Terceiro Lugar
Canto da Sereia - CLTS 06
 
 
- a missão -

          Vozes aconchegantes, convincentes, chegavam de mansinho, soprando no meu ouvido e eis que fui enrodilhada na teia, para o reino do sem fim. Eram realmente perniciosas, como o canto da sereia. Fui vítima. Foi através dessas vozes que tudo começou.
 
       Depois do almoço, a gente tinha, obrigatoriamente de ir repousar no dormitório coletivo do orfanato (coisa de que me lembro, nem o Papa tinha permissão de falar, brincar nessa hora), sem muito que fazer, na penumbra. Era difícil conciliar a vinda do sono. O campo (aliás, o ouvido) estava já preparado para a sementeira.

           Mas, antes de falar das vozes, tenho de contar da Irmã, que me pegou pelo pé, desde que cheguei, e cismou de me levar ao Bom Pastor. Não me dava tréguas: cada dia um novo livro de religião, fora a "sua" Bíblia que fizera questão de deixar na minha mesinha de cabeceira.

         — Irmã, já sei a Bíblia de cor, estou em paz com Deus, a senhora pode cuidar das outras meninas — ela não se convencia. Vinha me visitar umas três, quatro vezes por dia, a pretexto de remédios ou de nada, sempre com a ideia fixa de que me levaria à missa aos domingos, ou pelo menos, a uma visita à capela. Mais tarde, coitada, ela seria a primeira a se arrepender, como me confessou, quase chorando, sentindo-se culpada daquela insistência. Coisas que aconteceram, graves, e de que ela foi testemunha.

         Então, as primeiras vozes começaram me insinuando uma busca da fé. Sopraram-me no ouvido que eu estava perdida sem o Deus de minha mãe, que me reservaram uma missão maior. Insistiam que me mantivesse atenta, pois elas seriam o meu guia. Enfim, ao cabo de meses, vencida, acreditei, numa missão divina, para o espanto de mim mesma. Mas, àquela altura, quem diria que eu era a mesma? Quem me reconheceria?

            A missão a enfrentar se delinearia nos anos seguintes — fui muito além das minhas intenções.
 
 
 

- o comando -

          Chegou o dia em que deveria enfrentar o mundo. Para onde ir? Uma louca vontade vinda de não sei qual parte do meu cérebro, dizia-me categórica: volte para casa! Forcei-me a princípio, armei mentalmente todos os gestos para me segurar, mas nada, as vozes me comandavam: o destino me levava para o velho casarão da vovó, no campo. E, daí para frente, o que fiz foi só atendê-las.
 
          A primeira sensação a seguir foi de medo. Entrei para a velha casa e fiquei ouvindo o remoto das vozes vindas de fora, parecia ter-me refugiado numa ilha A solidão não era mais para mim um exercício sentimental. Estava era conhecendo outro mundo, ou regressava ao antigo? Esperava, sinceramente, que aquilo não durasse. Tentei contemporizar comigo mesmo, que não era comandada. No entanto, caí... Observei a garota que voltava da escola, os longos cabelos castanhos presos num rabo-de-cavalo balançante, como a dizer: tudo bem, se não tem outro jeito.... Ela não me daria seu cabelo de bom grado. Tinha que tomar. Entrei em pânico, desandei a suar, ao mesmo tempo que um vendaval lá no fundo, ou era uma vozinha lá longe, soprava...

          Minutos depois, eu tinha um escalpo nas mãos e um corpo jogado no rio. Sem a mínima possibilidade de remorso? Levei meu troféu para casa. Era puro instinto... Não sabia bem como aquilo poderia terminar. Liberei minha imaginação para os grandes voos proibidos e ingênuos de uma missão divina. Nada mais me bloquearia.

          Antes que essa lembrança se apagasse por completo, estava na loja em que trabalhava fazendo limpeza — na cidade próxima. Era um sobradinho de três andares. Dirigi-me à sacada, na tentativa de aspirar um pouco mais de ar. A angústia me sufocava: jamais haveria ar suficiente para romper minha garganta. Tudo durou uma eternidade. A mulher apareceu ali. Só nós duas. Ela chorando pelo chefe que voltara para a esposa, só pensei em fazê-la descansar desta vida. Não usei muita força. Não estava em fúria. Neste estado e ouvindo vozes que riam de mim, a força veio naturalmente. Eu a apunhalei na cabeça. Sem errar o golpe, extraí um olho e, o outro. Espirrou muito sangue.

          — Mas, por que os olhos? — interveio a ouvinte.

        — Perturbavam-me de tal maneira que eu precisava tê-los mais perto de mim. Muito pretos, muito doces.  — simples. — Continuo?
 
         Outra pequenina, treze anos, parecia mais velha. Empurrou suavemente a porta, abriu as janelas, deixou entrar o ar. Não me percebeu a tempo nas sombras do quarto: uma punhalada certeira e o nariz extirpado. Da mocinha, um pouco mais alta e magra, peguei os pelos castanhos das sobrancelhas, pálpebras e cílios. Outra veio com os cabelos molhados de chuva e se vai quando a deixo sem os lábios, sem os brancos dentes. Eu, firme em minha tarefa. Mãos nervosas, olhos úmidos, não podia desistir do que havia começado.

          Corríamos pelas trilhas, na mata. Quando comecei a fazer um barulho atrás dela, deve ter pensado que ia atacar sua nuca ou suas costas. Ao olhar para trás, riu do seu temor. Como alguém, da sua idade, da sua altura, da sua aparência poderia lhe causar algum mal? E qual não foi sua surpresa ao sentir a faca esburacar as entranhas. Cortei-lhe a língua.

         Os demônios bramiam por mais... Essa usava um top muito justo. As orelhas me chamaram a atenção, vieram com os brincos de pingente, brilhantes... Mais uma estava caminhando adiante e não me notou. Eu a surpreendi e mirei os rins. Ela cambaleou. Era uma faca longa e, obviamente, a atravessou. E a deixei imóvel. Pude colher também a pele de que necessitava, das nádegas, das pernas.
Estávamos no chão, meu corpo sobre o dela. Seus braços presos pelos meus. Seus olhos em mim e uma respiração ofegante. Ao chegar perto do pescoço, pude sentir o seu perfume, aliado ao seu cheiro natural. Não podia tomar-lhe o perfume... Seu coração acelerado se encontrava com o meu. Já sabia! O coração seria o espólio do dia, era o que mais importava naquele momento.

          Era dia, fazia sol. A jovem namorava entre as árvores. Mostrou os pequeninos seios nascentes e disse: “Veja, pegue, você é tão bobo!”. Pareceu-me que o tempo não passava. O celular tocou e o rapaz despediu-se apressado. Os seios seriam meus, não dele...
Era uma danceteria, estava ali jogada, não sei como fui para ali. A moça me aperta a mão. Afago-lhe a cabeça, como uma irmã. Bebemos, dançamos. Ofereceu-me carona. O volante me atraía segurado firme por dedos longos e brancos. Na despedida, não me segurei. As vozes.... Carro e motorista no barranco.

          E outras, um talho roxo na coxa descoberta, a jugular perfurada, o sangue espirrado — para sempre mortas — fígado sangrento, pulmões perdidos, estômago, bexiga. Matei com um longo punhal a minha vigésima terceira sósia; todas elas fruto de uma longa busca, de uma apurada escolha. Confundiam-se em minha mente, acabaram se tornando uma só. Sem nomes, sem nenhum grito, as carnes rangendo. Pedaços de cadáveres, com intervalos cada vez mais próximos; restos jogados em qualquer buraco, cobertos de formigas. Eu estava extremamente viva durante cada colheita.
 
 

- a investigação –

          A princípio, os investigadores nem perceberam o que acontecia. Desaparecimentos, acidentes.  Depois foram costurando: mutilações (partes não encontradas), moças comuns, estruturas corpóreas similares. Acabaram achando duas ou três covas cheias de pedaços sangrentos das mulheres. Imaginaram estar em busca de um homem que matava por sexo, mas as vítimas não foram violadas ou torturadas; não havia sinais de tensão. Vingança, poder, dinheiro? Essa distorção alimentou minha vaidade e, as vozes me conduziram por caminhos sem volta… e, então, escrevi um bilhete, na antiga máquina de datilografia encontrada no casarão. Por que não uma mulher? Depois, cartas anônimas, montadas com letras impressas, recortadas pacientemente de jornais. Um alvoroço na delegacia.

           A mente humana é uma fonte infinita de mistérios e segredos. Eu era mera farejadora.   Um nada. Como animal, matei aquelas moças. Morreram pelos meus motivos. Não lamentei os seus gritos de horror. Apenas me interessava tirar aquilo de que necessitava. Tinha os meus objetivos e os seres que me rodeavam, importavam, como curta e amável visão, como passadiças sombras adocicadas.  As vozes me chegavam densas, ofereciam promessas...
Agora eu não era só uma caçadora; também era um alvo, desarmado, fraco e sem reação. Eu já estava acostumada a viver rastejando, não olhava mais para o alto. Não olhava mais ao redor. Já adquirira todas as peças de que precisava. Montei o quebra-cabeças e voltei para a Bíblia. Li e reli, rezei e xinguei. Obedeci a todos os preceitos e nada... Aguardei a tempestade, raios e trovões... absolutamente nada.

          Foi quando comecei mais uma das caçadas a que me rendi. A cicatriz no ombro estava se fechando completamente, mas foi ela que me deu nova chance. Ao me transformar em minha forma real, os olhos da enfermeira se arregalaram, revelando um susto que ativou meus membros efetuando, sem hesitar, a última cirurgia: um cérebro.
 
 

- o gatilho -

         Som de um pequeno estouro... Gemidos. e, mais tarde, a mãe despedindo-se do namorado. Latinha queimada na beirada da cama. Cigarro esquecido entre os lábios. Léa lança a gasolina; eu risco o fósforo. Fumaça e chamas se alastram. Corri, corri como nunca.  A mão esquelética reteve minha irmãzinha. Ameaçada permanência... De longe, o rosto dela aflorava iluminado. Vi que ela sucumbia. E me vi perdida, em seu olhar despido. Sua ausência gerou muita dor em mim. Sol posto. Desespero incontido.

       Orfanato. Os cômodos do prédio cheios de pessoas que falavam, moviam-se, mas as palavras não diziam nada, batiam contra o ar e se diluíam, aumentando o vazio fundo. Culpa. A voz de Léa repetia: preciso de você (intimidade de gêmeas?). Matei-a? Pelas vozes que eu criava: ressuscite-a, então, qual a filha do Jairo, a mulher sunamita, Lázaro, Jesus ou... Frankenstein. Fui me projetando em seu corpo, sem angústia, sem desgosto, buscando as perdidas origens.
 
 

- o final -

         Certas culpas podem mudar completamente a vida de uma pessoa…

          A derradeira peça colhida, a lâmina ensanguentada no fundo do rio. Mais outros rituais macabros: orações, eletricidade e soluços. Um frio a percorrer-me a espinha. Não aconteceu o milagre. Parecia que meu desejo ia ficando cada vez menor, desaparecendo, quase um bolinha de gude, que rolava para lá e para cá. Devolvia às coisas a dimensão própria. Estava sozinha, desamparada. Então, fiz a ligação. A polícia veio até mim. Ficaram sem reação diante daquele espetáculo bizarro: um esqueleto, um tronco disforme, colado a ele, em lógica indecifrável, peles endurecidas, órgãos podres, cabelos ressequidos. Exalava mau cheiro. Vermes espremidos, nauseantes. Massa repulsiva. Toda a bruta, estúpida e crua violência da morte.

          — E, porque decidiu se entregar? — a jornalista ergueu os olhos do tablet para a presidiária — era muito diferente do que imaginara: franzina, delicada. Era mais crível vê-la como vítima de violência e não como agressora.  Se a encontrasse em outro lugar, não seria capaz de imaginar os feitos dela. As relíquias de seus crimes eram inacreditáveis. Não foram assassinatos por impulso, saía de casa com a intenção de matar, escolhia as vítimas, não deixava pistas.

         — A nódoa de sangue crescia. Não consegui reviver minha irmã. Inútil. Ações infelizes que me tornaram escrava de um joguete.

            — Sim. A expressão do seu rosto é a mais triste que eu já vi. Corta o coração. Por que esse baixo astral? — observou a entrevistadora.

           — Baixo astral? — Lina Maia indagou com a voz embargada. — Ah! Desculpe. Acho que é só cansaço. Saudades de Léa. Fiz tudo direito, por que ela não voltou? O que me interessa, então, é contar minha história; todos devem saber porque precisei matar. Anotou tudo?


 
Tema: Serial Killer