O Porão
Todos estavam mortos. Mesmo os sobreviventes da Grande Guerra, morreram de alguma forma. Alguns mortos nos bombardeios, torturados ou mutilados. Alguns foram mortos pela dor de perder um familiar. Uns sofriam com a fome e o desespero, de não saber, se haveria um novo amanhã para sobreviver. Pierre padecia de todas essas formas de morrer.
Ninguém passava indiferente por aqueles horrores, ele pensava, enquanto caminhava entre os escombros e trincheiras cheirando a pólvora, sangue e corpos decompostos.
Pierre que foi ferreiro, agora era apenas um andarilho que vagava pelos campos de batalha, saqueando os mortos e negociando os seus pertences com as outras pessoas.
Os horrores da Guerra eram perturbadores e já não haviam esperanças de dias melhores, naquele reinado de terror. Ele não acreditava em monstros, mas os encontrava todos os dias no seu caminho. Monstros humanos. O ser humano era o pior dos monstros que poderia existir. Capaz de atrocidades inomináveis, que dizimavam militares e civis por idealismo; ou crueldade, nua e crua.
Puxando sua carroça com dificuldades por entre os corpos nas ruas de uma Alemanha, também morta, viu quando um soldado se aproximava, fazendo sinal para que parasse.
O soldado olhou com asco, enojado das suas bandagens na cabeça. Com o cano da arma, fez sinal para tirá-las.
Com o coração disparado, tremia enquanto tirava as ataduras, grudadas na pele, junto com o sangue coagulado. Sentiu uma fisgada de dor, e um pouco de sangue escorreu dos dois orifícios auditivos. Onde antes haviam suas orelhas, agora apenas dois buracos, tinham as marcas de pele e cartilagem decepadas.
— Pode passar! – disse o soldado — Já teve o que merecia!
Pierre não ouviu o que foi dito, mas entendeu que estava livre. Seguiu seu caminho, as lágrimas rolando, ao lembrar quando o alemão decepou suas orelhas com um caco de vidro, e as pendurou num cordão, como um colar.
O vento gelado jogava flocos de neve no seu rosto, mas conseguiu ver algo à sua frente entre os sacos de lixo. Com a pá que carregava na sua carroça, revirou a forma caída na neve. Fez um esforço para segurar a pá, pois o frio cortante lhe adormeciam os dedos, e desvirou a cabeça do soldado caído.
Pierre assustou-se. A cabeça estava sem o rosto. Apenas um buraco vazio no meio do crânio. Explodida, talvez por um tiro de uma arma potente.
Revirou os bolsos do soldado. Procurava algo valioso. Encontrou escondido em um coldre apenas uma pistola Luger P08. Ele reconheceu, já havia encontrado outras antes, e valiam muito.
Os dias passavam rápido, e as pilhas de corpos aumentavam.
A cidade estava em ruínas, o frio castigava e a escassez de alimentos matava tanto quanto a Guerra. Caberia a ele e sua esposa
Sophie, manter vivos seus filhos Aaron, Lis e René.
Enquanto vagavam entre corpos e destruição, mergulhados num mar de angústia e desespero, deixavam as crianças trancadas no porão, para escapar dos ataques.
Quando voltou já de noite, viu ao longe o movimento de pessoas correndo na sua casa. Puxou sua carroça com força, até chegar lá.
René e Lis estavam sentados na sala, choravam abraçados ao corpo do pequeno Aaron. Os alemães o encontraram na sala, quando saiu do esconderijo por um instante, pensando ter ouvido o barulho de seus pais chegando.
Eles haviam arrancado sua língua, enfiado pregos na sua cabeça e sob as unhas das mãos.
Pierre caiu de joelhos, gritando, diante de tanto horror. Alguns vizinhos entraram e o seguraram, outros, seguraram as crianças, enquanto outros arrancaram Aaron dos seus braços com violência, levando-o para fora da casa.
— Larguem ele! – gritou a pequena Lis, com os seus braços presos por uma velha de olho vazado.
Aaron foi levado.
Pierre ainda perturbado pelos acontecimentos, estava trancado no porão com os seus filhos sobreviventes.
O porão ficava embaixo da cozinha. Um alçapão sob a mesa, dava acesso a um pequeno túnel, que descia até onde eles ficavam escondidos. Lá passavam dias e noites esperando pelo fim da Guerra, por um fio de esperança, de terminar com toda sua miséria.
Lá escondiam o resto de mantimentos e raízes que conseguiam juntar, pois se os vizinhos mais próximos sentissem o cheiro da comida, os roubariam.
Dentro de um pote fechado, ele retirou um punhado de vísceras de um cachorro, morto à beira da estrada, que encontrou no dia anterior. Colocou tudo na panela para tentar engrossar a rala sopa de grama e disfarçar algum gosto de carne.
Teve sorte em encontrá-lo. Já fazia quase um mês, que não tinham nada de sólido para comer, além de sopas. Sopa com neve derretida, grama, restos de tudo que poderiam comer para manterem-se vivos, até restos de animais mortos. E quando não encontrava nada, cozinhava uma pasta de papéis de jornais e revistas para enganar a fome.
Enquanto a neve derretida cozinhava a sopa, um odor adocicado e enjoativo, exalava e preenchia o porão úmido, clareado pela luz das velas.
René e Lis choravam de fome, mas pararam em silêncio, quando ouviram os ecos dos bombardeios na superfície.
Pierre mexia a sopa, e nem percebia suas lágrimas caindo dentro da panela. O peito doía ao lembrar da cena do seu filho retirado à força de sua casa. Angustiado, também esperava Sophie voltar viva e com algo que pudesse garantir sua subsistência por mais algumas semanas.
Na manhã seguinte, pegou a faca que outrora usava para fatiar carne e colocou na sua cintura. Deu um beijo de despedida nas crianças e trancou o porão, a sua fortaleza, para que ficassem seguros.
O porão era o seu abrigo, uma bolha escondida daquele mundo de horror lá fora. Lá dentro ainda era possível sonhar com um mundo melhor, e ter esperanças de que as pessoas pudessem viver em paz.
Pierre caminhava nas ruas destruídas e via pessoas brigando por restos de comida, água, por animais mortos. Não havia encontrado nada que pudesse fazer a sua sopa, e os papéis estavam acabando.
A fome era tão mortal como a Guerra.
Quando revirava os escombros de uma casa atingida por uma bomba na noite anterior, deu um grito, quase derrubando uma pedra sobre os seus pés. Caiu de joelhos. Chorando e gritando. Gritos que nem ele mesmo conseguia ouvir, depois de ter as orelhas arrancadas, e seus tímpanos furados com arame farpado.
Sophie estava morta debaixo das pedras, nua, ao lado de dois soldados. Pregos foram cravados nos mamilos e em uma das suas mãos, algumas unhas arrancadas. O bombardeio devia ter interrompido a sessão de tortura.
Acariciou os cabelos ensanguentados da esposa, e a beijou na face, em cima da sua marca de nascença. Era preciso tirá-la dali.
O porão foi aberto por Pierre tarde da noite. Chegou cansado, suas costas doíam do peso da carroça. Desceu os sacos de carne e grama pelo alçapão, depois entrou. Ocultava o rosto com a camisa. Haviam rumores de que o ar estava contaminado com gases venenosos, e os ventos os espalhavam para outras cidades.
Lis brincava com sua boneca, já indiferente aos bombardeios e a desgraça do lado de fora.
René desenhava e pintava sua família feliz. Seus pais, ele e Lis.
Pierre serviu a sopa com grandes pedaços de carne e entregou as tigelas para seus filhos. Chorou ao ver eles comendo. Lembrou de Aaron, de Sophie…
— Não lembrava mais como era o gosto de carne! – disse René lambuzado de sopa.
— Papai trouxe um bichão! – falou Lis — Acho que é um leão!
— Boba, não tem leão perto de casa!
— Então é um cachorro bem grande! Vou comer tudo devagarinho, para lembrar do gostinho quando eu passar fome…
René olhou com atenção para o pedaço de carne na sua colher, antes de comer. Lembrou da surdez do seu pai, pegou a folha que havia desenhado, escreveu uma frase no verso e entregou a ele.
Pierre leu o que estava escrito, depois a jogou dentro da panela.
Lá fora o som das bombas estava mais alto. Bombardeavam mais perto.
Um estrondo em cima deles. A casa fora invadida.
— Comam, filhos! – falou — Logo vamos encontrar sua mãe…
Pierre olhou uma última vez para a panela. O papel escrito por René derretia, engrossando a sopa:
“O bicho que a gente comeu tem uma pintinha igual da mamãe no cantinho do nariz.”
FIM
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