Quando o cão passava na estrada - DTRL32
A história que te escrevo, leitor, se dá num dos lugares mais comuns da paisagem brasileira — uma estrada do interior. Estrada daquele tipo bem especial que liga nada a lugar algum, do tipo em que se contam nos dedos os automóveis que levantam seu pó diariamente. Em certo ponto às margens dessa estrada surgira, há algumas décadas, uma espécie de vilarejo, onde ainda umas vinte, trinta cabeças levam sua vida pacata e mediocremente.
Esboçai na mente, senhoras e senhores, o cenário: margeando a via de terra batida há dois sobrados vizinhos; um deles, a antiga residência de D. Marta Ribeiro, o outro, onde vivia o pastor Ubaldo, que fazia sua garagem de igreja evangélica. Atrás se espalhavam casinhas miseráveis, espaço de morada da maioria dos habitantes. Do outro lado, de frente para os sobrados, está plantado o bar de "Seu" Meneses.
O bar consiste numa comprida e estreita varanda, onde alguns vagabundos ocupam as mesas amarelas da Skol para beber, petiscar e observar as pedras que rolam na estrada. Descrita esta, o resto é onde vivem Manuel Meneses e Clara, sua senhora.
Cabe agora apresentar um sujeito de importância capital no relato, que estivera sumido no vilarejo durante os últimos tempos.
— Onde é que ele se meteu, Mané?
— Não sei, Clara — Manuel Meneses fatiava rodelas de lingüiça — Ficou um tempo sem vir no bar e depois sumiu que nem fumo em ventania. Ninguém sabe.
Mal o velho Meneses terminou de falar, D. Marta berrou de sua janela.
— É ele! Aí, meu povo, ele voltou!
O homem saltou da carroça do leiteiro, fabulosamente lépido e jovial. Sua falecida mãe, em nome de quem recebia benefícios mensais, o batizara Jeferson; o pai, que abandonara cedo a família, em honra do avô nomeara segundamente o filho como Jonas. Ei-lo, o sedutor das redondezas, que dormira com a maior parte das jovens de lá: Jeferson Jonas, ou, da forma como gostava de ser tratado: Jhefferson Jones. Não se sabe por que o sujeito adotara essa aberração lingüística para se identificar; mas seu embotamento moral, aliado ao fato de há quase trinta anos viver estritamente da ajuda de familiares distantes e da morta, deviam tê-lo coagido a forjar qualquer coisa que o alçasse para além de um vagabundo — um nome peculiar. Assinava até documentos assim.
O sumiço tinha fundamento. O desgraçado resolvera se repaginar: apareceu então ostentando um par de óculos espelhados, roupa nova e uma tatuagem que dizia “amor eterno”, em japonês ou chinês.
Toda a gente apontou na beira da estrada para contemplar aquela sumidade, e o vagabundo prestamente se pôs a contar suas façanhas na cidade. Omitiu que voltara com o leiteiro porque nada restara para a passagem, e que ficara longe do bar a fim de acumular verba para as novas bugigangas.
—Êh, Jefinho! Tá bonito, hein! — Marta Ribeiro ainda gritava.
D. Marta Ribeiro era a mais bem de vida. Viúva do Dr. Antenor Ribeiro — homem que atendera como médico nas proximidades, apesar de se ter graduado em um curso de Farmácia — se sustentava através do aluguel de duas casas e pelo deitar cartas, prática que realizava em segredo, muito embora todos o soubessem. Exibia sem dó sua abastança. Quando mandara ladrilhar seu sobrado de azulejos, a coisa se tornou atração turística; em seguida, isso lá pelos anos dois mil, pusera uma formidável antena parabólica em sua laje. Lembrava-se com gosto da reação da vizinhança... “O prefeito deve ta querendo fazê uma rádia na casa de Dona Marta”.
Foi quando o pessoal se dissipou que Paulinho apareceu, dificultosamente, sorriso no rosto, para ver Jones. Apesar das terríveis brincadeiras que este lhe fazia, o inocente Paulinho gostava dele. O mulatinho nascera com uma doença séria, que lhe obstava as faculdades motoras, obrigando-o a coxear; sua mente também não se saiu imune, em função do que Paulinho sofria graves distúrbios.
— E aí, animal?! — Jones apanhou um punhado de terra da estrada — Tá querendo brincar hoje?
Paulinho o olhava sorrindo, até que o homem lhe meteu a terra quente nas calças e o empurrou. Jones saiu andado às gargalhadas, acompanhado nessas por Marta Ribeiro, que muito se divertia com as maldades do sujeito.
Meneses saiu às pressas, tirou Paulinho do chão e levou para dentro.
— Diabo de gente! — ele resmungava, enquanto despia Paulinho — Clara! Ôh, Clara! Bota a roupa do menino pra lavar.
Clara entrou no banheiro e pegou as roupas do chão.
—Ah, Manuel... Tanto serviço e você aí, dando banho nessa peste.
A casa de Paulinho era a mais afastada do lugar. Inacreditavelmente o garoto de catorze anos viva só desde que a mãe o abandonara, quando ele ia pelos dez. Diariamente Meneses fazia a desgostosa Clara levar-lhe comida e roupa limpa, mas o lugar onde o pobre habitava era abominavelmente fedido e sujo. Apesar de não simpatizar com Paulinho, Clara nunca lhe fizera crueldade. “Toma a comida, garoto! E não vai deixar o prato quebrar que nem ontem, hein!” Pegava as louças do dia anterior e saía imediatamente, tropeçando nos entulhos e afastando do rosto as teias de aranha.
Alguns anos antes, Ubaldo Nascimento tomara de uma tinta azul celeste e cobrira as paredes de sua garagem; depois, com muito engenho e arte, pintara nelas delicadas gaivotas, montes verdejantes e córregos cristalinos; por fim, dispusera algumas cadeiras de plástico no espaço e munira-se de uma Bíblia. Nada mais faltava para que o respeitável varão se declarasse pastor evangélico.
Nos dias de culto “Seu” Meneses emprestava a caixa de som do bar, que, nos fins de semana, quando animada pelo refinadíssimo pen drive de Jheffersson Jones, fazia ecoar por centenas de metros os mais admiráveis hits da sofrência.
Manuel Meneses fora um bebedor compulsivo durante os primeiro anos de seu casamento. Muito fizera sofrer sua mulher e quase comprometera os estudos da filha, hoje uma dentista bem sucedida. Superado o vício, resolvera criar pássaros. Clara ainda pena cotidianamente com o piar infernal das dezenas de coleiros e pardais, apesar de ser, no fundo, grata a cada um pela sobriedade do seu velho Mané.
No início Manuel acompanhava sua mulher nos cultos, apesar de nunca haver renunciado à religião que herdara dos pais, avós... Cotidianamente o velho reza o terço. Deu-se que certa vez o pastor flagrou Meneses com um cigarro de palha atrás da orelha, enquanto este alimentava os passarinhos. O homem de Deus se escandalizou sobremaneira, e Meneses mandou que o pastor e seus olhos de lince se metessem dentro do mais ignóbil dos orifícios. Desde então abandonou os cultos do vizinho. Clara, depois de muitos esforços, convenceu o marido a continuar cedendo a caixa de som.
A atração dos cultos de Ubaldo não era a palavra de Deus, nem mesmo as peripécias do diabo. Depois que o pasto pusera na cabeça que Paulinho era atormentado por espíritos, passou a submetê-lo a vexatórias sessões de exorcismo público. O pobre coxo era esmurrado, golpeado com bíblias, gritavam-lhe no ouvido... Por quanto tempo aquilo ainda duraria?
Uma das manias de Paulinho era repetir o que ouvia dizerem. Certa feita escutara o que uns garotos disseram a respeito das condições nadegais de D. Marta Ribeiro; não se furtando ao seu ingênuo hábito, fê-lo diante da viúva do Antenor, o que lhe rendeu uma bacia de água suja na cabeça. Até a seguinte situação Paulinho fizera isso inocentemente, mas atentai para o que aconteceu.
Paulinho observava uma visita que descia as escadas da casa de Marta Ribeiro. “Qualquer dia eu volto!”. Aquelas palavras do visitante se despedindo causaram um impacto forte sobre o menino, e ele passou a repeti-la incessantemente por onde ia, não com aquele sorriso débil e inocente, mas com o semblante fechado. Também não ria mais das piadas de Meneses, nem chorava quando apanhava de Jones. Apenas se levantava da estrada de terra dizendo a meia voz: “Um dia eu volto... Um dia eu volto...”
A situação permaneceu assim por uns dias, e então se ouviu o grito.
— Clara, o que é que houve? — uma mulher chegou ofegante na porta de Paulinho e também não conteve o espanto.
A esposa de Meneses não foi capaz de dizer nada, só apontou, tremendo, o corpo no chão.
O cômodo recebia o sol do meio dia pela porta aberta, e na penumbra jazia Paulinho, entre garrafas de vidro, baratas e caixas de papelão. As duas mãos agarrando o pescoço, olhos esbugalhados, o corpo em posição fetal. Tudo meio retorcido. Muita agonia até que morresse. Paulinho se engasgara com um osso de galinha.
A tarde caía vermelha quando Meneses terminou de abrir a cova no descampado próximo, perto de onde a caminhonete estacionou.
— Segura aí, velho!
Jones atirou o volume pesado, atado em um saco de lixo preto, aos pés de Meneses. O velho, a ranger os dentes em sua indignação contida, tirou duas notas de vinte e pagou o perverso e o motorista pelo serviço. Em seu velório de um homem só, Paulinho foi sepultado.
Correu tudo ordinariamente após isso, até que uma figura terrível apareceu. Tratava-se de um vira-latas estrábico, mancando ao levar por aí sua língua pendente e suas chagas purulentas. Ignorava-se a procedência do monstrengo, mas o bicho causava um silêncio de morte quando passava na estrada.
Ubaldo fechava os portões de sua garagem após o fim do culto, e a Kombi já virava a curva levando embora os fiéis de um lugarejo vizinho. A lua era um farol aberrante no meio de estrelas mortiças. Logo que meteu as chaves no bolso foi surpreendido pelo cão, que o encarava debilmente. Após alguns segundos de curiosa troca de olhares, Ubaldo se virou dando de ombros e, pronto para subir as escadas, levou de chofre a mão ao peito, se apoiou num latão de lixo e gemeu angustiosamente, enquanto uma corda terrível lhe apertava o coração cada vez mais e mais... O bicho sumiu na treva. Quando amanheceu, acharam o pastor de ponta cabeça dentro do latão, vencido por um ataque cardíaco.
O vilarejo foi tomado por uma comoção inconsolável, o que fez Jeffersson Jones se voltar às coisas da consciência e pensar na vida. Sob este propósito, foi procurar os sigilosos serviços de Marta Ribeiro.
A mulher preparara um cômodo especial para atender seus clientes. Pendurara cristais, cortinas de seda, punha incensos a queimar...
— Sente-se, rapaz — ela não se valia desse vocabulário ordinariamente, mas a situação era outra — As cartas revelarão o seu destino.
Marta embaralhou o tarô e dispôs algumas cartas sobre a mesa, observando atentamente, silenciosamente. Aquela confusão cabalística de símbolos, misturada ao incenso de benjoim, deixava Jones nauseabundo.
— Meu filho, as cartas me dizem... — respirou fundo, ajeitando os óculos solenemente — que a cerveja vai acabar te matando.
Ao escutar isso, Jeffersson Jones não pôde conter uma gargalhada escandalosa.
— Sem chance, vovó! — ele batia na barriga, querendo se referir ao fígado — Esse estômago aqui agüenta trago quente desde os dez.
Por fim, os dois se levantaram e saíram juntos. Marta parou na porta de saída e recebia as últimas palavras de Jones quando este, pisando em falso no primeiro degrau, foi segurado pela mulher na iminência de rolar escada a baixo.
— Êh, D. Marta... Vou te fazer uma previsão também — Jones falava enquanto se recompunha — alguém um dia morre nessa escada.
Era uma tarde de domingo, catorze horas, sol escaldante.
— “Seu” Meneses, larga esse passarinho traz outra rodada aí! — Jones gritou da varanda.
— Leva lá, Clara, faz um favor pro seu velho. Já vou terminar aqui.
— Ah, Manuel — Clara tirava as cervejas do freezer — você não deixa essa gaiola...
A mulher pôs as cervejas sobre a mesa e anotou coisas numa caderneta.
Além de Jones, havia outros dois homens na mesa. A conversa ia se animando.
— Lula foi o maior presidente que esse país já teve! — dizia um, dando um gole.
— Aquele bandido! Não é a toa que tá preso — falava outro, com a boca cheia de ovo cozido — Eu quero ver é o Bolsonaro arrancando peru de estuprador!
Jones bebia calado, observando a figura grotesca do cão que passava coxeando. É fato que ele acordara meio indisposto, mas o que sentiu quando o cachorro o olhou foi além de todo o resto. A cerveja começou a fermentar em sua barriga, sentindo como se algo ali dentro quisesse sair.
— Que é isso, Jones? Você tá branco!
Um furioso jato de espuma prorrompeu da boca do rapaz; logo em seguida outro, róseo. Jeffersson Jones então caiu da cadeira, gorfando copiosas ondas de sangue. E ali terminou sua história.
D. Marta era muito observadora e supersticiosa. Estranhara sua idéia no início, mas passou a achar cada vez mais razoável relacionar aquelas mortes à chegada do esquisito animal no vilarejo.
Certo dia ela descia suas escadas com uma bacia de roupas e viu o cachorro passar na frente do seu portão. Parou de repente, assustada, e alguma água da bacia caiu sobre o degrau seguinte. Pensou que algo fosse acontecer e esperou. Não houve nada. Porém, ao dar o próximo passo, seu pé correu no degrau liso, a tira da sandália estourou e a mulher resvalou com sua bacia até morrer na estrada com o pescoço quebrado.
Aquelas mortes deixavam todos atônitos.
— O que é isso, menina? — uma vizinha dizia a outra — Não passa dois dias e alguém morre.
— É, Isaura. O povo ta dizendo que é culpa do cachorro.
A noite era quente. A luz externa dos sobrados dos finados Ubaldo e Marta foi apagada. A estrada dormia no breu profundo. Ao ruído de um grilo unira-se, para quebrar o silêncio, o farfalhar de uns passos incertos: era o cão.
Enquanto Manuel dormia, Clara assistia à novela. Era seu costume deixar a porta da sala de estar entreaberta. O cachorro seguia na direção da luz azulada que saía daquela fresta, até que entrou na casa, esbarrando na porta e a fazendo ranger. Clara desviou o olhar da novela e deu com o do cão, que livremente atravessava a sala — o passo torto — até se deitar no tapete, entre a poltrona e a TV. A mulher já havia escutado os comentários que se fazia a respeito do bicho. Naquela sala quente, gotas de suor frio corriam na testa da pobre Clara. Pegou de uma vassoura encostada na parede e corajosamente desferiu uma estocada no animal. O bicho soltou um ganido de dor e se pôs de pé, olhando-a ameaçadoramente. Clara se encolhia na poltrona, indefesa.
No momento em que o animal avançou para mordê-la, Meneses o atingiu com um golpe de foice. O cachorro saiu sangrando. O velho pegou sua lanterna e foi para a estrada, mas não encontrou o bicho. Sentara-se pensativo, a fumar, e algo lhe passou pela cabeça.
— Manuel, volta aqui! — Clara gritou inutilmente, enquanto o marido se enfiava no mato.
Encontrou o cão, finalmente, morto sobre a sepultura de Paulinho. Manuel Meneses foi o primeiro a entender tudo.
TEMA: Pessoas com deficiência.