A Mancha
Sempre quis colecionar algo. Talvez minha falta de organização não me permitisse. Tive por um tempo figurinhas, carrinhos, bonecos, mas sempre quis algo atípico.
Trabalhar no pátio de carros da polícia me deu a possibilidade de encontrar muitas coisas, mas nada que valesse a pena: relógios, carteiras, calcinhas, um whisky doze anos, enfim, nada que você não encontre em achados e perdidos ou em quartos de motel.
Elenice não me deixaria levar essas tranqueiras para casa: “isso traz doença, você nem sabe de quem era”. Depois que ela se foi, não tive vontade, acreditava na energia das coisas, pessoalmente acho isto uma bobagem, mas o fato de quase tudo que vem parar aqui está associado a coisas ruins, realmente mexe com imaginário.
O carro chegou de manhã. Segundo o mecânico, a esposa sequer conseguia olhar na direção do automóvel, assinou os papéis e deixou um empregado a cargo das questões burocráticas. Não era novo, mas de classe, “Mercedes 220S, com estofado branco original? Não se vê um carro desse por aí” disse o Giba passado a mão no capô, como quem acaricia um animal.
Junto com este, chegaram outros cinco, sem relevância, perda total em batida, enchente, danos irreparáveis. Murici viria buscá-los na sexta de manhã. Este, em especial, não havia danos na estrutura, estava rodando, quer dizer, rodaria sem problema algum, talvez uma ou outra manutenção e ele ficaria novo em folha. Sua perda era justamente a lembrança que ele trazia.
Fora encontrado na mata, há oito quilômetros pra lá do lixão, vidros fechados com parte dianteira a beira do barranco. Sentado no banco do motorista estava um homem já em processo a avançado de decomposição. Acho que seu plano suicida não incluía ser dado como desaparecido, creio seu objetivo era apenas pôr fim a sua vida e ser encontrado logo.
Se tivesse ido um pouco mais adiante, teria constatado que aquela estrada não levava a lugar nenhum, que na verdade os tratores abriram apenas quinhentos metros de caminho e pararam a obra por questões judiciais entre a prefeitura e dono da terra. É indigesto pensar no estado do corpo quando foi encontrado após dois meses sendo cozido pelo calor escaldante do verão.
De fora do carro, pelo para-brisa, era possível constatar a imensa mancha com cores indefinidas que remetia a imagem de uma pessoa, cores cuja sensação era de arder os olhos, vivas como uma chama incandescente: ia de um vermelho infernal em degrade para um laranja e amarelando nas bordas.
Sem saber a procedência, qualquer um teria a sensação de repulsa imediata, era como uma digital do corpo, o líquido de sua putrefação penetrara no estofado branco, deixando uma silhueta perfeita.
Mesmo depois da higienização do veículo, a mancha permanecia ali, enraizada no tecido. Quanto daquele homem, que foi espremido pela vida a ponto de sucumbir ao suicídio, ficou no automóvel? Fundido entre as micro fendas do estofado desenhando uma sombra, como a mancha de suco derramado por um criança...
Semanas se passaram e ninguém veio reclamar o carro. Rubens disse que tentou entrar em contato com a viúva e não teve êxito. Mais uma semana e será removido daqui, pra qualquer pátio de carros esquecidos.
Na hora de ir embora eu sempre passo e é inevitável não se espantar com sensação de que há alguém no carro, e de fato resta um pouco de pessoa mesmo.
Tive um sonho estranho, era uma silhueta me seguindo no lugar da minha sombra. Corria, tentava me esconder e, exceto na escuridão, ela me alcançava, voltava a luz ela surgia marcando o contorno do meu corpo exatamente da mesma cor e formato do carro.
Ao chegar de manhã no pátio, estacionei o carro em frente ao escritório, tomei café olhando a mancha, mancha de suco humano.
Já ouvi que não existe nada que não possamos nos acostumar, não importa o que se sente. Conheci um cara que tomou um tiro e a bala ficou alojado no seu ombro, constantemente ele sentia o incômodo do metal rangendo nos ossos, mas com tempo passou a gostar da sensação. Após a remoção do projetil lembro-me de vê-lo distraído acariciando a queloide por onde a bala entrou como se sentisse saudades.
Olho para silhueta como quem contempla uma tela no museu. Vejo emoldurado pelo para-brisa frontal do carro o desenho que agora me é familiar, poderia até dizer que as partículas que acumulam, na região onde jazia a cabeça do defunto, têm a expressão facial que me fita e o riso tímido parecido com aquela marca de camiseta smile, ou da bola Wilson do filme Náufrago.
Não vou deixar que destruam. Cortei fora a fora toda parte do assento e encosto do banco. Quando Rubens perguntou, disse que havia removido, pois estava me causando incômodo. Ele não ligou, de qualquer maneira seria removido, mesmo.
Comprei pela internet uma linda moldura de madeira e um vidro temperado, emoldurei e a coloquei na sala de casa. Antes de dormir vejo a digital carimbada de alguém que não sei quem foi, pouco importa, ressignifiquei a matéria e dei sentido a algo feio. Uns amigos vieram jantar em casa e um deles, mais metido a conhecedor de arte, disse que aquele trabalho era carregado de sentimentos pesados, porém digno de ser tratado como arte.
Semanas depois, um colega policial disse que a encontraram em uma chácara perto de Ibiúna o corpo de uma velha em estado semelhante sobre a cama, esta por sinal morreu de causas naturais, já estava com os osso a vista, e a pele já ressecada. Disse, na frieza que só a polícia tem, que a velha deixara no colchão a imagem de feto na ultrassom, só que com as cores do inferno.
Perguntei despretensioso onde exatamente era, ele deu detalhes, relatou para minha alegria que era uma casa já em ruínas em um pequeno pedaço de terra mal cuidado, tomado por mato: “sabe aquelas casinhas que você passa na estrada e vê, sem ninguém morando dentro?” Tipo assim.
Diante da raridade de casos assim, minha coleção está demorando para ganhar novos itens. Tenho pensado em evoluir, de colecionador para artista, fazer uso da chácara da tia Sônia, já que ela não tem quem cuide do espaço. Só preciso de modelos, lençóis brancos e tempo, para ver a natureza em seu magnífico trabalho.