estava um bebê gorducho com aparência apetitosa, seu irmão Felipe.
O cheiro estava ótimo. Comeu com gosto.
No dia seguinte o homem alto trouxe uma nova leva de crianças. Alice suspirou, aliviada. Com a chegada daqueles inocentes o risco dela própria virar refeição diminuía muito, mas não era inexistente. Sentia que os dois monstros a viam com uma criança especial. Assim como eles, não tinha mais escrúpulos em devorar cada jantar macabro que as demais crianças recusavam. Parou de dormir no porão. Se ajeitava nas poltronas de couro rasgado da casa e assim evitava que o homem alto a entorpecesse com o pó adocicado, mas sabia também que a melhor maneira de ficar indiferente ao sofrimento das novas vítimas era estar sempre distante.
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Muito longe dali uma reunião enchia o salão principal da igreja. Distribuídos em bancos rústicos, homens e mulheres dos povoados onde as crianças haviam desaparecido elaboravam uma estratégia de ataque.
Já há algum tempo descobriram o homem alto levando um órfão, e o haviam seguido até a floresta. Não conseguiram alcançá-lo a tempo, os que iam na frente morreram estraçalhados pelas plantas. Os que retornaram para suas vilas juntaram-se aos outros para resolver o que fariam. Uma ação era necessária.
Alice notou que havia algo errado. O homem alto chegou com apenas uma criança, quando o costume era trazer cinco ou seis. Viu quando ele passou direto para a parte de cima da velha casa e demorou a voltar. Era tarde e a menina conduziu o menino novo para o porão onde ele se juntou aos demais.
Os dias seguiram tensos e silenciosos. Alice passou a ajudar na preparação dos jantares, e, lembrando das comidas que a mãe fazia, começou a introduzir ervas aromáticas nos assados e sopas, deixando a comida mais apetitosa. Dizia para si mesma que era a necessidade que a obrigava a isso, mas a verdade era que se deliciava com as sinistras iguarias.
Mais uma vez a carroça partiu. Alice calculou o retorno do homem para dali a quatro noites. Mas ao amanhecer do segundo dia, antes mesmo de escutar o trote do cavalo chegando, era possível ver o céu tomado por nuvens de fumaça negra e ouvir os guinchos das árvores que se retorcendo entre as altas chamas que as consumiam. O dia do juízo chegara, afinal.
De dentro da casa, os urros da mulher elefante eram medonhos. Chorava como uma mãe pelos filhos, enquanto, na floresta, os frutos com rostos de bebê chiavam, estalavam, e explodiam sob a ação do calor extremo. Seus gritos de agonia eram como o som de mil lamentos.
Em pouco tempo a multidão chegou aos portões disposta a tudo. As crianças, trancadas no porão, gritavam desesperadas e esmurravam o alçapão lá embaixo. Alice olhava para o cômodo sem saber que atitude tomar. Mesmo sendo uma criatura gigantesca, a mulher elefante não conseguiu se defender por muito tempo. Foi arrastada até uma das árvores ressecadas do pátio e lá amarrada e queimada entre gritos insandecidos.
Algumas pessoas destrancaram o alçapão e tiraram as crianças de lá. Reuniram todas no centro do pátio para que pudessem ser vistas pelos pais e mães. Depois de atearem fogo na velha casa, todos foram embora.
Pelo caminho era possível ver o que restara da floresta, a carroça do homem alto e os restos dele no chão. A longa capa, balançando ao vento, agora era um trapo inútil sobre o seu corpo sem vida.
A mãe de Alice a conduzia para casa. A menina caminhava de cabeça baixa, havia muito para ser explicado, e muito mais a ser escondido.
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O quarto das crianças estava exatamente igual ao que era antes. Clarissa passara a dormir lá desde o sumiço dos filhos. A volta de Alice não aplacara a dor da mulher. Não tivera coragem para perguntar, mas, de alguma forma, o rosto devastado da filha era suficiente para que ela entendesse que haviam perdido Felipe para sempre.
Fizeram uma festa para as crianças sobreviventes. Distribuíram brinquedos, reabriram a escola. A passagem do tempo, panaceia invísível para as mazelas da alma, ia tirando o peso da tragédia de dentro do coração dos inocentes.
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Não demorou muito para que coisas estranhas voltassem a acontecer. Primeiro foram os animais pequenos. Desapareciam por algum tempo e depois as cabeças eram encontradas pelas valas da cidade. Quando a pequena Lúcia sumiu do seu berço, ninguém imaginou que pudessem ser os monstros canibais que haviam devorados seus filhos. Estavam mortos, afinal. No conselho da comunidade, um lenhador levantou a hipótese de que tanto os animais como a bebê tivessem sido levados por algum animal. Um lobo enorme que já fora visto por algumas pessoas na floresta.
Enquanto os moradores se ocupavam em caçar um lobo sobrenatural que devorava criancinhas, o verdeiro monstro agia livremente e estava faminto.
Alice estava sempre pelos cantos. A menina se recusava a voltar para a escola e quando a mãe a questionou, alegou que não conseguia mais ler os livros de estudo. A verdade era que desde o tempo em que estivera com os seus sequestradores, Alice percebeu que a sua capacidade de enxergar as coisas ia diminuindo a cada dia, em compensação, o seu olfato se tornava mais poderoso a ponto de conseguir separar cada ingrediente colocado nas sopas feitas pela sua mãe.
Outras crianças desapareceram. As buscas ao lobo gigante se intensificaram, especialmente depois do ataque à velha senhora que morava numa casinha no meio da floresta. Sua neta havia jurado ter visto um enorme lobo sobre ela. A roupa ensanguentada era prova suficiente para que os moradores pegassem suas armas e matassem todos os animais que encontraram pela frente.
Quando Alice sumiu, sua mãe já não tinha mais lágrimas para chorar. Já perdera o bebê para os monstros e a mãe para um lobo gigante. Resolveu que era hora de sair dali.
Contam que depois da partida de Clarissa a vila entrou em plena decadência. Seus conhecidos foram todos indo embora, e as poucas famílias que restaram foram morar na floresta e ganhavam algum dinheiro com a venda de lenha.
Eventualmente, algumas crianças ainda sumiam. A maior parte das pessoas acreditava que aquilo era obra do lendário lobo mau. Poucos sabiam que no fundo da floresta uma bruxa quase completamente cega atraía crianças para sua casa com cheiro de doce. No fim das contas tudo virou lenda, contos de fadas que as mães liam para que os filhos não fizessem travessuras.
Enquanto as criancinhas dormiam, uma irreconhecível Alice passava o pó doce e entorpecente nas paredes da casa de sua avó. Quem sabe no dia seguinte tivesse mais sorte...
TEMA: CONTOS DE FADAS