A MISSA DAS CAVEIRAS.
São João da Serra, povoado do interior de Minas, vivia da saudade das riquezas da era do ouro e das fazendas de cana de açúcar. As cinco igrejas da vila de cinco mil habitantes, com altares banhados a ouro, era a herança dessas épocas de opulência. Os senhores de engenho eram enterrados dentro dessas igrejas. Cemitérios eram coisa para os pobres. Os ricos fazendeiros deixavam centenas de missas pagas, anteriormente, aos sacerdotes, para que as almas deles tivessem a garantia de entrarem no céu. O padres, com os bolsos cheios do dinheiro dos ricos coronéis, passavam as madrugadas rezando as missas. Aquelas missas, se acreditava, eram a porta de entrada do fazendeiro nos céus. Acontece que, com tanta maldade acumulada em vida, nem centenas de milhares de missas pagas salvariam aqueles violentos coronéis do fogo do inferno. Eram senhores de escravos que tratavam os negros com brutalidade e castigos sem igual. Em cada terreiro de fazenda um tronco, uma senzala e instrumentos de torturas. Os ricos coronéis tinham dezenas de filhos bastardos. Tinham dezenas de crimes nas costas. A igreja de São Paulo dos Pretos destoava das demais. Era a mais simples e singela. Altar de madeira. Piso de terra batida, vermelho como o sangue dos que deram a vida nas senzalas. Ficava no alto do Morro do Encantado. Quem ali entrava sentia uma paz e cheiro de rosas. Nas demais igrejas o ambiente era pesado. O ouro dos altares, ricamente ornados, era tirado das minas pelos escravos. Era produto do trabalho escravo. Nas laterais das igrejas ficavam as lápides de mármore dos túmulos dos coronéis, protegidos por uma corrente dourada. Uma placa de prata constava o nome do falecido. Bispos e padres eram enterrados numa cripta ou nos fundos dos altares. Os netos dos antigos escravos contavam histórias de terror, passadas oralmente, de geração a geração. As crianças morriam de medo ao ouvir essas histórias, ao redor das fogueiras. -" Se ouvirem o sino, as três da manhã, não vão a igreja nem saiam de casa!!!" Disse o negro Gervásio aos amigos. -"Em 1728, o padre José Ignácio morreu antes de rezar as quinhentas missas que o coronel Fabriciano havia lhe pago. O coronel morreu. Era um capeta. O padre, um loiro de olhos azuis, era amante da Lurdinha, filha do capitão Herculano. Lurdinha embuchou mas a cidade toda sabia que o menino era fio do padre. Tinoco era filho do padre. O capitão e o marido de Lurdinha, Filomeno, descobriram tudo e mataram o padre. Maldição das bravas matar um padre. Agora, aos domingos, três da madrugada, o padre sai da cripta, debaixo da igreja das Mercês, pra acabar de rezar as missas que recebera antes. A caveira do coronel também assiste a missa. Dizem que até as caveiras de Lurdinha, Filomeno e Fabriciano e Tinoco vão ver a missa em latim do padre pecador. Meu pai contava isso e eu acredito!!!" Gustavo, Antonino e Luiz, que ouviam o causo, se benzeram. Cosme deu uma gargalhada. -" Balela, meu amigo. Nunca ouvi esse sino. Tudo mentira. No domingo eu entrarei nas Mercês, às três da madrugada. Vou filmar com o celular!!! Provarei que é mentira o que diz!!!" Gervásio tentou demovê-lo daquela sandice mas não teve jeito. No domingo, Gervásio acordou assustado. Acendeu a luz. Eram duas e meia da manhã. Ele ouviu sinos tocando. Abriu a janela. Um vento forte soprava. Ele se arrepiou. - " As almas estão indo pra missa das caveiras. Credo em cruz!!!" Olhou e viu Cosme indo em direção a igreja das Mercês. Gervásio fechou a janela e se benzeu, voltando pra cama. -" Sujeito teimoso. Vai bulir com os mortos, vai se dar mal."
Rezou o terço e adormeceu. Cosme não escutou os sinos nem viu a imensa fila de caveiras que atravessavam as portas da igreja. Abriu a porta lateral, apenas encostada, entrando na igreja. A luz da lua cheia entrava pelos vitrais. Cosme riu. Acendeu a lanterna e ligou a câmera do celular, filmando um pouco a igreja. Olhou o relógio. Três horas em ponto. Ele não viu mas fantasmas cadavéricos passaram por ele. Dez caveiras, vestidas de coroinhas, formavam a procissão de entrada. Tinham as batinas brancas com bordas vermelhas. O coronel Fabriciano sentou-se ao lado de Cosme. Lurdinha caveira suspirava pelo padre caveira, José Ignácio, o bonito sacerdote loiro de olhos azuis. O capitão caveira, Herculano, tinha um bacamarte apontado para o altar. O padre rezava a missa em latim, de costas para a assembléia. -" Três e meia, filmando. Cosme, o valente. Tudo escuro, nada de fantasmas aqui." Ele sentiu um toque na perna. Achou que fosse um rato. -"Moço!! Deixa eu ver????" Cosme iluminou o garoto com a lanterna. Levou um susto. -"Ora... vai dormir, moleque. Gervásio o mandou, foi?!!??!" O garoto sorriu. -"Sou Tinoco!!!!" Cosme iluminou o rosto do menino com a lanterna. O menino agora se mostrava uma caveira. Olhos vermelhos. Cosme se arrepiou todo. Ele gritou, apavorado. As velas da igreja se acenderam sozinhas. Tudo claro. Cosme viu aquelas caveiras na igreja. O padre, paramentado com uma batina branca e capa dourada, virou a cabeça pra trás e encarou o intruso. Olhos de fogo. Sorriso macabro. -" Morte... morte ao intruso!!!" Gritou o sacerdote. As caveiras da igreja olhavam todas pra Cosme. Herculano, caveira e fantasma, deu um tiro em Cosme. O rapaz sentiu uma pontada no peito e caiu no chão de madeira da igreja. O sol raiou. O padre Flávio abriu, como sempre, a igreja das Mercês, as seis horas da manhã. O terço dos homens começaria dali há pouco. Tropeçou em Cosme. -" Cosme... Cosme....Meu Deus!!! Está morto!!!" O moço não respirava. O padre chamou ajuda. O dentista Robson e o gari Lourival foram a igreja. O cabo Arlindo chegou. Gervásio e os amigos de Cosme custaram a crer que o amigo falecera. Uma semana após o velório e sepultamento de Cosme, os amigos lembraram do vídeo no celular dele. Luiz pediu o celular de Cosme emprestado da tia do morto. Queriam abrir o vídeo que Cosme filmara no domingo da sua morte. Os amigos se reuniram na mesa do bar do Chico. Luiz abriu o vídeo mas os quatro minutos de filmagem estavam escuros. Nada se via. F I M.