O Porão ( parte II )
(leia também A Casa e O Porão)
Sábado à noite. Não recordo quando teria se dado, pela última vez, a sua não aparição nesse dia. Talvez, óbvio aliás, por ser o momento em que tudo teria acontecido. Nunca me importei com a diferença de idade entre nós e, por vezes, fui vítima de chacota e escárnio dos que percebiam as minhas intenções. A simples ideia de existir algo entre nós se tornava um tanto quanto ridículo. Não para mim, que via a mesma energia, a mesma vontade de viver, o mesmo desejo, entre aquelas duas pessoas com idades tão distintas.
Sábado. Para muitos, um dia especial, reservado a festas, ao descanso ou a bons momentos com a família. Mas também poderia ser um dia para aproveitar a solidão, tão prazeirosa quanto, às vezes, dolorosa.
Poderia permanecer longas horas digitando nessa velha máquina de escrever, cujo som característico tanto prazer e nostalgia me trazem, não fosse a sua presença, incômoda de certa forma, sempre à distância de três ou quatro passos às minhas costas. Nunca aproximou-se mais que isso. Cheguei a lhe dizer que não tivesse medo, pois todo o mal que eu poderia lhe causar já o teria feito. Por isso esse texto será bastante breve. Não me sinto muito à vontade para contar-lhe, leitor, a nossa história.
Sempre me desagradou que olhares fossem despertados por aquele corpo que, apesar de ainda bastante miúdo, exalava sensualidade. Ela até podia ser inocente, e realmente o era, mas não os rapazes da rua, que competiam entre si, promovendo galanteios, desde os mais infantis até os mais elaborados. Seria questão de tempo para que algum daqueles garotos boçais conseguisse seu intento e a corrompesse.
Por isso acredito ter agido na hora certa, no dia certo. O porão dificilmente seria investigado, a menos que eu, em algum momento de insanidade, confabulasse a alguém, coisa que não contava fazer. Naquele porão, ela estaria sempre próxima a mim, segura, protegida, longe dos rapazes afoitos que, seduzidos por sua beleza, insistiam em importuná-la. Permaneceria em carne, pele e ossos, a centímetros da superfície porém, em espírito, continuaria me visitando todo sábado à noite, pelo resto dos meus dias.