Marie Ann IV

Preparei meu espírito para ouvir o que padre Edward iria me contar sobre o destino da criança. Queria ficar calmo, embora tudo o que tinha ouvido até ali fosse muito perturbador para mim. De qualquer modo, nos momentos a seguir eu saberia de como tinha sido a vida de Marie Ann depois de seu retorno e o que teria acontecido com o menino .

Antes disto, porém, fomos interrompidos pelo lacaio que entrou para atiçar o fogo da lareira e anunciar o jantar. Não achava que haveria tal tipo de recepção naquele casarão velho, mas fui guiado por Edward a outro cômodo que estava imaculadamente limpo e arrumado. Até as cortinas de veludo vermelho pareciam novas em folha. A prataria e os cristais que guarneciam a mesa estavam impecavelmente polidos e adornavam a mesa, ladeando o aparelho de porcelana branca com requinte.

Estupefato com tal contraste e ansioso por saber dos acontecimentos que se sucederam com Marie Ann e, mais ainda, querendo entender o que a mim cabia naquela história toda, sentei-me na cadeira indicada e olhei para Edward em nervosa expectativa.

Assim que a refeição foi trazida à mesa, Edward fez uma breve oração e, a seguir, me desejou bom apetite. Foi servido um assado de carde porco, batatas cozidas e fígado de vitela. Diante de tudo que estava acontecendo, não tinha percebido que estava faminto. Minutos depois, vi que Edward, que tinha terminado sua refeição, me olhava com um leve sorriso, espantado com minha voracidade. Um tanto envergonhado, soltei os talheres e tomei a taça de vinho.

-Fique à vontade, mr Peter. O senhor fez uma longa viagem.

-Estou bem. A comida estava ótima, obrigado.

Vendo que eu realmente tinha terminado de jantar, o jovem padre levantou-se e me convidou a voltar para o gabinete. Sentei-me novamente no sofá de veludo puído e esperei que Edward retomasse a conversa. Como ele permaneceu calado, tomei a iniciativa.

-Acho que paramos quando o senhor iria falar do garoto. – Disse eu, tentando reiniciar a conversa. – O senhor disse que era uma história triste...

-Quando Marie Ann chegou a propriedade ainda estava um caos. Mr Berdforth, um parente distante, tinha vindo para tomar conta das coisas. Padre Ferdinand tinha chamado este senhor por ser o único parente do qual tinha conhecimento. A moça, como não era de se estranhar, ficou muito abalada quando soube dos acontecimentos. As crises de choro eram constantes e ela parecia não conseguir se controlar.

-Posso imaginar, mas e, afinal, o que aconteceu com a criança? - Perguntei, aflito. Nesta hora não sabia o que mais me afligia: se o destino do menino, ou a trajetória de Marie Ann.

-Segundo os relatos que recebi, era um menino saudável e risonho, mas diante do estado emocional da mãe, o garoto foi levado para outro lugar. Providência que coube a senhora Gertrudes, fiel serviçal da casa. E, sim, a história do garoto foi triste, mas não totalmente. Ainda não cheguei a conhecer o senhor Benjamim, o filho de Marie Ann, mas estive em sua casa no condado de Nothbruck quando iniciei minhas investigações. Aliás, a solicitação de ajuda partiu daquela casa... mas não foi o senhor Benjamin quem me chamou.

Ao ouvir aquelas últimas palavras de Edward meu coração se acelerou sensivelmente. O menino tinha vingado, então.

- Continue, Edward...

- Fui chamado por lady Martha, filha da senhora Gertrudes, e a pedido dela. Lady Martha foi, como fiquei sabendo, a mãe que o pequeno Benjamin não teve com o desaparecimento de Marie Ann.

- O senhor está dizendo que a filha de uma serviçal da casa ficou cuidando do menino?

- Marie Ann tinha fugido da casa de saúde que fora providenciada para ela. Foram meses de buscas infrutíferas. A senhorita Rotschild parecia ter evaporado no ar. Nesta época o senhor Berdforth, o parente distante que veio em auxilio da família, já em idade avançada, providenciou para que Gerturdes, diante do que aconteceu com Marie Ann, ficasse como tutora do menino. Eles tentaram viver neste casarão, que estava em perfeitas condições na época, mas as manifestações começaram logo a seguir, de modo que tiveram que se mudar para a propriedade do condado vizinho, também pertencente à família.

- O rapaz, Benjamin, imagino, é quem cuida dos negócios da família agora...

- Não me pareceu ser o caso. Ouvi rumores de que estão em dificuldades e por este motivo o interesse em sanar o problema desta propriedade. Os negócios do senhor Rotschild com carvão foram à ruína naquela época, mas ele tinha muitas propriedades, de modo que viveram de arrendamentos e vendas.

- Fico feliz de saber que o rapaz está bem. Por outro lado, sinto-me entristecido de saber de todo o ocorrido com Marie Ann, mas é ainda para mim nebuloso o motivo de ter sido chamado até aqui.

- É uma questão estranha para quem não está familiarizado. Mas como o senhor chegou um dia antes do esperado, acho que será mais fácil explicar...

Antes, porém, de que o jovem padre pudesse continuar ouvimos o som da aldraba. Edward pediu licença e se retirou por alguns instantes. Estranhei, inicialmente, que alguém chegasse à propriedade em hora tão avançada, mas logo a seguir o criado da casa veio me buscar e me conduziu para a sala de jantar.

Quando entrei no salão o relógio se aproximava de suas doze badaladas. O lugar já era tomado por várias pessoas.

A convidada principal, pelo que pude perceber, era madame Villemont, uma senhora de idade avançada, embora forte e vivaz, que me foi apresentada por Edward logo em seguida. Outras senhoras chegaram após algum tempo. Perto da meia noite já estávamos sentados em volta da grande mesa de jantar e algumas velas foram apagadas de modo a deixar o ambiente mais escuro. Estranhamente, para mim, não foi Edward quem comandou os trabalhos. A senhora Villemont tomou a palavra assim que ouvimos a décima segunda batida.

Após dizer algumas palavras em francês, madame Villemont pediu que déssemos as mãos e fez uma oração curta. O silêncio era tão intenso que me pareceu poder ouvir o flamejar das poucas velas que nos rodeavam. Foi ai que as coisas começaram a mudar.

De início um leve lufar quente, vindo não sei de onde, já que as janelas e a porta estavam cerradas, fez tremeluzir as chamas chegando até a apagar algumas. E ele se repetia, tal qual um suspirar profundo, tomando o ambiente, quente, envolvendo nossos corpos e mentes, como a nos invadir... aprisionar. Senti os pelos de minha nuca ficar eriçados. Gotas de suor brotavam em minha testa.

Madame Villemonte continuava impassível, de olhos fechados e expressão séria, parecia em profunda concentração. Continuávamos mergulhados naquele quase absoluto silêncio, quebrado apenas pelo som surdo e ritmado do arfar úmido e cálido que nos envolvia quando outras coisas começaram a acontecer.

Primeiro foi um som entrecortado, rápido, como o tamborilar de dedos na madeira... Não demorei a perceber a origem de tal vibração. As pequenas pancadas foram aumentando de intensidade ao mesmo tempo em que ficavam mais espaçadas. Meus olhos lutavam com a penumbra, mas não se desgrudavam do cálice de água que estava em frente à velha senhora que comandava o ritual, até que ele tombou sobre a mesa derramando seu liquido imaculado encharcando o linho branco que cobria a mesa e rolando até espatifar-se no chão.

Apenas eu e padre Edward acompanhávamos os acontecimentos com o olhar. Madame Villemont e suas companheiras continuavam impassíveis, de olhos fechados. Ao contrário do que acontecia comigo, elas pareciam calmas, como se nada estivesse acontecendo... e não estava... ainda.

Continua ...

O S Berquó
Enviado por O S Berquó em 06/01/2019
Reeditado em 06/01/2019
Código do texto: T6544482
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