ADRENOCROMO
Os cabelos, desgrenhados e compridos, esvoaçavam; os braços abertos recebiam a força da natureza. No auge de um cume, o sangue transbordava das feridas das mãos e pés pregados numa cruz. Uma última lágrima salgou sua língua antes do fim.
...
Um fio de vento congelante acabara de entrar por uma fresta da janela, no quarto da jovem Katrine Franburgo, balançando as cortinas amareladas em seu caminho. Eriçou-se, involuntariamente, só não sabia se por causa do vento ou da estranha notícia que lia no Vetcherdagg, jornal de maior circulação do condado.
"(...) E última vítima desta misteriosa e noturna criatura que ronda nosso estimado Condado de Hainstern foi o ilustríssimo Barão de Viltemurph. Viúvo, morreu aos sessenta e seis anos deixando seis filhos.
As duas pequenas marcas, redondas e profundas, deixadas em seu pescoço e exames que demonstravam que faltava ao menos sete litros de sangue em sua corrente sanguínea fizeram os mais céticos médicos que o examinaram duvidosos de sua descrença.
Em outras palavras, caros cidadãos de Hainstern, tudo indica que se trata de nada mais, nada menos do que um vampiro."
Katrine apertou seu colar decorado com uma insígnia de pentagrama com uma das mãos. Ela sabia que o símbolo era considerado maligno por muitos, mas desde que ganhara o colar, só o removia para se banhar. O que fazia o colar tão especial para ela não era sua forma, mas a pessoa que a presenteou: James. James Madison, seu professor de artes. Mas para seus pais, o colar fora presente de uma amiga estudante. Eles não poderiam sequer imaginar que seu professor, vinte e dois anos mais velho, estava lhe dando presentes.
O problema nem eram os presentes em si, mas sim, que suposições tal ocorrido poderia levantar. Poderiam achar que o professor estava cantando-a e tirá-la do curso, o curso que tanto adorava.
Atemorizada pela notícia que acabara de ler, Katrine dobrou o jornal e o colocou na escrivaninha ao lado da cama. Em seguida, levantou-se rapidamente para fechar as cortinas e se aprontar para dormir.
Já na cama, com as velas apagadas e o cobertor confortavelmente sobre si, finalmente fechou os olhos. Uma lembrança de sua última aula de pintura a óleo se materializou. James estava especialmente lindo naquele dia, com um topete oleado iluminado pelo reflexo da luz natural. Ele, que quase nunca sorria, naquele dia mal conseguia se conter. Pequenos sorrisos brotavam aqui e ali durante a aula, mesmo ele procurando manter-se sério como costumava ser. Parecia estar feliz com alguma coisa... na verdade, transbordando de alegria e Katrine bem sabia porque.
Tinham se beijado no fim da aula anterior à esta, quando ela o procurara para tirar uma falsa dúvida sobre tons de tinta. Havia passado a aula inteira imaginando que desculpa daria para permanecer na sala após a aula acabar.
Nos dias seguintes ao acontecimento, revivera o momento incontáveis vezes em sua mente.
E agora estava animada porque na última aula ele parecia feliz, o que só podia significar uma coisa: ele gostava dela.
Infelizmente não pôde ficar a sós com ele neste dia. Lady Franburgo havia marcado de buscá-la e não poderia se atrasar para encontrar a mãe.
A data da próxima aula enfim chegou, trazendo com ela a esperança.
Katrine acordou cedo e foi direto para o espelho. Ajeitou seus cachos louros e maquiou-se. Horas se passaram enquanto ela escolhia roupas e jóias até se convencer de que estava bela o suficiente.
Tão ansiosa estava para ver seu amado que saiu de casa meia hora antes do horário.
“Está muito cedo para sua aula. Onde está indo?”, perguntou sua mãe enquanto a moça passava pela porta. A jovem fingiu não escutar e saiu.
A Central Dali ficava a vinte minutos de cavalgada. Amarrou seu cavalo marrom com pintas brancas no estábulo ao chegar. Um número razoável de alunos e professores perambulava em volta do rosado edifício circular, entrando, saindo ou apenas conversando.
Procurou seu amor com os olhos, sem sucesso, decidindo se encaminhar para a sala.
Cumprimentou desinteressadamente diversos conhecidos enquanto andava. Seu coração batendo mais forte, imaginando se o professor já teria chego na sala e se estaria sozinho. O que ela diria quando o visse? Será que ele a beijaria de volta? Apertou o colar de pentagrama para aliviar o nervosismo crescente.
Enfim avistou a porta da sala enquadrada no corredor escuro. Aproximou-se nervosamente. Percebeu que a porta estava entreaberta. Ouviu vozes abafadas.
Curiosa, chegou devagar e olhou pela fresta. Ouviu risos antes de ver as pessoas que estavam rindo. Seu coração parou. Dentro da sala, James estava agarrado a outra moça. Teve que virar a cabeça para enxergar a lateral do rosto da criatura que ele agarrava. Reconheceu Miriam Goldine um segundo antes de James avançar mais sobre ela para beijá-la.
Antes que pudesse ser vista ali, saiu apressada por onde veio. O coração num turbilhão. Como pode ter sido tão burra? Estivera apaixonada por um canalha. E como ele poderia ter preferido Miriam Goldine à ela? Miriam era muito mais feia. Cabelos escuros, olhos mortos, narigão, a própria personificação de um macaco-tromba. Diferente dela, que parecia uma princesa com seus cachos louros e rosto jovial e amigável, as maçãs faciais altas e avermelhadas, os olhos gentis e castanhos.
Era inconcebível.
Pegou seu cavalo e trotou de volta para a casa com os olhos vermelhos carregados de lágrimas.
James, o homem que dominou sua mente pelos últimos três meses, a traiu com uma moça muito mais feia e burra do que ela. Não sabia se sentia raiva ou tristeza.
Agora a única lembrança que tinha em sua mente era a de James agarrando Miriam.
Anunciou para sua mãe que tinha desistido do curso de pintura a óleo e fora se desmatricular, por isso saíra mais cedo. Tirou o pentagrama do pescoço e jogou-o em uma gaveta, ainda sem coragem de jogá-lo no lixo, e se encaminhou à cama para chorar.
Nunca mais pisou no Centro Dali desde então.
…
Dois meses se passaram e ainda estava magoada. Revivia o momento da descoberta várias vezes. Continuava a pensar em James e se sentia infeliz.
“Será que se lembrava dela?”, “ Será que ele estaria com a outra agora?” Perguntas do tipo inundavam sua cabecinha.
“É apenas um velho idiota”, dizia consigo mesma.
Um belo dia, Katrine voltou pra casa vinda de uma visita à prima, e sua mãe a abordou com uma notícia inesperada.
“Oh!”, exclamou depois de ouvir que o senhor Madison havia passado em sua casa para saber como ela estava e porque tinha abandonado o curso.
Foi para o quarto com um sorriso inútil no rosto. “Ele ainda gosta de mim”, concluiu.
Num segundo havia esquecido a cena escabrosa com Miriam Goldine e passou a sonhar estupidamente com amor e paixão, com a senhora Katrine Madison e seu marido James juntos e felizes.
No outro dia ele não apareceu. Nem no outro, nem no seguinte. Katrine entristeceu. Talvez seu príncipe tivesse se esquecido dela.
Um mês depois decidiu ir atrás dele.
Foi encontrá-lo na sala de aula pendurando uma reprodução à óleo de “A Vampira” de Edvard Munch na parede. Não pode deixar de notar que a mulher retratada era loira ao invés da ruiva da pintura original.
“Quem é vivo sempre aparece.”, disse ele.
Ela sorriu.
“Então porque não foi me procurar? Não está mais vivo?” Ele franziu a testa para à pergunta, aparentando choque por um segundo. Depois disse:
“Bem…Devido seu sumiço, presumi que não quisesse mais me ver.”.
Não soube o que responder.
“Não queria?”, Madison insistiu, movendo os olhos de seu rosto para baixo. Katrine soube que ele olhava para seu pescoço, procurando pelo colar.
“Não sei”, respondeu cabisbaixa, sem saber se citava Miriam ou não.
Ele se aproximou e tocou seu pescoço. Sua mão parecia feita de gelo.
“Perdeu?”, ele perguntou.
“Nunca”, num impulso, Katrine abraçou o professor pela cintura. Ele correspondeu ao abraço.
Ele sorriu com a boca e os olhos.
“Não parei de pensar em você todo esse tempo”, ele disse o suficiente para a colocar nas nuvens.
Marcaram um encontro. “Vá com seu colar”.
Após isso, colocou novamente seu pentagrama e não voltou a tirá-lo nem para o banho. Contou os minutos até a hora do encontro.
A noite marcada chegou. Tinha planejado despistar seus pais, mas percebeu que seria impossível. Eles estavam discutindo no jardim, então não poderia passar despercebida. Teria que inventar uma desculpa.
“Preciso devolver uma tela para Miriam Goldine, uma ex-colega do curso de pintura. Ela estará esperando…”, foi tudo que conseguiu inventar na hora.
“Não”, respondeu severamente seu pai, “vá amanhã cedo.”
“Mas, mas...”
“Lembre-se do que aconteceu ao Barão. Há algo sinistro nas ruas noturnas… um terrível assassino à solta..”
“Engana-se”, interrompeu ela. “O xerife revelou que ele tinha uma amante. Uma jovem de cabelos castanhos. E agora suspeita que um de seus filhos o matou para proteger a herança da mulher… Não tem nada a ver com assassinos aleatórios ou vampiros. Aliás, nem os furos no pescoço eram verdade. Um caso sensacionalista, nada mais”.
“Não tinha conhecimento disto”, espantou-se sua mãe. “Como soube?”
As notícias da morte do Barão de Viltemurph eram burburinho constante no condado.
“A prima me contou ontem, ela recebe o Vetcherdagg dois dias antes de nós. Amanhã poderá ler a notícia no jornal”, era verdade.
“Sendo assim…” disse contrariadamente seu pai, “vá. Mas retorne antes das nove, ou...” Ele não precisava continuar. Ela sabia que receberia um castigo caso desobedecesse.
Nove era muito cedo, mas não discutiria. Era melhor aceitar a vitória antes que ele mudasse de ideia.
O local marcado não poderia ser mais incomum: Cemitério Hainstern, localizado numa colina e próximo a um bosque.
Vestia um deslumbrante vestido branco incrustado de quartzos por baixo de um sobretudo cinza que pusera apenas para ocultar o vestido de olhares curiosos. A cor foi pedido especial de James. “Para simbolizar sua pureza”. Pensar no que aconteceria aquela noite a dava arrepios virginais.
Chegando lá, se deparou com um breu só não maior por causa da lua cheia. Nem sinal de James. Avistou um pergaminho jogado no chão, próximo a entrada.
“Siga o coelho branco”, dizia. A letra era de James, sem dúvida. Olhou em volta.. para sua surpresa, um coelho branco estava sobre um túmulo próximo. Conforme ela o seguia, ele avançava, até que saíram do cemitério e adentraram no bosque.
Ela continuou atrás do coelho, subindo a colina, até que ele desapareceu quando ela chegou a uma clareira.
Momentaneamente desesperada por ter perdido seu rastro, olhou em volta, até se dar conta de que estava em cima de uma forma desenhada em branco no chão terroso. Era um pentagrama. Naquele momento, sentiu um terrível calor no pescoço. Gritou enquanto sentia o colar marcar sua pele com a forma estrelar como se fosse um boi sendo ferrado.
Incrédula, passou a mão pelo pescoço, sentindo a cicatriz recém formada.
“Ora, ora, quem está aqui…” uma voz feminina falou.
Katrine buscou a fonte da voz e deu de cara com Miriam Goldine, toda de preto, à seu lado e com uma vela na mão.
Assustada, tentou correr.. em vão, pois descobriu que não conseguia sair de dentro do pentagrama desenhado no chão, como se estivesse presa ali por uma parede invisível. A mulher deu risada.
“Piranha. Veio atrás do meu marido, né? Sua safada. Vai ter que o putas merecem.. ah, se vai”, disse Miriam.
“Ma-marido…?”, gaguejou Katrine, “me perdoe, por favor. Eu não sabia que ele era…” Sua frase foi interrompida por um súbito ardor no pescoço. Antes que pudesse perceber o que estava acontecendo, começou a sufocar.
James Madison surgira ali como um fantasma, com um chicote nas mãos que enrolava-se no pescoço da jovem Franburgo.
“So..soc…”, Katrine não conseguia terminar a frase. O chicote apertava demais.
“Sabia que viria, piranha” disse ele. Em seguida, esnobou: “Todas as mulheres me querem e todos os homens querem Miriam. Viu amor? Somos uma dupla perfeita”.
As faces dos pais passavam pela mente de Katrine. “O que foi que eu fiz? Onde me meti?”, perguntava-se. “Devia ter ouvido meu pai...”
“Somos, meu amor”, disse a mulher, “o vampiro e a bruxa”. E desatou a rir.
Os momentos seguintes passaram como um borrão. A mulher recitava alguma coisa enquanto James a açoitava com o chicote, fazendo-a gritar e sangrar, presa a seu círculo de morte.
“Ana-santa-santanare-Baal-Baal-Zehbu”, ela dizia. “Satan-santa-satanare-Baal-Baalzehbu”.
Parecia estar invocando algum demônio. Aquilo só deixou Katrine ainda mais assustada.
“Parem...porquê?”, foi tudo que ela conseguiu dizer, antes de James lançar o chicote em sua boca e ela sentir o gosto do próprio sangue. Entorpecida, engoliu um dente, se engasgando em seguida. Tomada pelo desespero, tentou forçar o dente para fora. Forçou um acesso de tosse até que vomitasse, cuspindo sangue e pedaços de dentes quebrados, junto com sua última refeição.
Seu antes belo vestido era agora uma profusão de trapos ensanguentados e sujos de terra, fedendo a vômito, suor.
“A puta está quase no ponto”, anunciou James.
“Sim, só falta o grã finale”, disse a bruxa, antes de James apagar Katrine com um soco no olho esquerdo.
Foi acordar sentindo dores inacreditáveis pelo corpo. Tudo doía, mas principalmente as mãos e os pés.
Demorou um tempo para seu cérebro abatido perceber que ela estava pregada em uma cruz no topo da colina. De lá, via toda Hainstern à distância. Quase conseguiu apreciar a vista, talvez durante um milésimo de segundo tenha apreciado.
“A vagabunda acordou…”, disse Miriam. Não sabia se era alucinação, mas Miriam parecia cem anos mais velha naquele momento.
James estava a seu lado, ainda igual ao que era antes.
Perdera as forças até para gritar, então emitia um gemido estranho e continuo enquanto observava James pegar um ornamentado jarro com um líquido escuro de debaixo da sua cruz e entorná-lo.
A substância escorria por seu rosto enquanto ele bebia do jarro, o mesmo rosto que ela tanto amara.
“Obrigada por me ajudar novamente, querida. Pena que você não aprecie o elixir da vida”, falou James para Miriam, antes de beijá-la, numa cena repugnante.
Voltou a colocar o jarro aos pés de Katrine.
Ela sentia suas forças irem embora à medida que seu líquido vital escorria pelas feridas.
Na sua frente, James começara a falar em línguas estranhas e bater loucamente no ar, como se estivesse entorpecido por alguma droga.
Miriam permanecia imóvel com um meio sorriso, fitando sem piscar o rosto de Katrine.
“Adrenocromo”, disse por fim, como que esclarecendo a situação de James para Katrine.
Subitamente, algo assustou a macaca-tromba e ela sinalizou algo a James. Ele pareceu se alarmar, agarrou o jarro, e os dois desapareceram floresta afora.
Com um esforço monumental, virou sua cabeça o máximo para trás que conseguia, chegando a ver luzes distantes surgindo abaixo das árvores.
“Katriiiiiine…”, o vento trouxe um grito distante.
Sentiu o gosto salgado de uma lágrima antes de deixar este mundo.
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Tema: Vampiro