1093-A APARIÇÃO DA ENTERRADA VIVA

Norinha nunca gozara de boa saúde. Desde a juventude sofria de desmaios que ocorriam a qualquer hora do dia ou da noite. Seu temperamento também era cheio de altos e baixos, com dias de relativa tranquilidade seguidos por períodos de desânimo, uma vontade de ficar deitada.

— Sinto uma vontade grande de desaparecer — dia ela. — Não é de morrer, não, mas de sumir, de ir prá não sei onde...

Na pequena localidade servida por um só médico que atendia como podia aos habitantes, o comportamento de Norinha era aceito como esquisitice.

— O que ela precisa mesmo é um marido. Tem fome de homem. — comentavam as más línguas.

Uma associação de epilepsia com transtorno bipolar. era a causa dos males de Norinha. Solteirona, já na casa dos quarenta anos, vivia com os pais e dois irmãos, na pequena cidade de Altaneira, remota localidade mal servida de transportes, de comunicações e de informações, pelos idos de 1930.

O pároco, o juiz de direito, o prefeito, o médico e o delegado, todos idosos, eram os cinco pilares absolutos da cidade. Todos cansados e sem entusiasmo para nada. Todos homens dignos e de responsabilidade, principalmente o doutor Noronha, que se desdobrava no atendimento aos habitantes, com irrepreensível ética profissional.

Uma manhã, Norinha não acordou. Vitima de um ataque fatal à noite, como se dizia por lá “não acordou para morrer”. O doutor Noronha, chamado antes de tomar o seu café da amanhã, depois de acurado exame, não hesitou em atestar o óbito, que ele já esperava ocorrer a qualquer momento.

O velório foi na casa da família e o enterro foi às quatro da tarde.

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Na noite daquele dia a cidade foi varrida por um vendaval inusitado. Vento seco, levantando pó das ruas de terra, folhas secas e tudo o que pudesse ser tocado pela ventania foi aos ares.

Na casa dos pais de Norinha, ficaram todos acordados, rezando o último terço em memória da filha e da irmã muito querida. O vento fez bater as folhas das janelas, que foram todas fechadas com tranca.

Ao final da reza do terço, às primeiras palavras da Salve Rainha, Norinha surgiu espectralmente, no centro da pequena sala, no meio da família que rezava.

Uma figura ereta, com as mãos cruzadas sobre o peito. Vestida com a roupa com que fora enterrada. A fisionomia do espectro era de medo e horror: os braços cruzados sobre o peito, as mãos com as pontas dos dedos sangrando e as unhas arrebentadas.

A mãe quis abraçar a filha, levantou-se e... caiu desmaiada. O pai levou a mão aos olhos, como que querendo negar que estava vendo a filha... ou um fantasma. Os filhos gritaram e levantaram-se, sem saber o que fazer.

O fantasma de Norinha nada disse. Apareceu calada e calada desapareceu.

O marido, refeito da surpresa, levantou a mulher do chão, levou-a para o quarto.

— Zeca, trás um copo d’água.

E ao ver que a mulher estava tendo convulsões, gritou ao outro filho:

— Neca, vai chamar o doutor.

Um corisco, Neca saiu e chegou à casa do doutor.

— Corre, doutor, a mãe tá passando mal.

— Que foi

— Sei lá. A Norinha apareceu no meio de nóis, quando a gente tava rezando o terço, e a mãe desmaiou.

Uma aparição! A mesma que há momentos apareceu prá mim. – Lembrou-se o doutor dos momentos de pavor que vivera há meia hora, quando sentiu e viu o espectro da mulher cuja morte atestara na manhã daquele dia.

— Zeca, vai procurar o padre, diz prá ele ir prá sua casa.

Outra coriscada e eis o Zeca batendo à porta do vigário. Este o atendeu, tremendo e assustado.

—Padre, o doutor pediu pro senhor ir ver a mãe, ela tá passando mal.

— Que foi?

— Sei não com certeza, A gente viu o fantasma da Norinha e...

Meu Deus! Ela me apareceu também. Em nome do Padre... — Pensando na visão que tivera há poucos minutos, persignou-se e seguiu o rapaz, a passos largos.

Na pequena casa o médico fazia fricções com álcool canforado nos punhos, testa e solas dos pés da velha senhora, que já voltara a si. O padre, aproximando-se de seus pés, benzeu-os e passou o óleo da extrema-unção de um vidrinho que carregava sempre consigo.

O doutor raciocinou com rapidez.

— Vamos procurar o delegado e o prefeito. Temos de desenterrar o caixão.

Saíram os três: o doutor, o padre e o pai de Norinha.

Encontraram o delegado cochilando na sua escrivaninha da delegacia.

— Temos que lhe pedir autorização para desenterrar o caixão que foi enterrado hoje á tarde e...

— Que foi?

— Acho que enterramos Norinha viva!

— O prefeito tem de autorizar. — disse o delegado. — O cemitério é municipal.

— Pois vamos lá.

O delegado de polícia fechou seu escritório e juntou-se aos três homens. Correndo atrás do doutor, que compreendia que cada segundo era importante.

Na casa do prefeito, tudo ás escuras. Contudo, foram prontamente atendidos pela mulher.

— Precisamos falar com o prefeito.

Falaram. Explicaram. Tudo com muita urgência. O doutor estava num estado de ansiedade indescritível.

— Vou com vocês. Felizmente, o zelador mora ao lado do cemitério.

Encontraram o zelador. Entraram no cemitério.

O zelador municiou todos com pás e levou uma lanterna antiga, com vela, para desenterrarem o caixão.

— Vamos, depressa. Ela foi enterrada viva!

Os cinco homens esforçaram-se, cada qual dentro de suas possibilidades. Apressaram. Escavaram a terra, que estava fofa.

O médico pensou ter ouvido um gemido vindo da cova. Nada disse, porém.

Uma pá bateu na tampa do caixão. Desenterraram o caixão. Com rapidez porque todos agora compreendiam que a morta poderia ainda estar viva. Puxaram-no para cima com dificuldade. O zelador era forte e experiente, foi fazendo tudo com perícia. Mesmo assim, foi difícil.

O caixão foi aberto.

O que viram, à luz fraca da vela do lampião, estarreceu a todos.

O corpo estava revirado, de lado. Na testa, um sangramento grande. Os cabelos úmidos e tintos de sangue Os dedos das mãos estavam sangrando: o interior do caixão com sinais de arranhados, vermelhos pelo sangue coagulado. A face denotava o terror daqueles terríveis momentos vividos pela enterrada viva.

Uma corrente de ar gelada perpassou por entre os homens.

Por Deus! Ela foi enterrada viva. Voltou a si dentro do caixão! E eu atestei sua morte. — Pensou o doutor, sentindo-se culpado por toda aquela terrível tragédia.

— TARDE DEMAIS! — Gritou o médico.

Um dor lancinante varou-lhe o coração. Levou a mão ao peito e os olhos esbugalharam-se, como se não pudesse respirar. Sentiu que estava tendo um ataque do coração.

Com um profundo gemido, tombou sobre o caixão; os braços abertos, abraçando num gesto trágico, teatral, Norinha, que fora enterrada viva.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 23 de outubro de 2.018

Conto # 1.093 da Série INFINITAS HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/12/2018
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