CACHORRO QUENTE PARA UM CASARÃO FRIO - DTRL 32
Nosso ponto para vender hot dog ficava entre um hospital e uma faculdade no Rio de Janeiro. Custei encontrar um local digno e rentável. Tratava-se de um empreendimento familiar.
Viemos do interior de Minas para estudar e trabalhar incentivados pela minha mãe. Por meu pai a gente teria ficado lá na roça, como se diz no meu estado. Eu hoje seria esposa de um vaqueiro e meu irmão talvez se casasse e cuidasse de um milharal ou mandiocal.
Não foi fácil chegar à cidade grande com pouca bagagem, muita ingenuidade e outras tralhas que dificultaram bastante o estabelecimento de dois jovens entre prédios e pessoas de concreto.
Começo árduo. Do barraco paupérrimo, dos bicos mal remunerados, do estudo por conta própria, do cursinho popular, tiramos a sabedoria necessária para sobreviver. Conseguimos vagas na faculdade devido aos programas do governo. A vida começou a clarear e fomos envolvidos em uma onda de sorte. Mamãe mandava alguma finança todo mês, juntamente com metade da aposentadoria da vovó que era a contribuição da matriarca anciã que praticamente nos criou enquanto meus pais trabalhavam no pequeno sítio. Foram naqueles momentos em que vovó nos distraia é que ela nos contava os casos de assombração. Essas histórias eram para nos meter medo. Já adultos, éramos metidos a corajosos. Nem lobisomem e nem mula-sem-cabeça, ou qualquer outra lenda que viesse a nos contar nos impressionava. Mas ficou um resquício de medo bem no fundo da alma.
Entre conversas com alguns amigos que fizemos nesse tempo, ficamos sabendo de um moço que queria passar para frente um ponto de hot dog com todo o equipamento. Carlos tirou sua habilitação para dirigir a Tower. O moço se esqueceu de nos dizer que deveríamos pagar uma comissão para os homens que mandavam oficiosamente naquele espaço. Assustamos. Afinal, lá no interior de Minas, os coronéis faziam parte do passado, mas aqui fomos percebendo que cada retalho dessa cidade maravilhosa havia gente que mandava mais que o estado. Fazer o que? Ou a gente pagava ou a gente não trabalhava. Ainda assim o ponto era rentável. Carlos, meu irmão, estudava no período noturno. Enquanto eu frequentava a faculdade pela tarde, sobrando para eu vender hot dog sob a lua.
Nos momentos de saudade da minha avó, eu me lembrava das histórias mal assombradas. Mas na cidade grande ninguém acredita mais nessas coisas e se entretém com fantasmas, zumbis, vampiros e outras entidades do mal. Para mim já basta o terror do dia a dia.
Enquanto eu estudava pela tarde, Carlos tomava conta do nosso ponto. Ao anoitecer, a gente trocava. Eu pegava o circular direto para onde estava estacionada a Tower e ele ia para seu curso de Educação Física. Voltava quando a faculdade terminava e íamos juntos para casa pelo fato de eu ainda não ter conseguido a minha habilitação.
Nós nos adaptamos ao cenário carioca. Até nosso sotaque deixou para trás o mineirês. Afetivamente meu irmão se entendeu com seu colega de faculdade. Ele assumiu, pouco a pouco, a sua homossexualidade.
Bem em frente ao nosso ponto havia um casarão, sei lá de que década ou ano, parecia que ela tinha mesmo era séculos. Durante ao dia ele ficava fechado. Mas à noite algumas janelas se abriam. Eu reparava que um homem formoso saía quando eu sempre me preparava para desfazer meu pequeno comércio pelo menos duas vezes por mês. O vidro fumê do seu carro não me deixava vê-lo com clareza, mas pelo vulto dava para perceber que se tratava de um homem muito bonito. Isso me intrigava. Quem era aquele vizinho de toda noite que me chamava atenção não pelo que me revelava, mas pelo que me omitia?
Naquela noite em que Carlos demorou mais que o normal para chegar, certamente passou com seu affair em algum bar gay, eu observei que o meu homem misterioso retornou com mais alguém em seu carro. Pela silhueta parecia ser uma moça bem afeiçoada. Mais alguns instantes Carlos chegou de carona no carro do colega. Mesmo sabendo do caso entre os dois foi estranho vê-los se beijando. Engoli seco e resolvi não passar um sermão em Carlos. Meu grilo naquela noite era com o morador do casarão sombrio. Eu aqui fora me ralando para sobreviver e o bonitão estava lá dentro desfrutando da presença de uma mulher que não sou eu. Isso só pode ser algum sentimento amoroso por aquela criatura alheia ao meu viver, certamente.
Em casa, adormecida pelo cansaço, tive um sonho romântico. Eu estava com meu galã misterioso em uma mesa farta, a luz de velas, com vestes típicas da Londres vitoriana. Comíamos entre elogios e juras de amor. A noite certamente terminaria em deleite carnal. Lá fora apenas escuridão e neve. Um clima tão inebriante que eu não queria ter acordado às oito da manhã com aquele sol infernal batendo em meu rosto pela fresta da janela. Mais um dia de labuta.
Antes de fazer minha troca de função com Carlos, pedi a ele encarecidamente que não aprontasse outro atraso comigo. Eu temia ficar ali sozinha. Depois que a faculdade próxima, que não era a que frequentávamos, encerrava o turno da noite, o lugar ficava deserto. O hospital tinha mais movimento ao dia. Eu não mencionei para ele a má impressão que o casarão me passava. Mas eu queria sonhar novamente com o seu morador.
Não adiantou nada meu pedido para Carlos. Uma mensagem pelo WattsApp dizia que ele se atrasaria novamente. Isso me deixou irritada. O caso dele dava o primeiro sinal de incômodo na nossa fraterna relação. Solitária naquela calçada, eu já começava a recolher os dois conjuntos de mesa. Ouvi o velho portão do outro lado da rua ranger. Olhei naquela direção e ele vinha atravessando a rua, com atenção voltada para o trânsito. Lindo. Foi o que o meu coração disse em relação a aquele homem que se aproximava de mim.
— Quero um hot dog, você tem?
Deu vontade de dizer a ele que claro que sim. O que eu teria mais nessa Tower onde estava escrito hot dog? Era o que eu vendia no começo dessa maldita noite. Mas meus olhos buscavam os olhos dele por trás daqueles óculos escuros que estranhei. Não era comum eu encontrar pessoas usando esse tipo de óculos à noite. Mas ele usava. Sua beleza era tamanha que essa bizarrice não atrapalhava em nada, até servia de adereço ao seu rosto branco e cativante.
—Eu já estava quase fechando, ainda bem que você veio a tempo.
— Já faz alguns dias que eu tenho vontade de experimentar o sabor do seu hot dog. Adoro salsicha e esse molho. Ele me lembra de sangue saindo do pescoço, digo, do pão. Você não acha?
— Eu não reparei. Apenas posso garantir que você vai saborear o melhor cachorro quente do Rio de Janeiro.— falei convencida de que estava mostrando firmeza diante do homem enigmático, mas feliz por estar tendo essa oportunidade de ficar frente a frente com ele. O maldito era realmente encantador, como no meu sonho.
— Então capricha para mim. Esse sabor sempre atravessa a rua e aquece a minha casa fria.
— Claro que vou caprichar. Farei o melhor possível para o meu vizinho misterioso.
— Misterioso? Quem? Eu? Não me acho. Eu fico lá por detrás da cortina vendo você trabalhar toda noite e fico pensando o que leva uma donzela tão linda como você se esmerilhar no batente enquanto podia está se preparando para um encontro romântico. Isso é que é mistério para mim. Eu só tenho a imagem de você trabalhando. Mas eu te imagino em outras situações.
Eu tive vontade de falar sobre o sonho para ele. Falar do nosso jantar vitoriano, inesquecível. Mas isso significava abrir a guarda e deixar aquele homem desconhecido e desejável conhecer as minhas fragilidades. Eu o queria, mas no meu jeito mineiro de ser, eu precisava ir conquistando-o pouco a pouco.
— Não tem muito que imaginar de mim. Sou simplesmente uma moça que trabalha e estuda. E você, o que faz?
— Escrevo durante a noite e ao dia durmo. Simples assim. Eu tenho um poema que fiz especialmente para você.
— Ah é. Recite para mim. Eu estudo Letras e adoro Literatura.
— Não, eu não vou recitar para você, sobretudo aqui no meio da rua e no seu trabalho. Mas quem sabe um dia, um jantar a luz de velas e poderei recitar para você. — a menção do jantar quase me nocauteou. Eu suspirei fundo. Parece que o danado do homem lera meu pensamento.
— Hot dog especial para o meu vizinho misterioso saindo. — falei com ênfase como quem queria dizer — me dá um beijo. Mas não poderia ali e naquela hora. Era meu desejo, mas meu corpo cansado naquela noite só queria ir para casa. Percebi o carro do amigo do meu irmão se aproximando.
Quando Carlos veio ao meu encontro, o homem branco ainda estava lá. Apresentei meu irmão. Eles se cumprimentaram e o homem disse que iria comer em casa.
Assim que o portão do casarão se fechou, Carlos comentou comigo.
— Que bofe, heim maninha?
— Nem me fala. Mas eu sei que não é para o meu padrão. Quem sabe eu encontro alguém na faculdade um dia. — cutuquei sobre envolvimento dele com o colega.
Assim que entramos na Tower para irmos embora, já passando da meia-noite, recebo uma mensagem de uma das colegas combinando de festejarmos na noite seguinte o aniversário dela em um bar próximo a nossa faculdade. Lembrei-me das aulas do dia seguinte e concluí que eu poderia ir sim, desde que trocasse de turno no ponto de hot-dog com meu irmão.
— Carlos, o que você fará amanhã à noite? — arrependi instantaneamente de ter feito essa pergunta. É claro que amanhã à noite ele terá faculdade.
— Nada. Aliás, eu queria ver com você se amanhã a gente poderia trocar de turno. Eu preciso participar de uma aula prática sobre preparação física. Vai ser no Ninho do Urubu durante a tarde e à noite eu não terei aula.
— Perfeito. Era justamente isso que eu queria ver com você. Fechado. Amanhã eu fico ao dia e você a noite.
Ele sorriu concordando.
Cansada como quase todo dia, caí no sono rapidamente. O sonho com o homem misterioso voltou a me assombrar. Era um sonho bom que eu estava reticente em permitir. Mas lá estávamos nós de novo no jantar. O mesmo do dia anterior. Comemos e conversamos. Uma música nos atraía para a dança. Depois de duas voltas pelo salão eu percebi suas presas. Acordei assustada com a cena. O meu príncipe encantado era na verdade um vampiro.
Não comentei nada com Carlos sobre o meu pesadelo. Senti certa quantidade de medo de ficar em frente àquele casarão. Ainda bem que era ao dia. Mas e no dia seguinte?
Durante o dia o movimento era mais com o pessoal do hospital. Poucos estudantes da faculdade nos procuravam à tarde. Eu não perdia a chance de olhar para o casarão num misto de curiosidade e temor. Meu sonho não poderia ser verdade. Vampiros não existem. Eu parecia o Padre Quevedo ao mencionar para mim mesmo a frase. Lembrei-me do trabalho de literatura sobre a obra Drácula de Bram Stoker. Era isso. Foi o meu melhor trabalho, por isso fiquei impressionada com a história do conde da Transilvânia. Vou me divertir com minhas amigas hoje e turbinar minha autoestima. Da próxima vez que ele vier comprar hot dog, eu tentarei ser mais ousada.
Na troca de turno, percebi Carlos tristonho.
— O que houve, meu irmão?
— Hoje foi mal. Coisa de homem. Entende? Por causa da maioria das minhas camisas estarem sujas eu vesti aquela do galo. Ele, flamenguista doente, e por estarmos no Ninho do Urubu, me encheu a paciência. Não fui também bem recebido pelo pessoal do clube. Fui extremamente inconveniente.
— Pudera mano. Ir com a camisa do Atlético Mineiro no centro de treinamento do Flamengo, você queria o quê?
— Deixa prá lá. Eu vou ficar bem. Vá, você merece um pouco de diversão.
Eu me diverti como não fazia há meses. O combinado era ir para o ponto ajudar Carlos fechar o estabelecimento. Quando cheguei lá não encontrei meu irmão. Apenas a Tower aberta e nossas mercadorias saqueadas. Não sei como não levaram o veículo.
Para onde ele teria ido? Olhei para o casarão e algo me dizia que Carlos estava lá dentro. Peguei uma espécie de kit contra vampiros contendo estacas e marreta, cruzes de ferro e alho que eu havia escondido dentro da Tower naquele dia pela manhã sem que ninguém soubesse.
Empurrei o grande e pesado portão de ferro e entrei no jardim. A porta principal estava fechada. O casarão estava em silêncio. Resolvi ir para os fundos até encontrar a entrada para a cozinha. Forcei a porta que era mais frágil que a da entrada e adentrei na penumbra do interior do imóvel. O cheiro era insuportável, mas por mais loucura que viesse parecer, Dentro de mim algo me dava certeza de que eu tinha que salvar o meu irmão. Liguei a lanterna do meu celular e caminhei. Deparei-me com uma copa bem ampla, era a copa dos meus sonhos. Percebi uma portinha semiaberta debaixo da escada que dava para os aposentos no segundo andar.
Entrei e comecei a descer por uma escadinha apertada com cuidado para não cair. No porão havia dezenas de velas acesas, iluminando o centro onde o corpo do meu irmão se encontrava sobre uma mesa e o homem misterioso se curvando sobre ele com suas presas em direção ao seu pescoço entorpecido.
Gritei um nome maldito e atraí a atenção do homem. Assim que ele virou para mim, eu lhe cravei uma estaca no peito. Não consegui segurar a marreta, ela caiu no chão. O vampiro, agora eu tinha certeza do que se tratava aquele ser, partiu para cima de mim. Seus olhos estavam sedentos por sangue. Eu tentava me desvencilhar dele protegendo meu pescoço. Tirei a cabeça de alho da sacola e enfiei em sua boca. Ele me esmurrou e, enfraquecendo, caiu encurvado, com as costas sobre a mesa onde Carlos se encontrava.
Meu irmão acordava do seu entorpecimento. Mesmo zonzo, segurou a criatura pelo pescoço. Levantei com voracidade, peguei outra estaca e enterrei com força em seu peito, atravessando o seu coração. Ele caiu no chão. Peguei o resto do alho e terminei de encher a sua boca. Não achamos o corpo da mulher ou de outras vítimas. Enquanto eu arredava os móveis mais pesados para fechar a entrada para o porão, meu irmão saiu com passos trôpegos em direção à rua. Quando atravessei o portão, Carlos estava caído no asfalto, tinha sido atropelado. Ao chegar perto dele, conferir o pulso, ouvi um forte barulho, olhei para trás em tempo de ver o velho casarão se desmoronar. A poeira sobre o entulho formou a imagem de um morcego que até hoje me atormenta quando cuido do meu irmão em sua cadeira de rodas.
Tema: Vampiro