Recomeçando – DTRL32
Menino. Porta. Jardim. Sorriso. Menino. Passos. Menino. Balanço. Menino. Voo. Menino. Sorriso. Menino. Chão. Menino. Choro. Sangue. Porta. Grito.
–Mamãe! Mamãe! Mamãe!
– O que foi? – Sara gritava em tons mais altos que o apito da panela de pressão.
– Eu caí. – O menino protegia o joelho machucado. As lagrimas escorriam sobre os cortes no queixo que agora se tornavam vermelhos com pequenas gotas transparentes.
– Quantas vezes eu já disse pra não brincar naquele balanço!? Sara retorceu os olhos, enfiou as mãos ao fundo de uma das gavetas do armário de cozinha, arrastando uma pequena maleta com curativos e antissépticos, habito adquirido após o filho ter abandonado o comportamento quadrupede. – Você é ainda pequeno pra isso. – Ela o apanhou nos braços e sentou-se no sofá pondo-o no colo, depois o beliscou, o menino choramingou, ela sorriu – Aprenda a me obedecer.
– Mas é divertido – O menino esfregava os olhos limpando as lagrimas.
– Por que você não pula na piscina? – Sara encobria os ferimentos com violeta e band aid.
– Eu não sei nadar mãe. – O menino recostava-se em Sara buscando abrigo.
– Eu sei. – Ela o beijou na testa. – Também seria divertido. Sussurrou fazendo-o um pouco depois dormir em seus braços.
Cozinha. Fumaça. Noite. Janela. Relógio. Faróis. Garagem. Porta. Cozinha. Braço. Ardor
– Como foi no trabalho? – Aírton cruzava a porta entreaberta. A garagem ficava no fundo do quintal e ele sempre entrava pela cozinha já de braços abertos, embora na maioria das vezes eles permanecessem sempre vazios.
Ela se desvencilhou do abraço certo de todas as chegadas, para logo enfiar a mão debaixo da torneira ligada, amortizando não somente a dor. Longe da água tudo retornava: a vermelhidão da pele, o ardor da queimadura e de maneira difícil de crer, tudo era acompanhado por certa energia revigorante e a muito improvável. A mulher contemplava a descoberta, o colorido, os aromas e o quanto o marido havia envelhecido.
– Você está bem? - Aírton jogou a maleta em um canto da parede e correu para a mesma gaveta, arrastando a mesma maleta de remédios e curativos. – Deve ter algo aqui para isso – Ele sacudiu a maleta sobre a mesa.
– Está tudo bem! – Ela manteve o sorriso inesperado.
– Aqui! – Ele apanhou a pomada, jogou a tampa longe e espremeu quase todo o cartucho sobre a queimadura formando uma camada generosa de creme rosa sobre a pele marrom da mulher. Após o ato “heroico” o sorriso de Sara se desfez, o colorido desbotou... – Agora vai ficar tudo bem. – Ele acariciou seus cabelos e se dispôs a colocar o jantar. O creme de abobora e queijo ainda borbulhava quando foi posto sobre a mesa. Sara olhou para a panela fumaçante e depois para a mão encoberta por creme. Enquanto Aírton apanhava os pratos, colheres e concha Sara limpava o curativo e levava a pele ainda vermelha e com leve ardor de volta ao encontro com a superfície lustrosa de alumínio. A dor ressurgiu com mais intensidade.
– Tudo bem? – Ele servia Sara com o creme e torradas de alho.
– Está tudo bem querido. Vamos jantar! – Em sua voz havia muitos pontos de uma alegria indeterminada.
– Não está doendo? – O homem parecia inconformado com aquela reação inusitada. Desde que o pequeno filho havia nascido, Sara parecia morrer um pouco todo dia. Aquilo quase podia ser chamado de milagre.
–Não. – A mulher engolia doses generosas do creme. Tudo estava mais intenso agora. As cores estavam lá, os sabores explodiam.
–Vai ganhar bolhas na língua assim. – Ele balançou a cabeça rindo. – Você tem que soprar. – Aírton demonstrou o que precisava ser feito do mesmo modo que havia feito ao seu filho há alguns dias mais tarde.
“Com sorte serão bem grandes” – Ela sussurrou para si
– Uma palavra para o meu dia: Lento. Tudo estava assim, desde o transito até a internet, só não as pessoas. Todos no banco estavam com muita pressa. E como foi o seu? – O vapor do creme embaçava seus óculos de grau, enquanto se servia.
– Tivemos alguns probleminhas com teimosia e machucados, mas nada que não eu já não tenha resolvidos antes. – Sara observou as lentes do marido refletirem a TV ligada. – Você não precisa usar isso o tempo todo. – A mulher tirou os óculos do marido. – Seus olhos são bonitos sem eles. – Ela os depositou sobre a mesa.
Chuva. Cama. Abraços. Noite. Silencio. Passos. Cozinha. Fogão. Garfo. Chamas. Garfo. Pulso. Ardor. Passos. Cama. Silencio. Passos. Cozinha. Fogão. Garfo. Chamas. Garfo. Pulso. Cama. Silencio. Passos. Cozinha. Fogão. Garfo. Pulso. Cama. Silencio. Passos. Cozinha. Fogão. Chamas. Pulso. Cama. Silencio. Passos. Cozinha. Faca. Braço. Cama. Silencio. Passos. Cozinha. Faca. Cama. Sonhos.
– Bom dia! – O beijo sobre a fronte o acordou. – Café? – A mulher depositou a xícara sobre o criado-mudo, afastou a cortina e abriu a janela. O vento fresco e alguns raios de sol invadiam o quarto. – Vai trabalhar hoje? – O homem recostou-se na cabeceira da cama, tomou um gole do café. – Coloquei canela, gostou? – Ele balançou a cabeça positivamente.
A mulher de vestido florido e um casaco de mangas longas de flanela azul turquesa, aroma de jasmim movimentava-se com leveza, com um toque de alegria. – E o Lucas?
– Dormindo querido, como se morto estivesse. – Ela o apanhou pela mão. – Então? Os seus olhos cintilavam, os dentes brancos reluziam sobre os lábios vermelhos.
– Não vou. Hoje é sábado, lembra?
– Que bom! Ela sorriu satisfeita. – Hoje poderemos estar todos juntos. Vou fazer um monte de coisas gostosas! Vai ter bolo e sanduíches! Vai ter suco e um pouco de chá! – Sara dava pequenos pulinhos no ar
– Tudo bem querida. – Ele bateu de leve sobre a colcha como um pedido para que ela se sentasse.
– Vamos a piscina nadar até cansar. – Ainda que sentada seu entusiasmo não diminuísse.
– Não se anime tanto querida. – Ele deu mais um gole no café. – Lembre-se que eu também não sei nadar
– Não se preocupe querido, eu sempre sentiria a falta de todos vocês. O dia vai ser maravilhoso. Tenho muitos planos. Poucos envolvem vocês dois.
Tema: Psicose