A face da Morte

Eu estava sentada no último banco do ônibus, com o cotovelo direito escostado a janela e o rosto apoiado na palma da mão. Meus olhos passeavam por entre as ruas, árvores e rostos desconhecidos que passavam por minha janela. De repente um homem entrou no ônibus, vestindo um casaco preto com capuz, sacou uma pistola de cano longo da calça Jens rasgada e gritou a toda garganta.

-Isso é um assalto, tirem tudo de valor e joguem nesse saco preto.

Gritos de desespero em uníssono empurraram o assaltante para trás trazendo um pico de adrenalina, ele reagiu gritando ainda mais alto. Com a arma voltada para o chão, e gritos rocos, recolheu os bens de cada passageiro com facilidade, até que ficou diante de mim. Entendi a mão com o celular entre os dedos, o assaltante agarrou o aparelho e estremeceu, de repente o ônibus escureceu, o ar esfriou a ponto de nossa respiração se tornar visível. Joguei meu corpo para cima empurrando o corpo dele para trás, puxei o celular para mim e agarrei sua mão. Meu rosto começou a queimar, fumaça negra surgiram de dentro da minha blusa, tossi e pedaços de carvão saltaram da minha garganta. O homem armado arregalou os olhos tentando se soltar, mas seus pés estão presos ao chão. Meu rosto começou a ficar avermelhado, bolhas se formaram e estouraram, levantei o rosto e minha garganta se abriu espirrando sangue sobre ele. Meus cabelos caíram sobre seus pés, com a mão livre comecei a puxar minha pele do rosto que se soltou e a joguei contra ele. O homem do casaco preto conseguiu se soltar da minha mão e caio gritando, seus olhos cheios de lágrimas ficaram pequenos, sua testa apertou formando rugas, sua boca aberta cuspia sons de desespero. Ouvi de longe sons de viaturas, dei um passo para trás, seu corpo então endurecido foi liberto e o assaltante com as mãos no rosto, deitado em posição fetal, chorava como uma criança amedrontada. Os passageiros nos assistiam perplexos, aos seus olhos nada aconteceu, apenas viram um homem de quase 2 metros chorar de repente diante de uma garota. Algemado e ainda desesperado, o homem foi lançado para dentro da viatura e repetia em baixo tom.

-Ela foi queimada, foi queimada.

Não sei quem foi queimada, nem se o assaltante se sente culpado pela morte dela, mas sei que esse é seu pior medo. Sou uma manipuladora de mentes, basicamente torturo mentalmente as pessoas com seus piores medos, invadindo suas mentes e criando a pior situação que elas poderiam se encontrar. Hoje trabalho para a polícia, sou chamada de plano B, quando nenhuma manobra convencional de interrogatório funciona, sou convocada, fico 3 minutos diante do acusado e saio com uma confissão a sons de choros e desesperos. Não sou muito requisitada por razões óbvias, convenhamos que tortura psicológica é desumana, mas de acordo com os investigadores, as vezes necessária. Semana passada, fui convidada a conhecer uma mulher acusada de esfaquear 27 vezes seu então marido, adentrei a sala e recebi um olhar de arrogância.

-Os investigadores de verdade estão de folga e mandaram a estagiária? - gargalhou - Não perca seu tempo criança, vai brincar sua boneca barbie.

Não sou menor de idade, apesar de minha baixa estatura e rosto aparentemente infantil demonstrar. Virei os olhos ignorando totalmente seu comentários desnecessário. Me sentei diante dela, lancei a pasta de provas, um caderno e uma caneta sobre a mesa, para a confissão. Seu nome é Maria, 55 anos, roupas coloridas, cabelo bagunçado e alaranjado que não escondia sua raiz branca, pele judiada pelo tempo, rosto com maquiagem estravagante, dentes amarelados e ponta dos dedos queimadas por cigarros. Levantei as mãos e encostei os dedos levemente sobre a mesa, a sala escureceu, o ar esfriou, comecei a tossir e uma teia de aranha saiu do fundo da minha garganta e colou na mesa diante de nós, Maria arregalou seus olhos castanhos com fundo amarelados e os jogou sobre a mesa, continuei tossindo forçando seus olhos a voltarem para mim, de repente uma tarântula empurrou suas patas para fora da minha boca e saltou sobre a mesa, joguei meu corpo para trás tentando respirar, Maria gritou e tentou se esquivar para trás, mas suas mãos estavam coladas a mesa por teias. Ela gritava, se contorcia, batia os cotovelos sobre a mesa tentando se soltar. Joguei meus punhos sobre a mesa fazendo com que a acusada tirasse os olhos da aranha da mesa - que a aterrorizava - e olhasse para mim, seus olhos já arregalados conseguiram se abrir ainda mais, na parede atrás de mim centenas de aranhas se moviam e se atropelaram.

-Você tem duas opções - sussurrei cuspindo patas de aranhas - ou você escreve a verdade nesse caderno, ou todas as aranhas desta sala vão saltar sobre nós. Não tenho medo, você tem?

Esmaguei a tarântula da mesa com um tapa, o aracnídeo se transformou em um caderno. Maria agarrou a caneta e escreveu o mais rápido que pode, trêmula e soluçante. Assim que a acusada soltou a canela, retirei as mãos da mesa e automaticamente tudo voltou ao normal. Saí da sala recebendo olhares conflitantes, alguns assustados, outros curiosos. Ninguém entendia como eu conseguia fazer alguém ficar tão desesperado a ponto de confessar tão rápido sem fazer absolutamente nada, apenas ficar sentada encarando o acusado. Somente meus superiores sabiam da minha habilidade. Ouvi boatos de que Maria esfaqueou o marido por ter descoberto uma traição, aproveitando para ganhar uma boa quantia de dinheiro do seguro de vida do falecido.

Participei de muitos interrogatórios, entretanto o que realmente me assustou foi o de hoje. Fui convidada para intervir no interrogatório de Terence, um homem velho de setenta e tantos anos, feição caída, aparentemente com Mal de Parkinson, acusado de sequestrar e matar três adolescentes. Não me parecia provável, como um homem de olhos fundos, faltando alguns dentes, corpo miúdo, trêmulo e cansado poderia lutar contra três pessoas na flor da idade. O homem se segurava na mesa para apenas ficar sentado, respirava com dificuldade, tussia como um cachorro, parecia que logo cairia duro. Ele vestia uma camisa xadrez enfiada para dentro da calça social, de cor marrom, cabelo grisalho penteado para trás, pele desgastada e rachada, olhos azuis com bolsas roxas. Me cumprimentou com uma voz falha e estendeu sua mão trêmula e cheia de manchas para mim, apenas levantei a mão, mas não toquei a dele. Me sentei diante dele e lancei sobre a mesa uma pasta, caderno e caneta. Coloquei as mãos sobre a mesa e a sala escureceu, o ar ficou frio, fiquei esperando que algo saísse de mim, mas nada aconteceu. Olhei ao redor, não havia nada. O velho inclinou o seu corpo para frente e uma sombra saltou de dentro dele e bateu na parede, mais escura do que a sala, de olhos vermelhos e longos chifres. Joguei meu corpo para trás, tentei tirar a mão da mesa, mas parecia estar colada. O velho tentou se jogar por cima da mesa, mas seu corpo não se mexeu. A sombra subiu no corpo do acusado como um macaco, prendeu suas unhas nos ombros do velho, seus pés estavam sobre a mesa, da sua boca saia um ruído como de uma pessoa sufocadando, seus chifres abraçavam o corpo do velho batendo em baixo da mesa. O que era aquilo? Aquela coisa olhava através de mim, parecia observar as pessoas atrás da parede de vidro. É um anjo? É um demônio? Como aquilo estava dentro dele? Me afastei mas minha mão não descolou da mesa, tentei gritar mas minha voz não saía, tentei puxar a mesa mas ela parecia estar presa nos pés da sombra, aquela coisa deitou sobre o corpo do homem e seu chifre encostou na mesa, ela riu muito, debochou dele e debochou de mim. A sombra pegou a cabeça do velho por entre seus poucos fios de cabelo e bateu contra a mesa até sangrar, ela ria enquanto o sangue do nariz dele espirrava em mim. Aquele bicho vomitou uma cobra de três cabeças sobre a mesa, as cabeças do réptil se juntaram se formando uma boca enorme, enquanto aquela cobra rastejava até mim a assombra vomitou um porco aberto, tinha vermes no corpo do animal que escorreram e caíram no chão, dava para ouvir um coração batendo dentro do Cadáver, um cheiro podre subiu e empestiou a sala me dando ansia. De repente ela vomitou um jato de barata contra mim, Virei a rosto e senti os bichos batendo em mim e ouvi o som deles se chocando contra a parede de vidro. A sombra pareceu se materializar em uma pessoa deformada, parecia estar morta a muito tempo, vermes e minhocas passeavam por entre o resto de carne que ainda se prendiam em seus ossos. Tentei acordar o velho que estava jogado sobre a mesa, mas ele parecia nem respirar. O zumbi Deu a volta na sala e foi seguido pela cobra e as baratas, ele passou o dedo no vidro que pareceu queimar, de repente ele soltou sobre mim, subiu no meu ombros tentando me sufocar. Tentei agarrar seus ombros, mas onde eu pegava, rasgava. Os pedaços de carne podre daquela coisa deformada caiam sobre a mesa.

-Carter.

Não sei o que me assustou mais, ela saber meu nome, ou sua voz rouca e com estalos bem próximo da minha orelha. Pela primeira vez a coisa saiu do acusado e não de mim, e conseguiu me atacar, o que geralmente não acontece, pois quando eu manipulo é tudo mental, é apenas na cabeça do acusado, nunca vem para o mundo real. Foi aí que percebi que não era manipulação minha. Olhei para parede de vidro praticamente implorando por ajuda, de repente ouvi batidas no vidro e percebi que eles queriam entrar, mas provavelmente a porta estava trancada. Ouvi chutes na porta, batidas e gritos, a coisa olhou para porta e parecia estar procurando alguma coisa ou alguém.

-Maria - o corpo morto sussurrou.

Tentei gritar pedindo para trazer a Maria, mas as pessoas não entendiam. De repente o corpo saltou sobre a mesa diante de mim, não parecia mais humanoide, tinha garras, pele negra, olhos vermelhos, dentes grandes e afiados, chifres ainda maiores, um rabo cumprido e peludo, corpo de cachorro mas com o peito humano.

-Maria - a coisa repetiu.

Seja lá o que for isso, quer a Maria, e eu senti que se quisesse continuar viva, teria que levá-lo até ela. Minhas mãos soltaram da mesa, fiquei em pé e aquele bicho faltou sobre meus ombros, caminhei para fora da sala e recebi olhares assustados enquanto corriam. Subi uma longa escadaria segurando o choro, trêmula e com ânsia pelo cheiro podre que me seguia. Entrei na sala dos meus superiores e logo encontrei Jonathan, que saltou da cadeira quando viu aquilo em meus ombros.

-Onde está Maria? - sussurrei com a voz trêmula.

-Na cadeia - ele respondeu praticamente grudado na janela.

-Quero ela aqui - aquela coisa sussurrou.

Jonathan telefonou para alguém, dei as costas e desci as escadas. Me sentei em um banco de frente para a porta, ficamos por horas esperando Maria aparecer. De repente ela atravessou a porta algemada, aquela coisa saltou sobre ela, e começou a come-lá ainda vida, Maria gritava, até que o sangue a fez engasgar e morrer diante de nós. O bicho arrastou o corpo dela para fora da delegacia deixando um rastro de sangue, fui atrás e quando empurrei a porta de vidro, não tinha ninguém lá fora. De repente abri os olhos, estava sentada diante de Terence que me encarava com olhar confuso, girei o rosto e tudo parecia estar como antes, saí da sala e os policiais me aguardavam.

-Onde está a confissão dele?

Ignorei a pergunta de Jonathan - meu supervisor - e corri até o policial que estava escalado para os telefones.

-Liga para a penitenciária, preciso falar com a Maria. - gritei - Vai.

O homem ligou, perguntou por Maria e sua feição mudou, desligou o telefone com a pele esbranquiçada e olhos arregalados.

-Ela acabou de morrer - disse o policial.

-Como? - questionei.

-Caiu da cama, teve uma emorragia interna e morreu engasgada em seu próprio sangue.

Dê repente tudo fez sentido, a visão foi para mim porque foi a primeira vez que interroguei um inocente, e a morte veio me contar de forma não tão sutil, sobre o que realmente aconteceu e quem era o culpado. A cobra de três cabeça representava os adolescentes mortos, a morte tentou me enforcar porque foi assim que eles morreram, o porco aberto representava o marido de Maria, um homem arrogante e agressivo, morto a facadas, e as baratas podem ser todas as outras vítimas que não foram encontradas. O acusado não teve nada haver com a morte dos adolescentes, é apenas um velho a beira da morte. Maria matou os adolescentes, assim como matou o marido, ela é uma serial killer e a morte veio buscá-la. Detalhei o acontecido para meus superiores e Terence foi leberado, Ao passar por mim ele me agradeceu.

-Toma cuidado.

Terence apenas sorriu ignorando meu alerta, me deu as costas e atravessou a porta da delegacia, me sentei no banco e passei as mãos sobre o rosto, agora eu sabia o que um acusado sentia. De repente começou uma uma correria para fora da delegacia, saltei do banco e corri também, avistei Terence deitado na quina da calçada com o rosto voltado pra baixo cheio de sangue. Uma sombra saiu pela tampa do boleiro, deu a volta no corpo e a morte surgiu sentada sobre o cadáver. De certa forma a morte tinha me avisado sobre Terence, fiquei apenas observando enquanto ela se afastava e desaparecia entre a multidão. Neste exato momento tive duas certezas, esse é meu último dia na policia, culpado ou não, nunca mais terei coragem de fazer alguém sentir isso de novo. E eu olhei a face da morte e ela é o proprio demônio.