A BRUXA DE LINDAURA

Diz-se há tempos que o sopro da criação mostrou-se tão forte e impetuoso, quente e dominante, incrivelmente puro e fértil que fora capaz de germinar até os locais mais remotos na vastidão desse mundo. Entretanto, existem recantos incrustados em frestas tão estreitas da superfície áspera da epiderme terrestre que a sociedade humana ali representada segue um ritmo de vida com uma característica totalmente peculiar e alheia ao desenrolar dos fatos em outros rincões.

O pacato vilarejo de Águas de Lindaura, no interior do cerrado nacional, é um desses locais. Qualquer caboclo de pele queimada de sol daquelas paragens tem sua própria versão acerca da origem do nome da cidade. Uns dizem que o local era tão seco e miserável, que a bondade de um anjo, em sua linda aura, fez verter lagrimas que encheram o solo ressequido com as águas que se tornaram o rio que banha a região. Outros relatam que a mulher de um rico fazendeiro, desbravador daquelas terras, de beleza sem igual e de nome Laura, sofrendo de dores psicológicas após dar a luz, afogou a própria filha nas cascatas que desciam pelas dependências da fazenda. Há ainda os que afirmam, com convicção, que o nome da vila oriunda das gêmeas Linda e Laura, que na idade de quinze anos foram raptadas e mortas. Seus restos esquartejados foram encontrados no leito sul do riacho, o qual chocara a comunidade por conta da horrenda e pecaminosa cor da morte estampada em boa parte de sua extensão.

À origem da alcunha regional, muitos divergiam e opinavam, mas quanto ao caso das irmãs assassinadas, a culpa convergiu para uma suposta feiticeira que fazia morada no sopé da colina mais afastada do logradouro. A velha, de costumes e hábitos pouco ortodoxos e de contato ausente com a comunidade, fora vítima das tradições e crendices que circundam e dominam as já citadas frestas na superfície terrestre, as cidadezinhas e povoados distantes dos grandes centros.

A pobre fora julgada, enforcada, esquartejada e queimada, sem direito a qualquer tipo de defesa. Os restos foram enterrados e a terra salgada. Isso, para que nenhuma vida surgisse do local maldito, nem uma reles erva daninha. Os anos deveriam dar conta de tudo. O problema foi que pouco tempo depois, um menino, filho de um estalajadeiro foi salvo da morte certa através do auxílio de um jovem ajudante de fazenda que passava pelo local do ataque no momento exato. O rapaz imobilizou o agressor com golpes de ancinho. Não foi difícil para as autoridades descobrirem que o homem preso fora o responsável pelo assassinato das gêmeas. A suposta bruxa não era a culpada pelos crimes.

Muito tempo se passou desde então. Algo muito além de dez gerações após a mais jovem das crianças locais a testemunhar tão horrendo episódio. Tempo mais do que suficiente para fazer a comunidade esquecer-se por completo das bruxas... até então...

O vilarejo de Águas de Lindaura voltaria a envolver-se com o misticismo das bruxas por conta das atividades da senhora Maria Elisabete das Dores Bueno. Uma cigana de ascendência hispânica sem familiares conhecidos e que vivia sozinha há alguns anos na cidade.

Isabete, como era conhecida por todos, era uma mulher já na casa dos quarenta anos, mas que exalava jovialidade. Ostentava longos cabelos escuros, os quais estavam constantemente adornados por um lenço vermelho. Os grandes olhos amendoados apresentavam íris tão negras quantos os fios em sua cabeça, e eram adornados por sobrancelhas espessas em arcos caídos.

Ela vivia numa casa simples de alvenaria, naquilo que podemos chamar de periferia, ou seja, o espaço compreendido entre o centro do vilarejo, onde se aglomerava a maioria das residências, e o restante das construções locais, as quais, nesse caso, compreendiam as fazendas e as grandes propriedades.

Isabete vivia da venda de remédios caseiros. Ela preparava um sem número de compostos medicamentosos que se originavam de receitas que aprendera com a família há muito distante, além de preparos que desenvolvera por conta própria. Raízes, folhas, cascas, sementes, fungos, além de insetos e outras particularidades. O povo da cidade consumia seus produtos e dava crédito aos resultados. Tudo seguiria o rumo da normalidade se não fosse a outra atividade de Isabete.

A mulher, além do preparo de toda a sorte de elixires, lançava mão de experimentos, digamos, muito mais pessoais e invasivos, por assim dizer. Quando uma jovem da comunidade, por conta de alguma desventura amorosa, arranjava algum inconveniente à família, era à casa de Isabete a quem recorria. Fosse a infeliz miserável ou abastada. E isso desde que a curandeira fez morada nos arredores de Lindaura.

Os serviços prestados eram convenientes para ambas as partes, até o incidente com Ana Catarina, a filha única do Coronel Amaral Ferreira Neto, sujeito que, embora de maneira não oficial, mandava na cidade.

Tudo começou quando Ana Catarina, acompanhada de Ternura, menina muito religiosa e que, além das tarefas na igreja, se ocupava como dama de companhia da filha do Coronel, seguiram numa noite chuvosa em desabalada correria rumo à Rua das Pedras, onde situava-se a residência de Maria Elisabete.

A jovem herdeira, embora ostentasse desde sempre uma silhueta esbelta e bem apanhada, conseguira manter em segredo um ventre indiscreto por longas vinte e quatro semanas completas, o que era uma situação bastante improvável. No entanto, apesar de todo o aconselhamento, ponderações, noites mal dormidas, choros, projeções e conjecturas, ela decidira que não poderia continuar com a aventura de ser mãe. Ainda por cima solteira. Uma vez que o pai do bebê, um primo de Ana Catarina, há muito voltara para a cidade grande deixando para trás apenas ódio e ameaças para a jovem.

Com o mundo contra a sua vontade, ela não teria forças para continuar, por mais que a certeza de que as sombras presentes em sua alma naquele momento permaneceriam para sempre, ela estava determinada a pedir ajuda a Isabete.

- Minha senhora – dirigiu-se Ana Catarina para a curandeira – nem as águas que os céus derramam, tampouco as cascatas que recortam as encostas desse nosso solo empobrecido podem se comparar com o pranto sofrido que insiste em fazer morada em meu peito. Eu te peço, ou melhor, te imploro pra que me ajude a resolver a questão que cresce em meu ventre e que põe em risco a reputação de minha família diante da sociedade.

Maria Elisabete já tinha ouvido aquele mesmo discurso de diferentes maneiras, inúmeras vezes. E, como sempre fazia, pousou suavemente a palma da mão calejada sobre a barriga enrijecida da moça. De imediato surpreendeu-se e deixou transparecer o espanto através de uma expressão reveladora.

- Mas minha criança, sua gestação já encontra-se num estado demasiadamente avançado para que seja interrompida. Sou portadora de uma sensibilidade privilegiada e pude sentir o coraçãozinho pulsar com vigor.

- Não! – Gritou com raiva a filha do coronel – A senhora não entende! Não há opção, eu achei que tivesse, mas não há. Preciso de sua ajuda, mas se não for me ajudar, farei isso sozinha.

- Para com isso Dona Catarina. A senhora Isabete disse que já passou do tempo e...

- Cale-se Ternura! Você, mais do que qualquer pessoa nesse mundo ingrato, sabe que não posso continuar com isso e deveria ser a primeira a me apoiar.

- Menina- disse Isabete para a dama de companhia – necessito de seu auxílio. No bosque a uma quadra daqui cresce uma planta estrelada de coloração verde azulada. Ela pode ser encontrada rente a cerca de tábuas alaranjadas. Preciso que vá lá e colha algumas delas para que eu possa fazer um chá para acalmar um pouco sua senhora e trazê-la de volta à lucidez. Tome. Vá mascando o caule desse cogumelo, isso deixará você mais alerta, seus sentidos ficarão mais apurados em meio a essa tormenta e à escuridão da noite.

Ternura, tomada pela aflição, correu pela noite chuvosa em busca do alívio para a patroa, a quem nutria muito mais do que respeito por conta dos vínculos trabalhistas. Ela aprendera a gostar de verdade da jovem mimada, a quem considerava mais do que amiga. Ela corria e olhava para o céu carregado. Então parou e passou a observar as gotas pesadas que caíam.

Logo uma sucessão de bons pensamentos invadiu sua alma. Situações que ela vivenciara e que guardara com carinho, como lembranças de sua infância, de sua mãe, dos afazeres da igreja, das confidências com Ana Catarina, assim como projeções que gostaria de experimentar em sua própria existência e na dos seus. Ela deixava a água da chuva escorrer em seu rosto e regozijava-se com isso. Mas, como uma bofetada no rosto, o sentimento de urgência retornou, e a menina continuou em sua busca até encontrar as folhas em forma de estrelas.

De volta à Rua das Pedras.

- Senhora Isabete. Consegui as folhas que me pediu. Onde está Dona Catarina?

- Sua senhora já se foi, menina. Transtornada, inconformada. Não pude impedi-la de sair. Ela recusou-se a esperar pelas folhas para o chá, assim como se negou a ouvir meus aconselhamentos. Insisti, fiz de tudo para demovê-la da ideia de por um fim à vida que cresce em seu ventre. No entanto, no fundo de minha alma sinto que não obtive sucesso nesse intento. Então vá, apresse-se, minha pequena. Corra de volta para casa. Rogo para que a jovem Catarina tenha recuperado o juízo e retornado para o conforto do lar. Leve consigo esse alento. Ferva essas folhas em três águas, três fervuras. Deixe esfriar por exatos cinco minutos e dê a ela. Garanto que os problemas que atormentam a mente de sua senhora não desaparecerão, mas, ao menos, ela conseguirá raciocinar com mais clareza.

A menina, com o pequeno pacote agarrado junto ao peito, carregava em sua pressa os aconselhamentos da curandeira, clamando aos céus para que sua senhora pudesse ser banhada pelas luzes da sensatez e abandonasse de vez um intento tão nocivo como o que planejava contra si mesma.

No entanto, ao chegar às cercanias da Fazenda Mangabeiras, propriedade do Coronel Ferreira Neto, percebeu que algo fora da normalidade ocorria no local. Uma multidão aglomerava-se defronte à varanda da entrada principal do casarão. Já não chovia mais. Gritos de ordem eram bradados ao passo que ferramentas como foices, ancinhos, enxadas e pás eram balançadas ao ar sob a luz do luar, enquanto tochas eram acesas e tremeluziam alimentadas pelo ódio inflamado em todas as direções.

Ternura, com dificuldade, conseguiu vencer a turba e adentrar pelas dependências da casa. Já no salão principal, encontrou um cenário de comoção e desespero. Ana Catarina, mergulhada em lágrimas, gritava a plenos pulmões toda a dor que preenchia seu coração.

- Foi ela, aquela maldita bruxa quem fez isso comigo. Foi a maldita bruxa Isabete quem arrancou o meu bebê de mim. Vamos, pai. Precisamos acabar com ela, enquanto é tempo.

Ternura não entendia o que estava acontecendo e aproximou-se de Elana, uma senhora que havia sido dama de companhia da finada mãe de Catarina.

- Pois então, minha filha – dizia a velha – a menina Catarina chegou aqui com o corpo ensanguentado. Ela falou para o pai que estava prenha do doutorzinho da cidade, que pensou em tirar a criança, mas que havia desistido. Mas aquela cigana dos infernos, além de pegar o dinheiro da pobre, não aceitou a negativa e arrancou o bebê do ventre da moça fazendo uso daquelas mandingas que só ela conhece. Maldita! Nunca confiei naquela meretriz do cão. Ela nunca me enganou!

Ternura estava incrédula. Sua senhora estava totalmente fora de si. Era dominada por uma dor legítima. Não havia como simular tamanho sofrimento. A aflição que abraçava a menina era real e talvez se justificasse por um arrependimento por ter feito algo ruim e que não tinha mais volta.

Ela sabia que Catarina estava desesperada ao ponto de ter dado um jeito sem a ajuda da cigana, como ela mesma dissera. Mas aturdida pelo remorso, fora tomada pelo pânico.

O povo enfurecido, liderado pelo coronel, já marchava para a casa da curandeira no intuito de fazer justiça. Ternura amava sua patroa, e daria a própria vida pela dela. E, por conta disso, encontrava-se num dilema moral. Ou endossava a história de Catarina para não por em dúvida a idoneidade da menina, ou ajudava uma estranha, mas que era inocente.

Ana Catarina chorava e se debatia. Foi quando Ternura se lembrou das folhas para o chá e rapidamente saiu para preparar a bebida para acalmá-la. Com relutância a jovem aceitou a oferta da amiga e, ao provar o líquido quente e amargo, foi tomada por uma extrema sensação de leveza, ao ponto de suavizar a rudeza de seu semblante e secar as lágrimas sofridas.

Ternura entendeu que aquele fora um gesto de delicadeza e bondade. Alguém que se preocupa com o bem-estar alheio não poderia ser punido por conta disso. Ela percebeu também que teria pouquíssimo tempo para ajudar e, se quisesse de fato fazê-lo, teria de correr.

Com a pressa a lhe guiar, tomou Sandoval, o cavalo mais veloz da fazenda, o qual ela sabia que não tinha permissão para montar, mas que já não se importava com proibições.

Já nas proximidades da Rua das Pedras, Ternura notou o intenso clarão que tomava a área, era uma imensa fogueira, um cenário preparado para uma finalidade que ela sabia muito bem qual seria.

Isabete, muito machucada e com uma corda apertando-lhe o pescoço, era apedrejada e xingada pela turba enfurecida.

- Queimem a bruxa! Queimem a bruxa!

O povo exigia o sangue, e se dependesse da vontade do coronel, este seria derramado.

Com a corda saltando por sobre o galho de uma mangabeira, árvore predominante no local e que batizava a fazenda do coronel, alguns homens preparavam-se para erguer a acusada. Isabete chorava e clamava pela vida.

Com o cavalo em disparada, Ternura atravessou a multidão e colocou-se diante da curandeira.

- Parem! Parem! Vocês perderam o juízo? Não se lembram da nossa história? Já fizemos isso antes e estamos prestes a fazer mais uma vez.

- Saia daí, garota! – Bradava o coronel – não sabe o que essa bruxa fez com a nossa Catarina é?

- Sei sim, meu senhor. Essa mulher – apontava para Isabete – tentou ajudar vossa filha. Ela fez de tudo para remover as sandices que lhe acometiam, e tudo o que aconteceu depois foi por obra única e exclusiva da sinhá Catarina.

- Como você pode ficar a favor dessa bruxa? Contra a família que põe o pão na sua mesa.

- Não, coronel. Sempre estive ao lado da família, mas não posso ser a favor de um assassinato, sobretudo de uma inocente.

- Deixe disso, menina – dizia uma balbuciante Isabete – não vá se prejudicar por causa de mim, eu não mereço seu sacrifício.

- Nada disso, Dona Isabete, isso não está certo. Se há alguma acusação, que a senhora seja levada à justiça, não a um tribunal de inquisição.

Com a coragem a lhe impulsionar, Ternura sacou uma faca e cortou a corda, enquanto todos apenas observavam, sem saberem como reagir diante da impetuosidade da jovem. Talvez estivessem se questionando sobre suas palavras, ou apenas esperando as ordens do coronel.

De qualquer modo, a dita bruxa foi colocada na cela de Sandoval e desapareceu no meio da noite.

Mas a vontade pelo sangue não se dissipara. Saindo do transe no qual estivera acometido, o coronel exigiu que a atrevida pagasse pela ousadia. E a multidão avançou sobre Ternura. Socos, chutes, pauladas e toda sorte de violência fora empreendida contra ela. Mas, talvez por pena, o dono da cidade não deixou que a matassem.

A jovem foi abandonada nas pedras da rua, tendo apenas o céu como testemunha de sua dor. Sem perspectivas e sem ter para onde ir. Logo uma chuva fina veio e com ela uma silhueta deformada aos olhos da menina.

- Venha, minha criança – a mulher salva pela garota surrada lhe estendia a mão.

- Isa-Isabete, é você?

- Sim. Venha comigo. Vamos sair desse palco de selvageria.

As duas, sob o dorso de Sandoval, seguiram pelos descaminhos da mata.

- Não vamos para sua casa, senhora?

- Não. Não tenho mais casa. Puseram fogo em tudo. E não desistirão de mim, de qualquer jeito.

Cavalgaram por um bom tempo até chegarem a uma cabana.

- Aqui. Essa é a antiga casa dos meus pais.

- Obrigada pela ajuda, minha senhora. Eu não tenho mais para onde ir.

- Ora, não fiz mais do que a minha obrigação, depois de você me salvar daqueles selvagens.

- Agradeço também pelo remédio para a senhora Catarina. Ela melhorou instantaneamente.

- Sim, claro. É fundamental que ela se desapegasse de tudo, que soltasse as amarras. Com o chá, ela ficou livre de toda a dor, de todo o sofrimento, de toda angústia e...do amor.

Um choro estridente se fez ouvir no fundo da cabana.

- O que é isso?

- Você sabe, Ternura. É o bebê que tirei do ventre de sua patroa. Usando, para tal, um elixir muito apropriado.

- Como assim, minha senhora?

- Ternura, eu preciso usar a criança como sacrifício para aquele que sirvo. No entanto, você, uma jovem tão inocente e religiosa também serve para esse propósito, e posso criar a menininha como filha e aprendiz. Não me olhe dessa maneira. Eu me afeiçoei a você, portanto vou lhe dar uma escolha. Quem devo oferecer como sacrifício: você ou a criança?

Logo, ainda naquela noite, bruxa e aprendiz rumariam para Águas de Lindaura em busca de vingança.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 03/02/2019
Código do texto: T6566409
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