Dois cadáveres
Noite morna e sôfrega. O carro ia a mais de cinquenta por hora quando vi o homem me acenando na estrada. A madrugada já nascia e mergulhava num silêncio bizarro, inconstante, e a brisa fazia um barulho estranho ao bater nos vidros do carro.
Resolvi parar, não sei porque. O homem estava bem vestido e usava um chapéu elegante. Pensei que se fosse um criminoso, seria daqueles do colarinho branco, que roubam sua carteira sem que você perceba. Como eu não estava com a minha carteira ali, não havia o que temer.
— Uma carona, por obséquio, amigo! — ouvi sua voz abafada do outro lado do vidro, enquanto a chuva ia aos poucos começando a engrossar. Abri a porta e ele saltou no banco de trás. Então, toquei viagem.
— O senhor não tem medo de ficar na rua até uma hora dessas? — Ele pareceu meio espantado com a minha pergunta.
— Medo? por que eu teria medo?
— O senhor sabe... os marginais estão a solta!
— Não, amigo... na minha situação, aposto que ninguém iria querer me roubar!
— O senhor está enganado. Eles roubam até os mendigos agora!
— Acredite: numa hora dessas, um mendigo tem mais coisas a oferecer do que eu. — Qualquer um que o visse, naquela hora, julgaria que ele estava sendo excessivamente pessimista. Tinha um paletó, um chapéu e um rosto bonito, apesar do cansaço. Os homens que o conheciam deviam inveja-lo e as mulheres, deseja-lo.
— Não acredito. — A chuva ia engrossando. As gotas deslizavam sensuais pelo vidro dianteiro, exalando um cheiro discreto de éter.
— Pois o amigo fique sabendo que acabei de ser demitido, depois de um dia intenso de trabalho!
— Jura?
— É claro!
— O senhor trabalhava aonde?
— No almoxarifado da Logus. — Pude ter certeza, nessa hora, que além de bem vestido e bonito, meu passageiro tinha dinheiro. Talvez fosse casado, tivesse filhos, mas dinheiro com certeza ele tinha.
— Seu patrão não disse o porquê?
— Falou em corte de gastos, mas não acreditei.
— O senhor tem algum palpite melhor?
— Estou velho demais, meu amigo. Eles vão colocar um jovem no meu lugar.
— Que nada! Pois eu não lhe acho velho! — Foi neste instante que me toquei que não havia lhe perguntado qual era o seu destino, nem ele havia me perguntado o meu. Éramos apenas dois homens sem rumo numa noite fria. Dois meros homens completamente desconhecidos. — O senhor vai para onde?
— Para casa. Rua Miguel Ângelo, próximo ao posto policial.
— Sua mulher deve estar preocupada.
— Ela já se acostumou. Chego em casa um pouco mais cedo que isso, mas hoje perdi o ônibus. — Tinha um tom sofrido e o chapéu as vezes lhe escondia o rosto na penumbra, dando-lhe um aspecto misterioso, sombrio.
— O senhor deve estar com sono. Durma, que eu lhe aviso quando estivermos perto da sua casa.
— Obrigado, meu amigo. — Ele cobriu completamente o rosto com o chapéu e atendeu meu pedido. Durante alguns instantes, me vi rodeado por um completo silêncio, senão pela chuva que já ia parando e revigorando minha sensação de vazio, solidão.
Liguei o rádio, baixo para não incomodar meu passageiro, e o som saia cortado, numa qualidade quase ininteligível, mas a voz do locutor ecoava por todos os cantos do carro.
— Atenção, atenção! Mais informações sobre o homem que acaba de ser atropelado na Cesar Leitão, próximo ao ponto de ônibus! O sujeito usava um paletó preto e um chapéu de aba reta! Atenção, ouvintes, o cadáver ainda está no local!
Neste instante, meu passageiro solta um murmúrio apavorante, que reverbera pelo ares. Deixa cair o chapéu sobre seus pés e eu contemplo, pelo retrovisor, seu aspecto completamente cadavérico. Seus olhos estão completamente brancos como os de um cego, sua boca é ressecada e sua pele exala um forte cheiro de enxofre.
Me desespero. Dou um grito pavoroso e minhas mãos tremem ao volante. O carro perde o controle, desliza pela pista e cai, capotando repetidas vezes pela ribanceira, no meio do matagal.
Eis que estamos mortos, nós dois. Antes, dois homens sem rumo numa noite fria. Agora, meros cadáveres.