O POETA DE ALMA ETERNA
Sombras na janela do meu quarto, nas madrugadas insones me atormentavam sempre. Perseguindo eu os sonhos que acordado tinha, encontrava nos ares gelados das noites sofridas, os suspiros da donzela à qual dedicava os versos mais lamuriosos. Quando saía cabisbaixo e silencioso no encalço da aparição, – Que horas são? – a razão sempre em vão perguntava. Também a prudência alertava sugerindo entre soluços falhos, brechas onde sombras pululavam, pelas chamas trêmulas das tochas dos becos pouco iluminados. Amada pálida, doente, sofrendo do mal das mulheres pudicas, a inocência risonha que mancha como leite o véu do recato, destrói a vaidade porque se gaba também de ser casta, abrindo brecha do pecado mais cândido e doce. Quero morrer de pecar, quero arder na chama dos seios rosados e firmes. Deitar a cabeça no colo dela, estremecer e ferver febril como um adolescente ingênuo e afoito que prova a fruta direto do pé, ainda fresca e suculenta.
Morto me entregando e me desfazendo. Esmoreço e enregelo, olhos opacos, nuvem cinza cobre meu semblante. Escuto o baque seco e aflito dos martelos nos formões, as placas de mármore inanimadamente vivas e surdas que gritam a dor das almas que choram. Como a morte me consola, em teus braços as carícias que recebo acalentam o espírito cativo. O sangue espesso e vermelho escorre em cascatas escancarado pelas brechas dos cortes dilacerantes que suas unhas cravadas infligiram.
Que amor, que carinhosa vontade, um desejo animal provocado ao extremo.
Maldade, furor, fogueira consumidora e bestialidade. Os dentes entrando na pele são áspides venenosas e precisas. A língua acutíssima que caminha percorrendo sinuosos rios no meu peito. Como lavas incandescentes que machucam e dão prazer, águas desse rio caudaloso servem de alimento à minha amante esfomeada e afogueada.
Dor que estoura e estilhaça aqui dentro, junto ao coração sofredor que não para nunca. Caio desmaiado e louco, eu morro. Antes provo o elixir da vida, sua vida, seu sangue me apetece e me supre. Santo relicário provado, doce néctar que circulava em suas veias, agora se mistura e se confunde ao meu, menos nobre, antes mortal.
Violenta mutação me torna um enamorado bestial. Sem saber se te abraço ou te devoro. Meus dentes querem sugar o mel que escorre venenoso, mesclado com o viscoso sangue amargo.
Blim, blem! Blim, blem! O sino dobra as doze badaladas. A lua branca no céu me enlouquece como também os seus olhos. Eu corro, corro, caio, me arrebento com a cara no chão. Gravetos e folhas, árvores, uma cova aberta, um cemitério. Estou na cova, sou o morto. Dou-me conta agora que estive morto, que estou. Não sei por quanto tempo, só vi escuridão, vazio e frio, muito frio. A neblina sobe da boca escancarada que me engoliu, que agora é o meu berço e me embala num sono agitado e cheio de pesadelos.
Aparece-me nos sonhos ela, a elegante e arfante moça de quadris largos, seios fartos, pele branca. Me deseja, me chama, me possui. Resistir é demais agora, meus instintos repelem qualquer prudência e me transformam em bicho domesticado e dócil.
Encara-me o coiote magro e ossudo. Pelo ralo e arrepiado, olhos vermelhos feitos brasas. Não reajo, tensão e pavor. Cheira o ar, me cheira, fareja minha fraqueza ainda humana, alguma se ainda houver. Concluo que ele me conhece e deseja falar comigo. O compreendo e começo a me comunicar. A fala humana e a canídea se intercalam e mutuamente se traduzem sem dificuldades.
Caímos e subimos pelos morros e declives, espreitando e se escondendo, sobrevivendo pelas ruas. Meus amigos caçadores se aproximam.
As noites de São Paulo se apresentam para mim de um jeito que jamais poderia imaginar. Toda a esbórnia, folia, toda a carnificina e as sociedades secretas. Os clubes, pensadores, filósofos. Tudo em ruínas e sem sentido.
Agora sinto-me como uma criança perdida e chorona, que não encontra amigos, nem brinquedo que a faça se distrair. Tudo vaidade e tempo perdido. Nada sabido, nada revelado. Só depois do beijo dela enfim, soubera essa viva alma, que pela morte somente poderia libertar-se. Cá estou abocanhando bocados generosos de carne fresca, bebendo em cálices de cristal o sangue quente das donzelas queixosas.
Quando quiserem me encontrar me procurem por aqui. As noites de São Paulo me possuem. Estou nas sarjetas, vielas, becos, prostíbulos, cemitérios, encruzilhadas. Os miolos ainda quentes repousam no espaço oco de uma caveira gélida e risonha. Diversão e tempo de sobra agitam esses ossos barulhentos. Eu danço, canto, declamo para ela, para ti, para todas as mulheres. Álvares de Azevedo não morreu aos vinte anos, só passou para a eternidade.