Calvar - DTRL32

I

Rogério começou a perseguir Calvar quando jovem. Tudo começou quando ele e um amigo desceram um barranco procurando seu cachorro. Separaram-se para cobrir mais terreno. Pouco depois Rogério achou o buraco sobre o qual o irmão mais novo falara. Era um tipo de túnel de esgoto. Se abaixou para examiná-lo, quando uma baforada de mau cheiro o atingiu poderosamente. Não era odor de esgoto, entretanto, mas carne podre.

Quando se afastou três passos para chamar o companheiro, ouviu algo saindo do buraco.

– Droga, achei que você ia entrar. Queria brincar um pouco contigo. – Soou uma voz gutural. Ao se virar, viu uma criatura anorexa, com um corpo todo negro e um rosto branco cadavérico, bem como afiados caninos saindo da boca, mas que não pareciam atrapalhá-la de falar. O vampiro apoiava-se nos cotovelos na entrada do buraco, zombeteiro, como uma criança dentro de uma piscina apoiada na borda com metade do corpo submerso. – Não se preocupe, não vou te matar hoje. Só me alimento quando estou com fome.

– O que é você? O que você fez com o Negão? – Perguntou Rogério, incrédulo.

– Negão? Que nome diferente rá rá rá. Eu tentei brincar com ele, mas não ERA muito divertido. Tentei jogar a bolinha para ele ir atrás e trazer para mim igual você fazia, mas ele não me obedeceu. Daí fiquei com raiva, e... Hei, espera, por que você está correndo? Ainda não terminei com você!

II

– Estou morrendo de fome. Já jantou? – Perguntou minha colega de república, Yasmin. Estava conversando com ela via chamada de vídeo no Whatsapp, meu celular de pé em um suporte sobre a mesa onde eu terminava um questionário gigantesco que era para ser entregue amanhã.

– Sim, acabei de jantar. Aliás, preciso jogar o lixo fora daqui a pouco. Por que não janta logo?

– Amiga, preciso terminar esse trabalho hoje ainda! – Ela digitava alguma coisa freneticamente no notebook. – Vou pedir uma pizza ou sei lá.

– Essas pessoas que deixam tudo para a última hora... – respondi, em tom de deboche, e nós rimos.

– Dolly, agora é sério. – Ela disse, após uma pausa, enquanto se concentrava em alguma coisa no seu trabalho. – Você soube de uns desaparecimentos aqui em Volta Redonda?

– Não.

– Como assim? Só se fala nisso ultimamente!

– Você sabe que eu não ANDO muito por aí, então não fico sabendo das novidades. – Eu respondi e dei uma risadinha. Ela hesitou. Eu sempre faço piada da minha paralisia nas pernas, mas nem todo mundo aceita muito bem. Para não quebrar o clima, continuei: – O que está havendo?

– Parece que desde que começou o semestre, seis pessoas sumiram.

– Alguém da Universidade?

– Ainda não.

– A polícia já tá sabendo de alguma coisa?

– Não, parece que os corpos não foram encontrados.

– Sem corpo, sem crime. Talvez eles só fugiram, sei lá. Não gosto de ficar com medo por bobagem.

Ficamos em silêncio por uns dois minutos, nos concentrando em nossos afazeres, quando tive uma sensação de perigo iminente. É a única coisa que eu consigo sentir, no meu atual estado, da metade do tronco para baixo: um tipo de calafrio quando algo está para acontecer. Não me considero uma pessoa supersticiosa, mas sempre que tenho essa sensação é porque algo está errado.

Me afastei com a cadeira de rodas um pouco da mesa, fiquei apreensiva olhando tudo ao redor, tentando escutar qualquer coisa diferente, agarrando-me instintivamente ao meu cordão de prata com um crucifixo. Yasmin falou alguma coisa, mas eu estava tão concentrada que não consegui entender. Então a vi se levantar e sair do alcance da câmera do celular. Imaginei que ela ia ao banheiro ou coisa parecida, então não dei muita atenção.

Pouco depois ouvi alguém mexer na porta do meu quarto. Deitei o celular, rodei a cadeira e fiquei de frente para a porta. Tensão. Meu coração palpitava. Alguém estava tentando abrir. Meu quarto é adaptado para mim, sou a única moradora da república que tem um quarto individual. Finalmente a porta se abriu e pude ver...

– Yasmin?

Ela viu minha cara de preocupação e ficou com medo, respirei aliviada. Eu havia dado a cópia da minha chave do quarto para ela. Não sou de me assustar por qualquer coisa, mas aquela sensação... Dei-me conta de que a sensação ainda não havia passado. Ainda havia alguma coisa errada.

– Onde está? – Ela perguntou.

– Onde está o quê? – Falei, confusa.

– Ué, Dolly, o carregador do celular que eu pedi emprestado.

– Oh, desculpa, eu tava... concentrada em outra coisa. Tá ali em cima do meu travesseiro. – Apontei.

– Você tem outro, né?

– Sim, sim, pode levar esse. – Respondi e coloquei o celular de pé novamente. Então pude ver o motivo da minha premonição. Quando Yasmin viu também, arregalou os olhos. No quarto dela, capturado pela câmera de seu celular, havia o que parecia ser um homem muito magro, todo vestido de preto, com uma máscara de caveira. Em uma mão ele tinha um grande facão, na outra uma pesada corrente de prata. Ele olhou de volta para nós pela câmera, totalmente ciente de nossa presença.

– Como ele pode ter entrado? – Yasmin perguntou. – Eu tranquei a porta quando sai.

– Talvez... ele estivesse lá esse tempo todo.

Parecia impossível Yasmin ficar com mais cara de pânico, mas ela conseguiu. Então o homem olhou para o lado, na direção da porta do quarto dela. Alguém estava entrando. Fez um gesto para ficarmos em silêncio, e desligou a chamada.

III

Duas pessoas foram encontradas mortas aqui na república essa noite. Lídia, a colega de quarto de Yasmin que chegou na hora errada, e Adriani, a menina do quarto ao lado do meu. Lídia foi decapitada, Adriani parecia ter sido atacada por um animal; teve alguns órgãos internos removidos e muito do seu sangue drenado. O azar do cara com máscara de caveira é que, coincidentemente, havia uma viatura da polícia passando em frente à república bem no momento que ele saiu correndo por causa dos nossos gritos. Em uma atitude que seria considerada por muitos como imprudente e criminosa, quando o policial viu o sujeito de preto correndo e ouviu os nossos berros, após ordenar que ele parasse e ser desobedecido, atirou nas pernas do infeliz, que caiu.

Ele era Rogério. A polícia não conseguiu tirar nenhuma informação relevante. Não sabia o paradeiro dos corpos, e admitia ter matado apenas Lídia. Sua justificativa era uma conversa psicótica de monstros e vampiros. Insistiu que vampiros podiam ser paralisados com uma corrente de prata e mortos por decapitação, e disse que estava caçando o monstro que matou todas aquelas pessoas, inclusive Adriani. Pobre idiota, Lídia não era Calvar.

Eu só me arrependo de não ter sumido com o corpo da Adriani logo. Mas também não esperava que Rogério fosse me encontrar aqui. Pelo visto vou ter que ir ANDANDO dessa cidade por uns tempos, rá rá rá.

TEMAS: Vampiro, Pessoas com deficiência.

(Fiz algumas explicações nos comentários para quem não entendeu)