A rua do terror

Noite alta. Não havia viv’alma naquela rua mal iluminada, deserta. Júlio vagava, devaneava. Ao dar-se conta de onde estava, ficou apavorado. Seu coração bateu descompassado. Ouvia as palpitações, tão intensas, que ele acreditava que o coração romper-lhe-ia o tórax. Olhou em redor. Que rua era aquela, perguntou-se. Obnubilou-se-lhe a consciência. Como ele foi parar naquela rua? Lembrava-se de que caminhava, tranquilamente, por uma avenida atulhada de gente, vibrante de vida, e agora via-se naquela rua lúgubre, apavorante.

Sem se dar conta, enveredara por aquela rua, que lhe inspirou o mais terrível pavor. Uma rua que, devido ao seu aspecto sinistro, excitou-lhe os instintos que a natureza conservou ao longo de milhares de anos de evolução. Humano numa sociedade científica, conservava, latente, os instintos dos seus antepassados nômades.

Que rua era aquela? Nos postes, as lâmpadas bruxuleavam. Cones de luz fraca mal iluminavam os pés dos postes. Além dessa luz, as trevas reinavam absolutas. O silêncio, ensurdecedor. Era impossível – pensou Júlio – a existência, numa metrópole de vinte milhões de habitantes, de uma rua tão extensa e tão larga deserta àquela hora da noite. De repente, ventos frios fenderam o ar; iguais lâminas, cortaram-lhe a pele; e assobios tenebrosos chegaram-lhe aos ouvidos. Júlio pensou ouvir vozes cavernosas. Assustado, procurou pela direção da qual chegaram-lhe os ventos e os assobios. Ouviu ruídos indistintos. Aceleraram-se-lhe as palpitações do coração. Seus nervos estavam à flor da pele.

Surpreendendo-o, chegou-lhe, pelas costas, um barulho, que lhe feriu os tímpanos. Seus instintos o alertaram para o perigo que se lhe avizinhava, mas não o definiram, não lhe informaram a origem. O mistério que envolvia fenômenos tão estranhos assustou-o sobremaneira. Júlio não sabia o que pensar; não sabia como agir. Petrificou-se. Que rumo tomaria? Olhou para um lado. Não viu, no horizonte, o final da rua. Olhou para o outro lado. Qual a extensão da rua? Dois quilômetros? Dez quilômetros? Não logrou mensurar-lhe a extensão. Não viu nenhuma interseção daquela rua com outras ruas. A rua era demasiadamente extensa; não tinham fim as quadras que a circunscreviam.

Como, pensava Júlio, chegara àquela rua? De qual direção chegara? E agora, o que faria? Ficaria, lá, parado, a olhar de um lado para o outro? Ladeavam a rua extensos muros de sete metros de altura. E os prédios, e as lanchonetes, e os bares, e as agências bancárias, e as discotecas, e os teatros, e as livrarias, e as farmácias, e as bancas de jornais, e as pizzarias, e as doçarias, e as padarias, e as joalherias, e os consultórios médicos, e as lotéricas?

Transcorreram minutos. O coração de Júlio vibrava, descompassado. Júlio mal podia respirar. Suava em demasia. Sentiu esvanecer-se-lhe a mente. Esmorecia-lhe o ânimo. Imobilizado, não dava um passo. Seus pés, pareceu-lhe, enraizaram-se no asfalto.

Chegou-lhe aos ouvidos, não soube dizer de qual direção, ruído sinistro, tenebroso.

Voltou-se para a direção da qual acreditava que o ruído lhe chegara.

Arregalou os olhos. Aguçou os ouvidos. Viu trevas no horizonte e além dos muros.

Estava amedrontado, terrivelmente assustado. Suas pernas não respondiam à sua vontade. Dava-lhes ordens, em pensamento: “Mexam-se, pernas. Mexam-se, pernas”. Elas não se mexiam. O medo fê-las insubordinadas. Se o medo que afligia Júlio se exacerbasse, e Júlio se prostrasse, as pernas correriam, e abandonariam Júlio, lá, naquela rua tétrica. O tempo passava. Júlio imergia num estado letárgico, transido de medo. Seu corpo assumia a constituição de uma rocha inquebrável. Júlio a anteviu a sua morte. Veio-lhe à mente a imagem de seu coração pulsando nas mãos de uma criatura monstruosa. De sobreaviso, sentiu a aproximação de perigo. Uma ameaça rondava-o, sentia. Atormentava-o tal situação.

Olhou em redor.

As luzes bruxuleantes das lâmpadas.

Os muros.

Pareceu-lhe que a rua estreitava-se; que os muros encontravam-se no horizonte, e cercavam-no.

Silêncio. Nenhum ruído tétrico. Nenhum assobio sinistro.

Assustado, olhou em redor.

A rua, os muros, os postes cujas lâmpadas bruxuleavam.

Nenhuma alma viva. Nem a de um rato, nem a de um cachorro vadio, nem a de um mendigo esfarrapado, nem a de um bêbado maltrapilho, nem a de um transeunte desempregado.

Intrigante! Não há, nas metrópoles, uma rua deserta. Júlio não pôde dizer para si que não estava em uma rua deserta.

Que mistério era esse?

Que enigma Júlio teria de decifrar?

Júlio deu um passo, olhou em redor, coração aos pulos. Deteve-se. Estudou, os ouvidos apurados, os olhos penetrantes, o trecho da rua que seus olhos abrangiam. Ouviu apenas a sua respiração ofegante e as palpitações de seu coração.

Deu um passo. Nenhum ruído ouviu, e nenhuma voz.

Deu um passo.

O intervalo de tempo entre o terceiro e o quarto passos foi consideravelmente menor do que o intervalo entre o segundo e o terceiro e o entre o primeiro e o segundo. Esquadrinhou a rua à procura de uma criatura à espreita. Manteve-se afastado dos muros. Uma aparição sobrenatural, um fantasma, um monstro de sete cabeças, um animal feroz, uma pessoa feroz, um inumano, um homicida frio e calculista, imaginou Júlio, saltaria, não sabia de onde, sobre ele, e o mataria, faria picadinho dele, e o devoraria.

Deu passos, confiante e inseguro.

Deteve-se ao ouvir ruídos sinistros. Sussurros. Vozes humanas, pensou. De várias pessoas. O que havia lá? O que acontecia? De onde lhe chegaram os sussurros? Eram vozes humanas? Paralisado, seus olhos fixaram-se num ponto à sua frente. Viu o vazio. A tensão acelerou-lhe os batimentos cardíacos. Os sussurros chegaram-lhe aos ouvidos, não sabia de qual direção. Pareceu-lhe que se originavam de detrás do muro. De qual? Do da direita, ou do da esquerda?

Não sabia que direção tomar. E se desse um passo, e as pessoas – pessoas? – o atacassem? Para onde correria? O que havia atrás do muro à sua direita? O que havia atrás do muro à sua esquerda? O que havia nos bueiros? Os bueiros! - nesse momento Júlio atentou para os bueiros. Os bueiros! Havia um bueiro diante dele, silencioso, escuro, tétrico. Do bueiro saíam os sussurros que ouvira? Vivia gente no subterrâneo da metrópole? Humanos? Inumanos? Entes sobrenaturais? Fantasmas? Monstros? Entes malignos? Quais criaturas sondavam-no? Seguiam-lhe os passos? Preparavam-lhe um ataque? Os ruídos – sussurros, vozes humanas, acreditava Júlio - desapareceram.

Silêncio tétrico reinou.

Viu-se às portas da morte, na iminência de se deparar com o agente que lhe suprimiria a vida. Vieram-lhe reminiscências de épocas felizes. Relembrou as suas conquistas, os desafios que enfrentou, estudante, no vestibular, a sua classificação, os primeiros dias de aula na faculdade de engenharia eletrônica. Evocou a sua namorada, Beatriz, belíssima loira de um metro e sessenta. Romperam o namoro quando ela se transferiu, com o pai, a mãe e a irmã, para Belo Horizonte. Tinham dezenove anos. Foi a sua primeira experiência amorosa; a sua primeira desilusão. Pensava casar com ela, e com ela constituir uma família. Amava-a. Trocaram juras de amor eterno durante um ano, por telefone e cartas. A distância física, no entanto, afastou-os. Beatriz conheceu outro rapaz, com quem namorou. Júlio conheceu Alice, apaixonou-se por ela, e eles namoraram durante três meses – a incompatibilidade de gênios fê-los romperem o namoro. No terceiro ano na faculdade, estagiário em uma empresa de informática, Júlio conheceu Margharete. Namoraram durante dois anos. O namoro, que havia começado com juras de amor eterno, degenerou em brigas intensas, até que, enfim, decidiram seguir cada um deles o seu rumo. Evocou as desavenças com seus irmãos, seu pai e sua mãe, e os desentendimentos com alguns dos seus amigos, e os dois anos que se manteve distante de sua família, após brigar com seu pai. Evocou a sua vida vadia de três anos, perdido, nos prostíbulos, nos botecos, embriagado, caindo pelas ruas escuras da cidade, e o dia em que jovens vadios o agrediram. Assomaram-lhe à mente, numa golfada avassaladora, reminiscências do dia em que foi hospitalizado por consumo excessivo de maconha e o da sua prisão. Recapitulou o seu regresso à família, os sucessivos desentendimentos com seu pai, sua mãe e seus irmãos. Irromperam-lhe à mente imagens do seu retorno aos estudos, da sua reconciliação com seus familiares e amigos, do seu novo emprego, do sucesso obtido, da fortuna amealhada, das novas amizades. Assomaram-lhe à mente a figura de Marco Antonio, filho seu e de Fátima, garoto bonito, saudável, vistoso, que, duas semanas antes, completara um ano de vida.

Olhou em torno. Fixou a sua atenção no bueiro à sua frente. Dos bueiros saíram os ruídos, os sussurros?

Deu um passo. Deu outro passo. Deteve-se. Deu um passo. Manteve-se no meio da rua. Andou três metros. No horizonte encontravam-se os dois muros. Assustou-a ilusão.

Olhou em redor.

Andou, lentamente, poucos metros. Fixou o olhar nos bueiros pelos quais passou. Deteve-se. Olhou para a frente; não viu o fim da rua, não viu o fim dos muros.

Reinava a escuridão.

Pensou em correr. Deu dois passos. Deteve-se. Olhou para a frente. A rua não tinha fim. Andou. Quantos metros? Decidiu correr. Deteve-se. Mais uma vez, tentou correr. Deu alguns passos, largos, sempre na mesma direção. Não imprimiu velocidade. Com esforço, percorreu vários metros. Aos poucos, adquiriu confiança. Não ouvia nem um som, nem um ruído, nem uma voz. Acelerou os passos. Não suava, não respirava com dificuldade, não se sentia estrangulado, nem afobado, nem sufocado. Comandava seu corpo. Andou, com passos lentos; depois, com passos acelerados.

Correu um metro... Correu dez metros... Correu vinte metros... Cem metros... Duzentos metros... Quinhentos metros... Mil metros.

Os muros não tinham fim. Não chegou ao fim da rua. Ficou tenso, apavorado. Expandiam-se os muros. Não via o fim da rua e dos muros. Seu coração pulsou mais forte. Sentiu-se estrangulado, sufocado. Afligiam-no fortes dores de cabeça. Doíam-lhe músculos. Deteve-se. Sentiu-se desfalecer. Exausto, ofegante, curvou-se, com a mão direita ao peito esquerdo. Encolheu-se. Dobrou os joelhos. Pôs a mão esquerda no asfalto. Cuspiu. Tossiu repetidas vezes. Arrastou-se. Cerrou as pálpebras. Deitou sobre o lado esquerdo do corpo. Não tinha forças para se levantar, nem para levantar a cabeça, pousada sobre o braço esquerdo. Encolheu as pernas. Anteviu a sua morte. Tremia da ponta dos dedos dos pés até o topo da cabeça. Doía-lhe o corpo.

Adormeceu.

Despertou.

Aos seus olhos revelou-se a rua sinistra. Confuso e cansado, perguntou-se o que lhe aconteceu. Permaneceu deitado. Cerrou as pálpebras. Respirou fundo. Ouviu um grito estridente de mulher terrivelmente assustada. Deu um pulo, e preparou-se para defender-se de um ataque iminente. De qual direção chegara-lhe o grito? Olhou em redor. Pensou ter visto um vulto. Do bueiro saía uma criatura rastejante, disforme. Não lhe deu uma feição. Seu coração vibrou, descompassado. Recuou, tenso, assustado. Que coisa era aquela mancha escura disforme terrivelmente assustadora que assumiu a figura de uma criatura encapuzada, arrastava as bordas das vestes no asfalto, emitia voz sinistra, e cujos pés não se viam, e ia na direção de Júlio, que, assustado, o coração a vibrar descompassado, andava para trás, olhos fixos nela? Júlio ofegava, suava em bicas, chorava; corrente de calafrio percorreu-lhe a espinha. Eriçaram-se-lhe os pêlos. Virou-se nos calcanhares. Correu, desembestado. Tropeçou nas pernas. Caiu. Escalavrou o joelho e o cotovelo esquerdos. Levantou-se. Poucos metros depois, caiu, e bateu com o queixo no asfalto. Levantou-se. Poucos metros depois, caiu, dobrou-se sobre o seu corpo, esfolou o braço direito e torceu o pulso direito. Levantou-se. Correu. Sentiu a respiração da criatura encapuzada, que ia no seu encalço. Caiu. Agarraram-no, pelos tornozelos, mãos de unhas enormes e grossas. Gritou. Sangue escorreu-lhe dos tornozelos. Afligiram-no dores pungentes. A criatura encapuzada arrastou-o para um bueiro, cuja tampa Júlio agarrou. Outra criatura encapuzada saiu de um bueiro, do outro lado da rua, foi até Júlio, e pisou-lhe nas mãos. Júlio soltou a tampa do bueiro, e caiu às profundezas.

De um bueiro, um homem foi arremessado para a rua: Júlio. Ele estava cadavérico, e mal pôde pôr-se de pé, mal pôde abrir os olhos. Ao dar-se conta de onde estava, viu-se à esquina de um cruzamento de duas avenidas iluminadas repletas de gente. Voltou-se para trás. Atrás de si, um muro de quatro metros de altura. Voltou-se para a avenida iluminada. Andou, cambaleando, em meio à multidão alvoroçada. Ombros caídos, braços pendendo pelas laterais do corpo, respirando com dificuldade, foi para a sua casa.

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 10/02/2019
Código do texto: T6571337
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