FRAGILIDADE... parte 2

No outro dia, fui para o trabalho ouvindo música. A playlist começou a tocar uma música que me faz lembrar de minha mãe. Por um momento, tive uma epifania temporal.

Recuperei-me da lembrança e mudei de música.

Ao adentrar a empresa e dirigir-me até meu local de trabalho, percebi uma movimentação diferente ali. Pessoas novas foram contratadas e os supervisores estavam apresentando o ambiente. Iniciei minha rotina normalmente.

Até colocarem uma moça ao meu lado.

Ao olhar para ela, tremo e paraliso com seu “Olá! Bom dia!”.

Seus olhos castanhos escuros, lábios na medida, sorriso largo, pele moreno-clara, com traços indígenas e mestiços e um pequeno furinho no queixo fizeram-me pensar que era uma pintura de quadro caríssima que estava diante de mim. Ela era simplesmente... linda. E esse adjetivo nunca usei ou pensei de nenhuma moça que tive encontro.

- Bom dia. Meu nome é Ecov.

Não quis perguntar o dela, mas ela já foi dizendo:

- Me chamo Dalila.

Nome estranho.

O dia foi fatídico. Não puxei muito assunto com a moça, que também não se importava com meu silêncio a respeito de assuntos triviais. Apenas o trabalho importava, porém nem isso me dava vontade de explicar-lhe, embora o fizesse para o treinamento da empresa.

Todavia, na volta para a casa, ela tomou o mesmo ônibus que eu. Sentei-me num banco do transporte público em que cabia mais um. Para minha surpresa, ela sentou-se ao meu lado, mesmo percebendo de longe minha cara fechada e de poucos amigos.

Coloquei meus fones e a ignorei, mas não pude fazer isso por muito tempo. Sentia sensações estranhas perto dela.

Ao olhar para ela de relance, ela se virou simultaneamente e isso me foi um choque. Não resisti... decidi tirar os fones e conversar sobre... trabalho. E nessas muitas conversas de ônibus me dei conta que me apaixonei pela estranha moça.

O tempo foi passando e, por causa de sua doçura, fui me tornando uma pessoa um pouco mais sociável e menos carrancuda. Porém nunca lhe falei nada sobre minha infância, nem sobre o terror que eu carregava na alma.

Desse amor repentino que nasceu, nos casamos após três anos de relacionamento.

Na noite de núpcias, tive o mesmo pesadelo que por vezes me atormentava, porém decidi não revelar nada a ela, pois toda fobia tem um nascedouro e o meu... era terrível demais para expressar.

Decidimos visitar sua mãe no meio do ano. Ao chegarmos, fomos muito bem recebidos. Ela estava com um de seus netinhos de quatro anos, David.

Eu estava muito feliz por ter me casado com Dalila. Ela me reconhecia como o homem da casa e orgulhava-se de se chamar minha esposa. Entretanto, um casamento baseia-se em confiança... e como eu iria confiar para a mulher que eu amava meu segredo mais nefasto?

A noite chega. Dormimos lá para voltar para casa no dia seguinte. Como tenho vergonha de usar o banheiro dos outros, acordei no meio da madrugada. Desci as escadas devagar e, sem acender as luzes, fui até o banheiro da cozinha, levando meu celular para iluminar o caminho. Na casa havia dois banheiros: um próximo à cozinha e outro próximo ao quarto da minha sogra.

Acabei optando pelo banheiro azulejado com pedras de cerâmica brancas, uma pia com espelho e, do outro lado, prateleiras para diversos objetos.

Decidi apagar a luz do banheiro para não ser notado e liguei a lanterna. Lavei meu rosto e me olhei no espelho.

Ao me olhar, o espelho refletiu a prateleira de plástico branco do outro lado da parede. Em cima dela, havia um brinquedo do pequeno David. Um mero pato de borracha que ele esquecera no banheiro antes de dormir, e sua avó o guardou ali.

Aquele mero brinquedo, visto de modo mal iluminado pela luz do celular, estava com os olhos voltados para o espelho e parecia estar olhando para mim.

Ao fixar meu olhar no objeto, seus olhos negros pareceram se avolumar e fitar meu ser com dois buracos negros horripilantes.

Paralisado e tremulante, tentei sair do banheiro, porém o imóvel brinquedo, na minha mente, tornara-se um dragão devorador de almas pronto a afligir-me o pior dos castigos. E a pior das torturas, para mim, era o seu olhar.

Pareceu que as dimensões do pequeno cubículo azulejado tornou-se uma masmorra. Minha respiração tornou-se pausadamente forte e ia acelerando junto com meus batimentos cardíacos. Minha lanterna se apagara de repente. Tentei reacende-la, sem conseguir tirar os olhos do pato de borracha.

No mesmo instante de escuridão total, percebi que o brinquedo caiu da prateleira e faz um pequeno ruído no chão. Foi como se ele tivesse descido as profundezas da terra sombria e gritasse meu nome com aquele barulho.

Minha mãe me veio à mente como um raio. Soltei um estridente grito de desespero fazendo todos da casa acordar...

Continua...

Leandro Severo da Silva e Mariel F. Santolia (edição e revisão)
Enviado por Leandro Severo da Silva em 23/02/2019
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