OS DEMÔNIOS DE RAQUEL

Com o passar das horas, a noite que havia começado fria e totalmente fechada por conta da barreira de nuvens que preenchia toda a extensão do céu, ensaiava uma ligeira, porém, agradável mudança. Até mesmo a lua, que se mantivera reclusa durante boa parte do tempo, exibia agora a imponência de sua presença.

O casal acomodado em um dos bancos da pequena praça havia aproveitado o pretexto da baixa temperatura para estreitar a distância entre eles. Mesmo com a repentina mudança no cenário, as mãos úmidas ainda mantinham-se entrelaçadas. O rapaz ouvia animadamente os planos futuros da menina, no entanto, o que ambos não sabiam era que o leve farfalhar nas folhas das amendoeiras que enfeitavam o parque, causado por uma brisa extremamente abafada, seria um prenúncio de que o presente era algo muito mais urgente do que o futuro.

Favorecida pela posição, a garota percebeu um discreto brilho avermelhado no alto da árvore, a estranheza da situação interrompera de súbito suas palavras, chamando imediatamente a atenção do rapaz. Por azar, ou sorte, este não viria a entender a natureza dos fatos, pois somente ela pôde acompanhar o par de órbitas rubras projetando-se da copa em sua direção. O grito que começava a tomar forma em sua garganta não obteve tempo suficiente para se tornar perceptível, a reação fora abafada pelo potente e único golpe que viria a decepar a cabeça do namorado, jogando-a ao chão. O luar realçava os contornos da criatura, os incrédulos olhos da jovem não aceitavam a visão que se oferecia diante deles. Com as costas no relvado e completamente encurralada, pouca coisa a menina poderia fazer. Sem prévio aviso, sentiu sua carne ser dilacerada pelas garras curvas e afiadas da besta. Enormes fendas abriam-se em seu tórax, seria impossível descrever a dor que dominava cada parte do seu corpo. Não tardaria a receber o abraço gélido da morte, e, àquela altura, já desejava essa possibilidade como uma benção. O planejamento de uma vida feliz terminaria ali, com uma execrável mistura sanguínea fornecendo uma nova coloração ao chão barrento da praça.

A notícia estampada na primeira página do jornal dava conta de que mais corpos teriam sido encontrados com sinais evidentes de mutilação. O fato havia se tornado uma rotina nas últimas semanas, as autoridades não dispunham de nenhuma pista sobre o autor de tais atrocidades. As folhas dobradas do jornal somavam-se a tantas outras, num bloco compacto empilhado em um canto da sala. Para Raquel, a manchete do jornal, ou qualquer outra notícia, pouco importava, na verdade, ela não fazia a mínima questão de saber o que acontecia no mundo. Para ela, entender o que se passava consigo mesma já havia se tornado um desafio cada vez mais difícil de ser superado.

A mão suada e trêmula da mulher pressionava com raiva os contornos do telefone, o pensamento que lhe invadia a mente transformava o objeto no pescoço da dona da voz que lhe falava do outro lado da linha.

- Não senhora. Não podemos vender medicamentos controlados sem receita médica.

Era a terceira tentativa frustrada naquela manhã. Raquel tremia enquanto acendia mais um cigarro. Ela não estava bem. Não estivera nos últimos três meses. Uma licença médica a excluíra do trabalho. Estava mergulhada em antidepressivos, antipsicóticos, toda sorte de comprimidos. Mas, nada fazia efeito, sentia-se vazia, a lembrança de satisfação plena era tão recente em sua memória, entretanto, não se lembrava como, nem onde, mas sabia que já possuíra o que buscava agora, só não sabia o que fazer para reconquistar essa plenitude.

Muito nervosa, ela emitiu um suspiro e observou a fumaça de seu cigarro subir, um espiral acinzentado e triste. Na casa escura, sua melancolia ficava mais evidente, embora o céu lá fora estivesse azul e o sol brilhando, dentro do seu lar e do seu coração tudo era negro. Já pensara em suicídio, porém não tinha coragem para isso, não tinha coragem para nada. Seu médico já não ajudava, desconfiava que os remédios que recebia não passavam de uma ilusão vendida para contornar a sua dor, o efeito era nulo, precisava de mais, de uma quantidade maior e mais forte.

Sentia-se solitária, um ponto perdido no meio da multidão, não tinha ajuda, não sabia o que fazer, não possuía família na cidade, nem amigos. A exceção era Márcia, a colega do trabalho, a única que havia ficado ao seu lado e que demonstrara um pouco de preocupação. Era só ela, mais ninguém.

Às vezes era invadida por uma lembrança vaga, onde era revestida por uma sensação de paz, mas a origem de tal sentimento era um mistério, a memória era tão turva quanto a fumaça do cigarro que acabava em sua mão. Freqüentemente se questionava se o juízo não lhe começava a faltar. Era difícil dizer, seu mundo era só aquele, não sabia distinguir com clareza o que era real ou não. Raramente saía de casa, para ir ao banco, pagar contas, comprar comida e outros afazeres, era sempre a Márcia que se ocupava, ela só se preocupava mesmo com os remédios, nada mais.

Tragou mais uma vez, pegou o copo de café posicionado sobre a mesa, já estava frio, mas quem se importava? Ela não. Acendeu outro cigarro, pegou um pequeno pote, abriu a tampa e despejou o conteúdo do recipiente na palma da mão esquerda, ficou frustrada, três cápsulas apenas, pequenas, metade azul, metade branca, já nem sabia para que serviam, não fazia diferença, colocou-as na boca e as engoliu com a ajuda do café.

Levantou-se e sentiu um peso enorme na cabeça, um leve torpor percorreu-lhe o corpo, caminhou até o banheiro, olhou-se no espelho do armário, o que viu não correspondia às fotografias dos porta-retratos. Quem era aquela? Não se reconhecia mais. Os cabelos desgrenhados não combinavam com a mulher vaidosa que já fora, o pescoço arranhado denunciava os momentos de perda da razão, os quais eram freqüentes ultimamente. Abriu a torneira e deixou a água fluir, ficou observando e refletindo, não aceitava estar daquele jeito. Logo ela que já tivera várias pessoas sob sua orientação e supervisão, como não conseguia agora comandar a própria vida? Encheu as duas mãos com a água gelada e jogou em seu rosto na tentativa de acordar, estava decidida a fugir, não sabia o caminho a seguir, mas conhecia o transporte, embarcaria no trem em forma de pílulas, que a levaria ao maravilhoso mundo alucinógeno, onde tudo era bom, tudo dava certo, sem preocupações, sem dúvidas e medos.

Ouviu o som de passos, dirigiu-se para a sala e lá encontrou a amiga. Márcia trazia um pacote.

- Bom dia, Raquel? Como você está hoje? Já tomou café? Trouxe algumas frutas para você.

Márcia imprimia um tom específico nas palavras, buscava despertar ânimo na amiga. Porém, a resposta extinguia qualquer possibilidade.

- Não tenho fome, Márcia. Trouxe meus remédios?

- Mas você precisa se alimentar e...

- Trouxe, Márcia?

- Sim, Raquel, estão aqui. Mas, me prometa que você vai comer alguma coisa.

- Não posso prometer nada.

A mulher agarrou a sacola plástica que continha o tesouro desejado e a apertou contra o peito. A amiga olhava para a cena e balançava a cabeça em negativa.

- Raquel, preciso trabalhar, me ligue se precisar de qualquer coisa, e, por favor, não saia de casa durante a noite, as coisas estão muito perigosas por aí. Não se esqueça de trancar a porta, ela estava aberta quando cheguei.

Márcia foi embora sem ter a certeza de que a amiga havia ouvido as recomendações.

Raquel passou o dia da mesma maneira que passara todos os outros nos últimos meses, entregue e derrotada. A noite havia começado há algum tempo, no interior da casa nenhuma iluminação para fazer-lhe companhia, ela achava que a escuridão fazia jus a seu estado de espírito. Mesmo envolvida por pensamentos desconexos, um fato inusitado chamou-lhe a atenção. Na casa vizinha, trancada fazia tempo, uma lâmpada quebrava o breu absoluto, sinal evidente de que havia alguém lá.

Raquel não sabia, mas o homem que enxergava através do vão da janela já estava naquela casa há um mês. Tempo exato em que retornara de uma viagem proveitosa a França. O sujeito exercia o ofício de antiquário, e estava particularmente satisfeito pela escolha da nova residência, e também pela aquisição de objetos de inestimável importância, sobretudo um em especial, único em sua natureza e característica.

A peça, predileta dentre todas as aquisições, tratava-se de uma estatueta de pedra, uma gárgula na verdade, com coisa de um metro e trinta de altura. Era uma figura grotesca, moldada de forma que se apresentava agachada, grandes olhos estampavam o seu rosto, lembravam muito os de um felino, dois chifres enormes e retorcidos saíam de sua testa. A boca, permanentemente aberta, ostentava dentes curtos, afiados e simétricos, uma imensa língua se projetava dela, a água da chuva deveria escorrer por ali. Do tronco, pouco se podia notar, visto que as pernas dobradas e abraçadas pelos braços longos, impediam uma melhor análise. Um par de asas semelhantes as de um morcego, e uma cauda terminando em ponta de seta, davam contornos finais e demoníacos à escultura.

O colecionador havia colocado seu objeto preferido sobre a marquise da fachada de sua casa, a qual era enfeitada por pedras decorativas, em um estilo gótico, ficando o resultado bastante satisfatório. O velho teve a nítida impressão de que estava sendo observado, então, girou o pescoço e cruzou o olhar com a perturbada mulher, mesmo esta estando oculta pela penumbra. Raquel observou um discreto sorriso e um aceno de mão por parte do vizinho, e pela primeira vez em muito tempo, experimentou uma sensação diferente da costumeira e profunda angústia, no entanto, o que sentiu não a fez se sentir nem um pouco melhor, muito pelo contrário.

A mulher permaneceu na mesma posição, esticada no sofá, mesmo muito tempo depois da janela do vizinho ter sido cerrada. Olhava para as dependências daquela casa como se esperasse algo, e para sua constatação, eis que de fato isso aconteceu. Um filete tênue do luar incidia diretamente sobre a estatueta da fachada, Raquel estava com o olhar fixado na escultura, parecia ser capaz de examinar com exatidão cada ranhura daquela superfície de pedra, então, de maneira inexplicável, percebeu um leve movimento nos olhos da gárgula.

A ação durara uma fração de segundo, mas fora o suficiente para levar a mulher ao chão tomada pelo susto. Raquel correu até a janela, esfregou os olhos para certificar-se do que vira. A estatueta permanecia impávida em seu local de repouso. Loucura, foi o que pensou. Estava ficando louca, só poderia ser isso. Entretanto, por mais incrível que pudesse parecer, seu corpo não apresentava mais a tremedeira, nem os sinais de debilidade, sua mente estava límpida como há muito não estivera.

Agarrou o telefone e teclou o número da amiga. Márcia chegou em minutos.

- Como assim, Raquel? Lamento te dizer, mas isso foi alguma alucinação causada pela quantidade de remédios que você toma. - Disse a amiga de maneira incrédula e preocupada, enquanto oferecia uma xícara de café forte e amargo.

- Não, Márcia! Não foi uma ilusão! Eu sei o que vi. Aquela estátua – apontava para a escultura na casa vizinha – revirou os olhos sim.

O tom de voz da mulher chegou a exercer certa hesitação na convicção de Márcia, porém a incoerência da narrativa rapidamente a trouxe de volta à realidade.

- Faz o seguinte, Raquel. Descanse um pouco, durma, amanhã a gente conversa mais sobre isso, está bem? Com certeza amanhã você estará melhor.

Márcia levou a contrariada amiga para o quarto e certificou-se de que a porta da casa estava trancada quando saiu. Estava preocupada com tudo que ouvira, mas a súbita sobriedade de Raquel era algo que tornava tudo muito mais estranho. Caminhava apressada, sua casa não era longe dali, mas a recente onda de violência a deixava atemorizada.

Raquel não conseguia dormir, revirava-se de um lado para o outro na cama, irritada, levantou-se, correu para a sala, abriu a janela e desesperou-se. A gárgula não estava lá.

Minutos atrás, um estranho fenômeno apoderou-se da estatueta, com a luz da lua cheia incidindo diretamente sobre a bizarra figura, a pele de pedra começou a rachar e cair. Logo todo o antigo revestimento do objeto havia desaparecido, e em seu lugar surgira uma cobertura de escamas, placas duras e ovaladas, de coloração negra, com leves reflexos azulados. A nova pele lembrava muito a de um réptil, porém com uma aparência muito mais repugnante. A gárgula ensaiou um bater de asas tímido, mas que em alguns instantes se provara confiável para que alçasse voo.

Sobrevoou a região, tinha um objetivo em mente, conseguir o sustento para que seu corpo permanecesse nesse mundo, o nosso mundo, logo avistou o que queria: uma figura feminina que andava apressada na quietude da noite. Márcia olhava constantemente para os lados enquanto caminhava, não imaginava que o perigo estava sobre sua cabeça. Não teve tempo de reação, o movimento do demônio fora rápido e preciso. Utilizando as garras das patas traseiras, a gárgula a agarrou com um só golpe, roubando-lhe um grito e filetes de sangue, proporcionando-lhe uma imensa dor. O demônio elevou-se a uma grande altitude, as súplicas de Márcia não alcançariam socorro, as garras se abriram, ato que condenou a jovem a um inevitável destino, o impacto contra o solo deixou-a preparada para o que a criatura queria. Mais uma vez, fazendo uso das afiadas e curvas armas em suas patas, a fera retalhou o abdome da amiga de Raquel, expondo os órgãos internos e as vísceras, um banquete à disposição do apetite insano da criatura.

Por alguns instantes ela duvidara de sua sanidade, afinal, a possibilidade de que estivesse sofrendo algum tipo de perturbação por conta das viagens alucinógenas era mais do que provável. Mas, como negar um fato evidente? A estátua não estava lá, não estava mesmo. Precisava contatar a amiga, Márcia veria com os próprios olhos e não poderia negar os fatos, não mesmo. O celular emitia o tom constante de chamada, porém ninguém atendia, uma sensação ruim tomou conta de Raquel e um impulso a comandava para que saísse e procurasse a única pessoa que a apoiava. Entretanto, ao abrir a porta e vislumbrar a escuridão da noite, o habitual pânico retornava com força em seu peito.

Os conflitos internos se tornavam cada vez maiores, sabia que precisava sair dali, mas, o medo a impedia, não sentia a confiança necessária para romper os obstáculos que a deixaram deste jeito, era mais forte, não havia como lutar. Uma crise de choro e desespero a dominou, numa atitude impensada despejou o conteúdo de um dos frascos na palma da mão e engoliu as cápsulas coloridas. O impacto fora por demais potente para o frágil corpo, Desfaleceu vencida pelo golpe.

- Moça, ei, moça...

Com dificuldade Raquel abria os olhos, percebeu que vários homens a cercavam, eram policiais. Demorou a organizar os pensamentos, e quando o fez, sobressaltou-se de imediato. Correu até a janela e constatou que o sol forte refletia sobre a superfície rochosa da estátua.

- Encontramos o seu número na tela do celular de Márcia Albuquerque. Procede?

- Sim, ela é minha amiga, esteve aqui ontem a noite e depois que ela saiu, eu liguei para o celular dela. Qual a razão da pergunta, senhor? O que vocês fazem aqui?

Os homens da lei se entreolharam antes de responder.

- Lamento informá-la, mas ela está morta, foi assassinada.

Novamente Raquel foi ao chão, desta vez derrubada pelo impacto da notícia.

- Não acredito! Como isso pôde acontecer? Não! Márcia! Não!

As autoridades encontraram dificuldades para controlar a contrariedade da mulher, mas, aos poucos, e com a ajuda de água com açúcar, ela começou a se recompor. Os policiais relataram o que havia acontecido, comentaram suas suspeitas, e ficaram incrédulos ao constatarem que a mulher estava alheia aos acontecimentos recentes na cidade.

Raquel sentiu uma imensa vontade de contar aos policiais os estranhos fatos que presenciara, mas a recente onda de bom senso fez com que se desfizesse de tal sentimento. Sabia que, de um jeito ou de outro, estaria envolvida na investigação, mesmo com a certeza de que a morte de Márcia viria a somar-se à triste estatística que assolava aquela área da cidade. Não, ela não poderia oferecer-se como louca, precisaria estar alerta e confiável para descobrir o que realmente acontecia naquela maldita casa vizinha.

Noite após noite Raquel vigiara a atividade da estátua. Mais de uma vez presenciara, estarrecida, a inacreditável mutação. A fera permanecia fora durante toda a noite, retornando antes do nascer do sol, posicionando-se na marquise da casa. As mortes continuavam a acontecer, e isso a colocava em mais um conflito. Ela tinha certeza da ligação entre a gárgula e o massacre, mas sabia que o seu histórico não a credenciava como fonte confiável. Nunca mais vira o vizinho, o dono da casa ao lado. Desta forma, arquitetara um plano, aproveitando-se da segurança do dia, destruiria a maldita estátua enquanto esta estivesse em forma de pedra.

Pela primeira vez em muito tempo saía às ruas. Com uma mochila às costas, levava algumas ferramentas para a investida. Esgueirou-se pelo terreno alheio, contornou a varanda e fazendo uso de uma escada, alcançou o telhado. Em nenhum momento fora importunada.

Cautelosamente arrastou-se sobre as telhas, após alguns minutos chegava até a estátua. Retirou uma marreta e uma talhadeira da mochila, e, ao encostar no revestimento de pedra da gárgula, sentiu a palma da mão queimar. Refazendo-se, posicionou o objeto pontiagudo sobre a cabeça da estátua, ergueu a marreta e golpeou com toda a força de seu braço. No mesmo instante em que uma estreita fissura se formava na estatueta, um som agudo e metálico escapava da boca escancarada. O susto fez com que Raquel perdesse o equilíbrio, vindo a despencar no jardim da casa. Sem ar e com as costas no gramado, pôde ver o líquido rubro escorrer como uma cascata por toda a extensão da enorme língua da criatura. O jato de sangue era despejado diretamente sobre seu corpo, e desta vez o grito que ecoava era proferido pela garganta da mulher.

Mesmo sofrendo com uma dor aguda por todo o corpo, Raquel levantou-se e correu de volta para casa, não estava ainda emocionalmente recuperada para passar por uma situação desse tipo. A fuga da mulher era fiscalizada pelo olhar vigilante e oculto do vizinho. Protegido por uma cortina, o sujeito acompanhara cada passo da invasora em seu território, não conseguira conter um sorriso cínico mediante o desespero alheio.

Trancada em casa, Raquel tentava controlar a respiração. Cautelosamente pôs a cabeça na janela a fim de observar a maldita estátua. A cascata de sangue convertera-se em apenas algumas gotas a escorrer pela língua de pedra. A criatura parecia exibir uma expressão de deboche.

As autoridades já não sabiam o que fazer. O responsável pela investigação havia efetuado a prisão de inúmeros suspeitos, mas, a onda de terror não cessava. O policial sempre fora um homem demasiadamente cético, por isso mesmo demorou muito para que aquela possibilidade remota, improvável, na verdade, pudesse ser digerida por seu senso de lógica. Semanas atrás, quando aquela velha ensandecida o interceptou no meio da rua, despejando um mar de tolices em forma de palavras, seria impossível que pudesse, sequer, vislumbrar a possibilidade de crença no que ela dizia. Entretanto, os últimos acontecimentos somados à total falta de direção exerciam uma pressão involuntária, uma força insistente e recorrente que cada vez mais o levava a ponderar sobre tais palavras, livre de qualquer preconceito.

A velha dizia que o mal que ele procurava respondia a um comando que não caminhava por essas terras, a perversidade crua que ceifava vidas era guiada pela mesma força que domava as marés. O demônio não era um homem, e se ele quisesse achar a fonte das atrocidades, precisaria crer nisso com a mente e com o coração.

Somente uma ideia vinha à cabeça do homem da lei, um pensamento leviano, mas que ele seguiria nem que fosse para eliminá-lo de uma vez por todas. Imaginava um ser humano dominado pelo poder da rainha da noite, pela inexplicável força que tornaria um homem numa fera incontrolável, sem razão e dominada pela voracidade. O demônio caminharia livre sob a benção do luar, e se ele existisse, seria destruído.

O policial investigou boatos e histórias vagas, infiltrou-se no imaginário e nas crenças populares, seguiu pistas, até que deparou-se com dois casos que julgou serem os mais nítidos. O primeiro dava conta da acusação velada sobre um pescador de hábitos peculiares e atos repulsivos, o segundo correspondia a uma série de murmurinhos a respeito das atitudes noturnas de um renomado antiquário, o qual, curiosamente, mudara-se recentemente para um local em que já estivera antes, na ocasião da morte de uma das vítimas.

Decidiu por checar, de início, a história do pescador. Seguiu as informações e chegou ao local onde vivia o suspeito no momento, um velho barco pesqueiro. Avistou o homem e fez sinal para ele. O sujeito, que amarrava algumas cordas na embarcação, parou o que estava fazendo e veio ao seu encontro. Tratava-se de uma figura bizarra, deveria estar na faixa dos cinqüenta, cinqüenta e cinco anos, era alto, extremamente magro, seus braços eram desproporcionais em relação ao tronco, exibia costas largas, não trajava uma camisa, o que permitia notar o tronco extremamente peludo, seus cabelos grisalhos cresciam ondulados até os ombros, um chapéu estilo panamá lhe cobria a cabeça, fumava um cigarro de palha, jogava a fumaça acinzentada na frente do rosto, no qual era possível notar a barba por fazer, e as marcantes olheiras, que sugeriam noites mal dormidas. Em resumo, parecia uma personagem saída de um filme de terror. O sujeito olhou para o policial e disse com sua voz grave:

- Em que posso ajudar-lhe, cavalheiro?

- O senhor é o Tião? Perguntou-lhe o investigador.

- As pessoas assim me chamam...Tião, Tião Pescador. Nascido na terra, criado no mar e protegido pelo céu. Este sou eu, seu criado, doutor.

- O senhor sabe do que os populares o acusam?

- Bem sei, doutor.

- É verdade?

O homem olhou friamente para os policiais.

- A língua fala, os olhos traem, o coração sente. O desconhecido é temido, doutor, mas a vida é justa, equilibrada. Vivo minha vida sossegado, e tenho uma regra rígida para isso. Preciso só do suficiente para viver, e para isso, retiro da natureza o meu sustento, e nada além disso. Há algum mal em viver assim?

- Não pescador, não há mal nenhum em retirar da natureza o seu sustento. O mundo muda, mas os peixes continuarão a nadar no mar.

- Então cavalheiro, se me dá licença...

O policial deixou que o velho seguisse seu caminho. Sentiu-se até um pouco constrangido. Como uma coisa absurda dessa poderia passar pela cabeça de uma pessoa séria e bem informada como ele? Não, ele não passaria por essa vergonha novamente, aquela velha deveria estar louca. Encerraria ali mesmo essa linha de investigação, nem se daria ao trabalho de falar com o antiquário, seguiria o rumo racional da busca, prenderia o ser humano responsável pelos assassinatos.

Após recuperada do susto, a ideia de acabar com a criatura ainda revolvia a mente de Raquel. Se destruir a forma rochosa da gárgula não tinha dado certo, talvez investir contra ela enquanto fera poderia dar. Aquele demônio havia tirado a vida da sua única amiga, e pagaria muito caro por isso, ela receberia a carga de sua vingança.

Enquanto a noite se aproximava, Raquel corria até um pequeno cômodo nos fundos da casa. Dentro do quarto, jogado em um canto, havia um baú, e dentro dele estava depositado um objeto cuja imagem passava frequentemente em sua cabeça nos momentos mais sombrios das crises que sofria. A mulher abriu a pesada tampa e apanhou o revólver calibre .38 com as duas mãos, checou o tambor confirmado que estava carregado. Quando o demônio alçasse voo naquela noite, receberia uma surpresa.

Raquel permaneceu escondida ao lado do muro até a noite abrir seu manto. Durante todo o dia não pensou nenhuma vez nos companheiros coloridos, estava lúcida e decidida. Logo, o luar derramava seu brilho por toda a extensão do quintal. De onde estava ela não conseguia ter uma visão completa da marquise onde ficava a gárgula, com isso foi necessário que levantasse para poder constatar a transformação. Porém, o que viu a deixou completamente horrorizada, a estátua não estava na plataforma, e, em seu lugar, sentado no beiral, estava o velho, olhando para ela com um ar desafiador. Ela não sabia o que fazer, estava confusa, e essa indecisão a impediu de perceber a criatura que chegava sorrateiramente às suas costas, caminhando ao invés de bater as asas nos céus.

Por sorte, o estalido de um galho seco chamou-lhe a atenção, ao virar-se sentiu seu sangue gelar, movida por uma ato reflexo começou a disparar a arma contra a criatura que emitiu um urro de dor e cólera ao ser atingido pelo chumbo e tentou acertar a inimiga com um golpe da cauda pontiaguda. A investida se mostrara ineficiente, entretanto o deslocamento de ar atirou-a ao chão. O antiquário gargalhava perante a cena, ao perceber que a fera preparava-se para atacar novamente, Raquel acionou novamente o gatilho, mas a arma já estava vazia. Ela olhou ao redor e notou que o demônio a havia atirado para próximo de sua porta, então movida pela única alternativa que lhe restava, projetou o corpo para dentro de casa, a gárgula saltou em sua direção, na tentativa de alcançá-la em plena fuga, mas não conseguiu.

A porta permanecia aberta, oferecendo o interior da casa para a besta, embora a fina folha de madeira não pudesse impor qualquer resistência perante o poder da criatura, de qualquer modo. No entanto, o demônio não entrou, permaneceu plantado na entrada da casa, olhando de forma ameaçadora para a mulher caída. Só então Raquel percebeu um fato lógico que até então não se dera conta, a fera nunca havia investido contra ela, talvez o demônio só pudesse atacar ao ar livre, sob a luz da lua. Esse pensamento surgiu com uma ponta de tristeza, se ela não tivesse chamado Márcia naquela noite fatídica, ou se ela tivesse permanecido ali, com ela, ainda estaria viva.

Do corpo da estatueta viva escorria um líquido escuro e espesso, exatamente dos pontos atingidos pelos disparos efetuados pela mulher. Esse fato não passou despercebido por ela, e o alçar de voo do demônio evidenciava que a busca por alimento se mostrava mais do que urgente para o maldito ser. Raquel sabia que poderia matá-lo, e se o vizinho, um ser tão vil quanto a própria gárgula, tentasse algo contra ela, não haveria um só minuto de hesitação, acabaria com a vida dele também, mesmo sendo ela uma pessoa que acreditava nas leis dos homens e do Todo Poderoso.

Movida por essa determinação, ela retornou ao baú e recolheu toda a munição que dispunha, esperaria pela fera no quintal, então, apenas uma delas terminaria a noite com vida.

Raquel tinha a nítida impressão de que estava sendo observada, olhava em todas as direções, mas nada conseguia distinguir. Embora não pudesse negar o medo extremo que lhe consumia por essa sensação, se recusava a correr para casa, ficaria ali, paciente, e enfrentaria o mal. Um par de horas se passou, então percebeu no alto a silhueta conhecida que lhe transmitia tanto asco e raiva. Ela apertava o cabo do revólver e apontava o cano para cima, estava tão concentrada no alvo que não notou o sujeito que se aproximava posicionando um rifle antigo, mas muito bem conservado, em suas costas.

- Largue a arma – disse o antiquário, com uma voz seca e firme.

Contrariada, a mulher obedeceu enquanto levantava os braços em rendição. O velho ria de maneira sarcástica, ao mesmo tempo em que lágrimas escorriam pelo rosto sofrido da futura vítima.

Neste mesmo instante, não muito longe dali, envolvido pelas perturbações que lhe roubavam as atenções durante o plantão, o investigador percebeu um envelope lacrado que estava depositado em meio a outros papéis na mesa. Questionou sobre a origem do mesmo, a resposta que obtivera dava conta de que este chegara mais cedo. Não havia remetente nem qualquer tipo de identificação. Indignado, o policial rompeu o lacre e retirou um papel de dentro do envelope, nele estavam escritos um endereço e alguns dizeres, e foi justamente esse fato, o conteúdo dessas palavras, a razão do estarrecimento do homem da lei.

Dominado pela pressa o policial entrou na viatura acompanhado por um colega e partiu.

Raquel sentia que a morte seria questão de tempo, o antiquário a havia amarrado e amordaçado, estava totalmente entregue a vontade da besta que se aproximava. Um filete de sangue escorria pela cabeça da mulher, oriundo do ferimento causado pela pancada proferida pelo velho com o cabo da arma, o líquido grudava em seus cabelos provocando-lhe uma sensação de repulsa. O colecionador de antiguidades observava extasiado enquanto o demônio resvalava a língua áspera pela extensão da pele da vítima. O hálito quente e fétido da gárgula penetrava nas narinas de Raquel, um turbilhão de pensamentos era derramado como uma cascata em sua cabeça. Girou o rosto a fim de evitar o contato visual com a besta, e esse ato a possibilitou de ver outra coisa, um brilho escarlate cintilando no alto de uma árvore. Eram olhos, intimidadores e malévolos. Um som aterrador ecoou pelo local, e este não fora produzido pelo demônio alado.

Enquanto o motorista fazia o veículo voar de modo alucinado pelas ruas, o investigador não conseguia tirar os olhos da folha de papel. As palavras, duras e objetivas, lhe causavam um mal-estar. “Retiro da natureza o meu sustento, e nada além disso. E não gosto de concorrência!”

Ele conhecia bem o endereço, já havia estado lá. Chegando ao local, os policiais depararam-se com uma cena hedionda. Esparramado no chão estava o corpo mutilado de um velho, próximo dele uma espécie de demônio, decapitado e lavado em sangue negro. Uma moça estava amarrada a uma coluna, o investigador a conhecia, seu olhar estava paralisado, ela tentava falar algo, mas a mordaça a impedia. O outro policial abaixou o pedaço de pano.

- Atrás de vocês!

No dia seguinte, no local, foram encontrados mortos e parcialmente devorados uma dupla de policiais e um homem que trabalhava com peças antigas. As autoridades surpreenderam-se com o fato de, pela primeira vez, encontrarem um sobrevivente.

Raquel estava em choque, mas se lembrava nitidamente do que vira. Um gigantesco monstro com o corpo totalmente revestido por pêlos negros, com exceção de uma faixa de fios alvos, na altura do tórax, percebida quando a criatura colocara-se em duas patas. Ela nunca se esqueceria da fúria e da ferocidade da besta, da facilidade com que subjugara e destroçara o demônio de pedra enquanto urrava para o céu. Seria difícil para ela tirar da mente a imagem daqueles olhos rubros de onde era possível reconhecer a essência mais pura do mal. Ainda assim, ao testemunhar a fera partindo os ossos e a carne do maldito vizinho e da criatura que havia ceifado a vida da amiga, sentiu uma espécie de gratidão. A fera desapareceu por entre as árvores carregando a carcaça do demônio. Naquele momento, Raquel estava certa de que a fera retornaria para terminar o serviço, e tentou resistir acordada o quanto pôde, mas fora vencida pela falta de energia e desfaleceu, sem saber se veria a luz de um novo dia.

Enquanto era carregada pelo serviço médico, os jornalistas a questionavam sobre o que teria acontecido. Nesse momento, seu olhar cruzou com o de um estranho homem no meio da multidão. O sujeito trajava uma calça jeans surrada e ostentava um chapéu na cabeça, de seus lábios pendia um cigarro de palha. A silhueta peculiar, os pêlos diferenciados que lhe revestiam o peito nu, e, principalmente, os olhos penetrantes e frios, traduziam uma certeza na cabeça da mulher. Sem dizer uma só palavra, a mensagem que o homem desejava transmitir havia sido completamente absorvida por Raquel.

- Desculpem-me, mas eu não me lembro de nada – respondeu de forma entrecortada para os membros da imprensa, ato que fez surgir um discreto sorriso no estranho, enquanto este posicionava o dedo indicador sobre os lábios ressequidos, num claro sinal de silêncio.

O fato de participar de uma experiência tão intensa, algo que a fez flertar com a vontade eterna da morte, poderia constituir um novo começo para sua vida, uma maneira mais simples e verdadeira de viver, era uma possibilidade. Raquel estava convicta disso. Tão certa quanto estava sobre sua nova visão de mundo, sobre o equilíbrio sutil responsável pela regência das regras naturais. Ela estava tranquila, incrivelmente tranquila, pois tinha a certeza de que muitos dos seus demônios internos haviam partido no mesmo barco que levara para sempre a criatura de pedra.

Raquel sentiu o calor do sol em seu rosto e sorriu, de um jeito que há muito não fazia.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 04/02/2019
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