O Apartamento
Tudo começou quando José Antônio ganhou na loteria, ou melhor, quase isso. O jovem técnico em eletrônica não chegou a acertar todos os pontos, mas aquela quantia quase compraria uma casa nova, pra ele se livrar de vez de uma despesa que o acompanhava desde quando ele saiu da casa dos pais para ir morar sozinho, o aluguel. Minha casa própria, ele pensou. Meu lar-doce-lar.
Cem mil reais era uma quantia gigante para quem ganha um pouco mais de dois salários mínimos. Porém, o sonho foi virando pesadelo quando ele começou a ver que aquele dinheiro não compraria uma casa. Muito mal um apartamento bem isolado da cidade, ou um pequeno sítio na roça. Ele não poderia comprar um pequeno sítio, porque seu emprego era no centro da cidade e ele não tinha carro. Morar em casa de direito de posse numa favela nem pensar! José Antônio foi de corretora em corretora, em cada uma delas percebendo com mais intensidade o fato de que uma casa escriturada, mais baratinha, não sairia por menos de duzentos mil. Aquele dinheiro dava no máximo pra ele comprar por aproximadamente setenta mil um terreno para ele tentar com trinta mil construir alguma coisa. Mas José Antonio nunca foi pedreiro, portanto, não tinha idéia de como construir. E agora? O que fazer?
Eram 17:00h quando José Antonio entrou na última corretora da cidade, depois de entrar em todas elas e ver que o seu grande prêmio de loteria não lhe tiraria do aluguel, no máximo lhe tiraria do ônibus. Mas ele pensou: Não! Tenho que ser firme! Se eu comprar um carro agora, as despesas dele vão me comer todo o dinheiro que sobrar e aí daqui a alguns anos eu ficarei com um carro usado, sem condições de mantê-lo e vou acabar vendendo ele por uma ninharia qualquer!
A ponto de desistir ao ver na tela o computador do corretor todas as possibilidades de comprar um apartamento bem apertadinho, ele viu que o mais barato custava cento e vinte mil. Ele tentou argumentar, negociar, mas não adiantava, cem mil ou menos compraria só um terreno e ele sabia que não saberia construir. De repente, ele viu no canto da tela do computador do corretor, um apartamento por exatos cem mil reais. O corretor advertiu:
- Esse apartamento não vende de jeito nenhum!
- Mas, por quê?
- Porque ele dá enchente, por isso ninguém quer. E além disso, ele tem uma forte umidade vinda do solo. Todas as janelas têm grade, o que possibilita com que elas fiquem abertas dia todo. Em dias de sol, venta forte o dia inteiro. E mesmo assim, mofa qualquer coisa que estiver nele, roupas, objetos de madeira, tudo.
José Antonio ficou entre a loucura de comprar um apartamento assim e sair do aluguel e a razão de não investir o seu dinheiro em algo que ele fatalmente iria se arrepender depois. Ele quis ver o imóvel por dentro. Realmente era muito estranho um apartamento de dois quartos, sala, cozinha, banheiro e mais um quarto e um banheiro anexos (dependência de empregada) por aquele valor, que pelo que ele havia pesquisado, não compraria nem mesmo um apartamento da metade do tamanho daquele. Por ser térreo, o apartamento estava entre os que tinham duas varandas, uma anexa à cozinha, uma anexa ao quarto dos fundos com instalação elétrica e hidráulica que permitiriam aproveitar a varanda dos fundos como uma segunda área de serviço. Era bom demais pra ser verdade, um apartamento daquele tamanho, mesmo com riscos de enchente e com forte umidade, por aquele valor, que aos poucos José Antônio foi percebendo que não era tão grande quanto parecia. Ao olhar bem o quarto maior, anexo à varanda dos fundos, ele chegou a sonhar acordado em dormir naquele quarto enorme de 3x5 metros. As marcas na parede da última enchente o desanimavam. Um metro! Como se livrar de uma enchente de um metro! Mas será que aquele era o verdadeiro motivo de aquele apartamento tão confortável ser tão barato? Ele imaginou um jeito de cavar uma cisterna para escoar a enchente na varanda dos fundos, que era de 4x7 metros! Ele pensou: Tem que ter um jeito de me livrar dessa enchente! Mas o apartamento é meu! Não vou desistir dele! É a minha oportunidade de me livrar do aluguel! E eu não vou desperdiçar esta oportunidade!
José Antonio disse então ao corretor:
- Vou ficar com ele!
- Você tem certeza?
- Tenho!
- Então você assume todas as responsabilidades do que venha a acontecer depois da compra, certo?
Aquela frase fez o jovem técnico em eletrônica suar frio, mas mesmo assim ele foi firme em responder:
- Assumo!
Assim que fez sua mudança enquanto a escritura corria no cartório, o jovem foi pego por pequenas surpresas:
Surpresa n.º 1 > A porta da área de serviço anexa à cozinha estava enferrujada e por isso estava inchada e não fechava, pois não encaixava no caixonete. Ele acorrentou a porta com uma correntinha e um cadeado até arrumar dinheiro pra chamar um serralheiro.
Surpresa n.º 2 > A iluminação da varanda de trás estava em curto, coisa que ele resolveu em alguns minutos.
Surpresa n.º 3 > A porta do banheiro principal estava inchada e não fechava. Esta ele também deixou pra resolver depois, afinal ele iria morar sozinho, que diferença faria?
Surpresa n.º 4 > O interruptor da luz da sala era só na porta de entrada, ou seja, à noite pra ir da sala ao quarto, o sujeito tinha que apagar a luz perto da porta de entrada e ir no escuro até o quarto. Coisa que ele resolveu em algumas horas com seus dotes de técnico em eletrônica.
Surpresa n.º 5 > O boiler do chuveiro a gás estava pifado. Ele então adaptou um chuveiro elétrico e jogou o boiler fora. Uma despesa a menos.
Surpresa n.º 6 > O vaso do banheiro de empregada estava com a caixa de descarga faltando e com os canos vedados. Ele resolveu deixar este detalhe pra lá, afinal o vaso do banheiro principal estava funcionando perfeitamente.
Surpresa n.º 7 > Quando a vizinha de cima lavava a roupa, a água vazava do ralo dá área de serviço, molhando toda a área com água e sabão. Ele aproveitava pra lavar a área de serviço.
Surpresa n.º 8 > Ratos! De repente, ele percebeu que de um restaurante anexo ao prédio onde o seu apartamento ficava, saíram vários ratos que invadiram a cozinha e deixaram fezes de rato pela cozinha toda. Ele chamou a dedetização e mandou um pedreiro tapar o buraco por onde os ratos passavam.
Surpresa n.º 9 > A extorsiva taxa de condomínio. Na mente de José Antônio, a taxa de condomínio deveria ser uma taxa apenas o suficientemente grande para a manutenção do prédio, afinal, não havia piscina, área de lazer, estacionamento, nada! Nada além dos corredores para se fazer manutenção, nem elevador tinha! Portanto, R$450,00 de taxa de condomínio era um absurdo! Quase um aluguel! Ele pensou: Vou conversar com a síndica! Afinal, eu saí do aluguel pra gastar o dinheiro que seria do aluguel com taxa de condomínio? De jeito nenhum!
Surpresa n.° 10 > A quase enchente! Sim, quase, porque José Antonio percebeu dois detalhes: O primeiro foi uma mureta de 20 centímetros que isolava a varanda de trás. O segundo foi que quando começou a chover forte, a varanda dos fundos, começou a encher. Ao examinar o chão, ele viu um ralo de 40x40 e pensou: Péra lá! Então o ralo entupiu!
Rapidamente, ele pegou o desentupidor de vaso no banheiro e começou a bombar no ralo da varanda de trás, até que 23 bombadas depois, a água começou a descer. Ele pensou: Então era esse o motivo da enchente? Um ralo entupido?
A chuva cada vez mais forte foi confirmando as suspeitas de José Antonio, de que no fim das contas, a terrível enchente nada mais era do que um simples ralo entupido que por preguiça de verificarem ninguém tentava desentupir.
Livre do maior vilão do seu novo apartamento, a infame enchente, no dia seguinte José Antonio ficou feliz da vida e foi ao bar que ficava do lado do prédio comemorar tomando uma cervejinha. Eram 18:00 em ponto quando o rapaz entrou no bar. Todos o olhavam com cara de espanto. Incomodado com aquilo, ele foi ao banheiro e se olhou no espelho. Tudo normal. Voltou ao balcão e pediu um refrigerante. O balconista e a filha dele, uma menina que aparentava ter 10 anos de idade o olhavam com tanto medo no olhar, que ele não ficou ali muito tempo, bebeu só a metade da garrafa, pagou e foi embora. Ele pensou: É assim que eles tratam o novato do bairro? Não volto mais nesse bar!
Chegando ao seu apartamento, José Antonio ligou a luz da sala e viu um vulto entrar no quarto que estava vazio e que ficava ao lado do seu. Com certo medo de dar de cara com um assaltante, ele pegou uma faca na cozinha e foi ao quarto vazio. Acendeu a luz e nada! De repente um vento forte entrou pela janela da sala e bateu a porta da cozinha! O rapaz levou um baita susto! Olhou bem todas as partes do quarto, saiu e foi até a cozinha, acendeu a luz e de repente outra porta batida com o vento! A porta do quarto de onde ele acabou de sair bateu tão forte que a chave caiu da porta. José Antonio começou a ficar com medo. Ao sentir um vento entrando pela janela vasculhante da cozinha, ele acendeu a luz de fora, fechou a janela, voltou para a sala e fechou a porta da cozinha. Quando estava voltando para o quarto, a porta da cozinha abriu sozinha e bateu, dando um susto bem maior no rapaz desta vez. Ao ver aquilo, José Antonio saiu correndo de dentro do apartamento e quando chegou na calçada, avistou uma viatura com dois policiais do outro lado da rua. Ele então correu até eles. Os policiais ao verem a faca na mão direita de José Antonio, apontaram suas pistolas e gritaram:
- Largue a arma!
No impulso do desespero, o jovem técnico em eletrônica tentou jogar a faca no chão, pra ver se aqueles policiais o ouviriam e o ajudariam. Mas ao tentar jogar a faca no chão, sem querer ele a jogou em cima dos policiais. Eles então atiraram, matando-o. Chegando na delegacia, os policiais disseram ao Delegado, que viram um sujeito com uma expressão de ódio tão grande partir pra cima deles com uma faca, que o sujeito parecia estar possuído por um demônio ou coisa assim. Naquela mesma tarde havia a queixa de que aquele mesmo sujeito entrou em um bar com uma expressão facial tão demoníaca e aterrorizante que assustou todo mundo.
FIM