Julieta - DTRL 32

Tinha a impressão que os fantasmas de suas lembranças tinham ganhado força com o tempo. Era como se na solidão eles quase pudessem andar pela casa com seus passos suaves que quase não tocavam no chão. Essas assombrações quase todas remetiam as coisas que viveu com o ex. Na cozinha era quase como se ainda pudesse ouvir os gritos ecoarem da primeira vez em que ele lhe bateu. As paredes da sala que foram testemunhas mudas de palavras hostis pareciam sussurrar na calada da noite relembrando aqueles momentos. Todas essas coisas pareciam querer convencer Julieta de que era hora de deixar aquele apartamento.

Provavelmente não para sempre. Somente até ter se recuperado. Mas mesmo a ideia de sair pouco tempo de onde morava lhe deixava meio triste. Talvez tivesse continuado lá se o episódio com o espelho não tivesse ocorrido.

A moça sempre tinha ouvido falar de gente que quando está sobre muita tensão come excessivamente. Como uma forma de aliviar o stress e a ansiedade, porém por algum motivo com ela ocorria o oposto e não conseguia comer. Era como se a fome fosse se desmanchando junto com as lágrimas que caiam. O tapa da realidade somente veio após um banho. O reflexo que via no espelho estampava a conseqüência do tempo sem comer direito.

O corpo que escondia por baixo da roupa estava esquelético: costelas muito amostras, os braços finos, quase sem carne. O seu reflexo assustador piscou o olho direito para ela em uma ameaça silenciosa. Era como se quisesse dizer que ela seria um esqueleto completo em breve. Gritou e desviou os olhos rapidamente do objeto,ainda meio zonza. A falta de nutrientes estava começando a afetar a mente dela.

O fato ocorreu em um milésimo de segundo. Mas foi o suficiente para lhe assustar e ver que ela precisava ajudar a si mesma. Decidiu que iria passar um tempo com o tio.

Tinha outros parentes, mas decidiu que moraria com o seu tio Juscelino por causa da distancia. Queria ficar o mais longe possível da cidade e suas lembranças.

Aquela estrada parecia não ter fim, a impressão de ser ainda mais longa se acentuava por causa do silêncio que se instalou no carro. Sua prima Carina que estava na direção, com a atenção totalmente focada no caminho, não falava muito. Era uma estrada meio difícil de dirigir, principalmente o pedaço que era de terra e cheio de buracos.

-Você acha mesmo que é uma boa ideia passar um tempo com ele?- perguntou sua prima quando a estrada deu uma melhorada e era seguro aumentar a velocidade. – Como está vendo a casa dele é longe de tudo.

-Acho que é exatamente disso que preciso no momento.

-Sabe que poderia ter ficado comigo. Poderia ter me contado toda a situação antes que chegasse nesse ponto. - disse sua prima com uma pontada de mágoa. Ela se considerava a sua melhor amiga e ficou meio triste dela não ter lhe contado das coisas que ocorriam no apartamento. Mas toda aquela situação com o ex fez ela se afastar da prima. A aproximação ocorreu somente dias antes da viagem. Queria resolver tudo, pois não sabia quando tempo ficaria afastada da cidade.

-Foi que com tudo isso acabei ficando fechada dentro de mim.

Um silêncio se seguiu e sua prima lhe sorriu depois desse momento. De uma forma que buscava dizer que estava tudo bem entre elas e que ela com tempo tudo voltaria ao lugar certo.

-Sabe aquelas histórias que os meninos mais velhos contavam para nos assustar? Acho que deve se lembrar.- disse quando estavam quase chegando.

Julieta lembrava sim. Segundo umas histórias que contavam a casa do seu tio tinha fantasmas e fatos estranhos ocorriam no local sem explicação. Isso talvez a assustasse quando fosse criança, mas adulta tinha seus próprios fantasmas. Se ela e as assombrações do lugar convivessem uma sem tomar o espaço da outra não enxergava problema. O que temia realmente eram as suas lembranças. Falou isso para a prima e por algum motivo isso pareceu acalmar a situação.

-Se precisar de alguma coisa me ligue. Venho o mais rápido que puder. – disse sua prima logo depois de dá um forte abraço de despedida.

Carina estava tão concentrada na estrada e na conversa com a prima que nem notou em um carro que havia as seguido da cidade até a casa do tio. O veiculo sempre se misturava em meio aos carros de turistas que usavam a estrada como atalho. Na hora em que voltava o seguidor não fez o mesmo caminho que ela. O que ele queria estava no casarão.

*

Os empregados do casarão a receberam bem. Tinham sido avisados que ela viria. Estavam a esperando na porta do local enquanto o seu tio estava lhe aguardando em uma cadeira de balanço muito antiga e bela. Ele parecia ter a mesma aparência que tinha quando ela e a prima eram mais novas. Sorriu quando ouviu os passos dela se aproximando.

-Julieta, que bom que veio. Quanto tempo? Tenho tantas perguntas. Já se formou? Minha Julieta já achou o seu Romeu?

A pergunta não foi feita por mal, a moça não havia contado a história para ele. Mas mesmo que não tenha sido feita com má intenção ela foi o suficiente para que uma lágrima escorresse pelo rosto dela. Seu tio era cego, mas naquele momento parecia vê-la muito bem. Ele tinha os sentidos muito aparados e mesmo que não visse as lágrimas pareceu sentir a sua tristeza.

- Está tudo bem?Pode conversar comigo se quiser. - disse seu tio segurando carinhosamente nas suas mãos. A moça começou a contar a história. A principio com palavras desconexas e baixas, mas depois começou a contar tudo muito rápido e como que gritasse para que até os animais da floresta que ficava perto ouvissem.

-Vai ficar tudo bem. – respondeu o seu tio depois de ouvir tudo atentamente. O tom na voz dele a fez acreditar por um momento que ficaria. O tom e o fato de naquela casa nada lembrar do que viveu no antigo lugar que morava. Um pequeno sorriso até começou a se formar em seus lábios quando subiu as escadas para guardar as suas coisas.

Quando passou pelo corredor reparou em um grande espelho que tinha no local. Foi nesse momento que notou que o medo do seu reflexo continuava. A quase fobia tinha de alguma forma a seguido até lá. No espelho do casarão teve a impressão que estava ainda mais magra do que pensava. Afastou-se o mais rápido que conseguiu do objeto só para descobrir que havia outro no quarto que ficaria.

-Como chegou nesse ponto?- sentiu a sua boca se mexer, mas de alguma forma era como se o som saísse da boca de sua face refletida no espelho. De uma forma acusatória. Mas dessa vez pelo menos não ocorreu nenhum movimento no seu reflexo.

-Vou melhorar ficando aqui. Tentar fazer todas as refeições e esquecer aquelas coisas. - seu reflexo parecia dizer que iria cobrar a promessa.

E realmente tentou melhorar. Tentava comer somente pequenas porções, pois seu estômago parecia rejeitar alimentos. Passava vários momentos com o tio e passeando perto do grande casarão. Era um local bem grande. Havia a criação de vários animais e plantações. Mas no quarto dia começou a notar o sumiço de alguns, principalmente os que eram mais gorduchos e saudáveis. Como foi o caso de um porquinho pelo qual ela tinha se afeiçoado e pensado em dá um nome para ele.

-Alguns animais as vezes somem. –disse seu tio sem dá muita importância, talvez por ele ter uma criação muito grande. Por algum motivo Julieta se lembrou de umas histórias que ouviu. Quando era criança certa vez lhe contaram sobre um ser que chupava os animais, os deixando totalmente sem sangue. Talvez essa criatura tivesse voltado e passado a levar os animais completamente, sem deixar nada como prova do seu ato.

Enquanto alguns animais sumiam outros sempre apareciam. Havia muitos morcegos na residência e nas proximidades dela. Enquanto alguns tinham medo deles o seu tio parecia gostar deles, era quase como se fossem seus estranhos animais de estimação. Algumas vezes a moça quase tinha a impressão que seu Juscelino conversava com os animais e os entendia. Seu ouvido apurado parecia ouvir e entender o som que eles faziam.

-Tem morcegos que são cegos. Eles se guiam pelo som.- disse seu tio para ela naquela tarde em que estava lendo para ele. Seu tio tinha uma biblioteca muito grande. Alguns livros eram adaptados para ele, porém outros não. Antes da sobrinha vim alguns empregados liam para ele, mas Julieta tomou essa tarefa para si. Gostava de ficar com o tio e sentia que a cada dia ele gostava mais da presença dela também. – Digamos que nos entendemos e as vezes. Bem, isso vai lhe soar meio estranho, mas eles são como meus olhos no casarão.

Aquilo soou realmente estranho, mas Julieta preferiu não comentar nada a não ser:

-Esses animais me dão medo.- disse notando que como suspeitava havia um desses animais em um canto escuro da biblioteca. Depois do que o tio disse começou a notar que o bichinho realmente parecia está em uma posição de vigilância. Mas sentia que ele não oferecia perigo. Era uma vigilância suave e até cuidadosa.

*

Ele estava observando Julieta já tinha algumas semanas, por isso soube do plano dela de se mudar para longe do lugar em que moraram. Isso o enfureceu. Não iria deixar ela fugir dele tão fácil. Seguiu de forma sorrateira a ex e a prima dela até o casarão do tio. Estava aprendendo toda a rotina daquela casa em que Julieta estava no momento. Apenas esperando o momento para atacar. Estava acampado próximo dali e todos os dias conseguia caminhar sem ser notado e ficar horas observando com um binóculo. Aproveitando o mato do campo como um manto de camuflagem.

No dia em que a maioria dos empregados da casa foi fazer compras na cidade mais próxima viu a oportunidade perfeita para agir. Tinha todo o plano traçado na sua mente. . Olhou para as facas que tinha trazido, tanto pequenas como uma grande, e pensou em como faria a ex pagar por o ter abandonado. Foi tirado de seus pensamentos por um movimento atrás dele. Olhou meio assustado pensando ser algum animal ou coisa do tipo. Andou lentamente e olhou ao redor, segurando a faca maior.

Virou novamente o olhar em direção do casarão. Segurando a faca firme a ponto de fazer os dedos começarem a doer. O movimento soou mais alto. Se virou de vez e deixou um grito escapar ao ver o tio da sua ex namorada em pé atrás dele. Pela expressão dele era possível notar muita irritação. Por algum motivo aquilo o deixou sem reação. Como que paralisado. Os olhos cegos do homem pareciam ter um estranho efeito sobre seu corpo. Seus dedos começaram a ter suaves espasmos até a faca cair no meio da terra.

Tentou fugir quando reuniu força o suficiente, porém foi nesse momento que após um som ser emitido pela boca do homem vários morcegos atacaram o seu rosto. Mordendo, arranhando e emitindo um som agudo. Gritava enquanto tentava em vão tirar os animais. Sentiu quando o binóculo que ele levava ao redor do pescoço se tornou uma arma para o assustador tio de Julieta.

O homem aparentemente se guiando pelo som chegou até ele que estava caído no chão e fraco devido ao recente ataque dos animais. Tocou no seu pescoço até sentir a alça do binóculo. Após esse momento, com uma força que o homem parecia não possuir o enforcou. Quando estava quase sem ar sentiu que o enforcamento foi afrouxado somente para depois recomeçar e parar novamente. Uma forma de o fazer sofrer, porque de alguma forma sentia que era como se o homem farejasse no ar além do cheiro do seu medo o cheiro do seu sangue. Não planejava realmente o enforcar, pois parecia encarar com seus olhos assustadores os arranhões em seu rosto.

*

Julieta acordou e estranhou não ver o tio a mesa tomando o café da manhã, mas sentia que sabia onde poderia o encontrar. Ele amava a biblioteca. A moça realmente estava certa. Seu Juscelino estava sentado na sua querida poltrona lendo um livro em braile. Mas atenção da moça logo foi até os lábios do tio, pois um filete de sangue escorria lentamente.

-Tio, o senhor se machucou?- perguntou a mulher sempre preocupada em ajudar o seu tio. Pegou um lenço para limpar o filete.

-Devo ter mordido meu lábio sem reparar. – disse o tio retraindo dois pequenos dentes pontiagudo sem que a moça reparasse, antes de abrir a boca para responder.

Julieta ficou menos preocupada e disse que ia comer alguma coisa, mas que depois voltaria para eles lerem algo juntos. Perguntou se ele queria algo da cozinha.

-Agradeço, querida Julieta, mas já estou satisfeito. -disse sorrindo o homem enquanto pensava em como a sobrinha era uma moça muito atenciosa, também pensou que seria bom se Julieta não soubesse sobre a origem daquele sangue e sobre o que ocorreu com o ex -namorado.

Temas: Psicose, Anorexia, Stalker, Pessoas com deficiência e Vampiros

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 15/02/2019
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