Adubo na Terra


 
Boiavam excrementos sobre as águas. O rio fedia. Nasir olhou para as botas de lama que lhe cobriam os pés e parte das pernas. Pernilongos cantavam aos ouvidos, enquanto buscava por um sinal no meio daquelas ruínas. O rio largo punha distâncias nas distâncias: sustentava-se só mesmo a imensidade. Depois, ela chegava, cada vez mais de perto, a ponto de poder ver, no platô natural, a casa de máquinas situada a jusante da barragem, como uma fenda entreaberta pela aragem sombria da mata. A tubulação, que levava a água em acentuado desnível, apoiava-se em suportes de concreto — o conjunto dava a impressão do esqueleto de um monstro pré-histórico que repousava no solo.

— A senhora vai entrar? — a voz do guia a fez abrir os olhos, que cerrara por um instante. A visão turva se tornava nítida, aos poucos, revelando uma realidade que atordoava. O olfato insistia em castigar com o cheiro putrefato. O tato obrigava a mente entender que ela se perdia no escurecer e sentia-se arrastada pelas ondas dos cantos dos sapos. O coração pulsava descompassado.  Ela sempre acreditou na força dos olhos e na quentura do sangue para ajudar a recuperar a filha. A noite logo viria daqueles destroços, molhada de sombras, molhada de lágrimas...

 
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Tainá queria trabalhar e aquele anúncio parecia ter caído dos céus: “Compro Usinas Desativadas em qualquer local do território nacional. Contratamos Engenheiros, Arquitetos, Técnicos, Pessoal de Apoio, Maquinários, Equipamentos”. Um pequeno treinamento e a recém-arquiteta viajou para a Serra do Nó, com mais três companheiros para avaliar uma das primeiras fornecedoras de energia elétrica durante a primeira metade do século passado. Havia mais de 40 anos a pequena usina fora abandonada. Seria transformada em área de lazer, um hotel.
 
Nenhuma notícia por três dias. O celular sempre off line. Maus pressentimentos fizeram Nasir dirigir até o vilarejo mais próximo do local. As forças do amor e da responsabilidade a guiaram por caminhos bem diversos. Sem rumo nem rastro.  Uma angústia seca estalava sob seus passos amargurados. Acreditava que, apenas com sua presença, a filha estaria fora de perigo. Agora estava na usina.
 
— Vamos? Aproveitamos o restinho da luz — o homem assentiu, abanando a cabeça. Pouco amigo e temeroso, muniu-se com um facão. Cruzaram o pátio por uma estreita trilha.  A única entrada era uma rampa íngreme. Cada um tomou um lado do edifício em “L” para cobrirem maior espaço, com rapidez, antes que o sol se fosse. O concreto da base e as paredes em alvenaria de tijolos, mesmo depredadas e pichadas, davam certa segurança, mas o telhado estava em completo estado de destruição. As janelas, todas quebradas, semi-presas com cintas de ferro. Da estrutura da usina restavam apenas algum de encanamento de aço, uma turbina enferrujada e placas de madeira que atravancavam a passagem, pilhas de lenha e uma barafunda de objetos sucateados.

Nasir tropeçava pisoteando o mato que se alastrava; era só pisar no chão e afundar os pés nas folhas quentes, para senti-las grelando e crescendo de novo. Tentava ignorar a sensação ruim que aumentava depressa, tomando conta dela. Avistou, então, a escadaria que descia até um pequeno pórtico formado por dois pilares e uma carcaça metálica. Encimava a grande porta, executada em pedras, imagem do fogo bizantino se expandindo na água e à esquerda uma foice, como se essas incrustações fossem uma alerta.

Embora não conseguisse identificar a origem da ansiedade, o instinto lhe dizia claramente que era momento de fugir dali. Porém, inquieta, avançou...

 
— Beto? Beto? Um altar? Que é isso? —  A mulher não se deu pelo silêncio de resposta, alarmada com o homem, entontecido e tremulante, que se debatia amarrado a um catre de pedras sobrepostas. Triste figura: cabeça descaída, cabelos ralos e suados, cara fechada, olhos estatelados em pânico, suor na testa, a boca áspera e marcada por coágulos, mostrava as falhas de dentes. O pescoço, um estranho verme... Abria os braços em todas as direções. Se houvesse tempo, daria para contar as costelas demarcadas na pele ressecada. Pus negro e sangue viscoso brotavam de cortes e orifícios. O abdome convulso se arqueava e arfava em selvageria, repetidamente. As roupas não passavam de trapos sujos e rasgados, que deixavam à mostra os ferimentos arroxeados, as nádegas carcomidas.

Nasir viu desespero nos olhos dele. Um bolo veio-lhe do estômago à garganta.

— Es pe ra va va... Vem...vem.. — o traste semi-humano balbuciou gago, confuso. Um uivo cansado e interminável numa voz remota.

Um lampejo de horror tomou conta de Nasir que girou o dorso rapidamente, procurando algo que a ajudasse com aquele ser desgrenhado, morrente. A luz da lanterna dava-lhe a impressão de estar em um túnel. Outros olhos negros a espreitavam escondidos na penumbra que mal permitia enxergar o chão de terra e uma espécie de poço raso a um canto da câmara... Fedor indescritível e fumaça a incomodavam. Esfregou os olhos em tentativa de desembaçar a visão... Venceu lama, entulho e teias de aranha que a separavam dessa cava. Cada passo a fazia estremecer. O poço — um balde com cinzas, as paredes barrentas e o fundo que mal dava para distinguir: esqueletos calcinados, quebradiços, rangentes... constantes brasas... escuras massas decompostas...

Uma imensa garra apertou sua boca, com obstinação, puxando-lhe a cabeça para trás. Um braço potente envolveu seu tronco, prendendo-a contra um peito duro feito pedra. Ela lutou, tentou se desvencilhar, mas não era páreo para aquelas forças. Durante uma fração de segundo, o choque deixou Nasir paralisada. Dor intensa espalhou-se por todo o corpo. Então veio o terror. E, o breu...

 
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Nasir acordou em brusco. Foi se recuperando lentamente, sedenta, a bexiga ardendo. Onde estava? O guia?
 
— Beto! Beto!? Cadê...? — apalpou desvairada o próprio corpo, dedos tontos, os braços doíam. Percebeu que estava presa por correntes trançadas, balançando, nos punhos, nas pernas. Era como se roçassem, de repente, todos os nervos. Não podia sair dali, imóvel, como para sempre. Ocupara o lugar daquela figura bizarra? A fronte latejava, não conseguia ordenar que os olhos se arriscassem a uma visão derradeira e única do inferno que pairava misterioso e tão próximo. Em desespero, sentiu que fecharam suas narinas e um líquido pegajoso desceu pela garganta. A mulher não conseguia esboçar qualquer tentativa de movimento adicional, solidifica-se num enigma supremo. Não conseguia recuar nada, era a Esfinge — decifra-me ou devoro-te. O ar era frio e recendia a enxofre. Ela toda era uma cãibra só: nojo e medo!

— Não! Não! Parem! — balançava a cabeça vigorosamente, com os pulmões ardendo. Mal conseguia respirar, tinha que abrir a boca... e engolir.

— Me soltem! — engasgava, tossia e... engolia. Um medo gélido revirava suas entranhas. Girava o corpo com violência sobre-humana, tentando se libertar. A cena à sua frente a fez estacar na hora: o corpo do guia dependurado em um arco, de cabeça para baixo, com o sangue escorrendo para uma bacia. Depois, giraram o corpo dele, arremessando-o pela borda do poço. Outra vertigem, a visão se embaralhando:
 
Nasir vagueava sozinha na mata, subia mais e mais o rio ou deixava a terra pisada e repisada, para receber nas plantas dos pés, nas palmas das mãos e na cova dos braços, o ar entranhado de tanta força agreste. As cores não entravam mais apenas pelos olhos, os verdes entranhavam-lhe no corpo, subiam pelas pernas e fechavam o céu por cima da cabeça. E, feito claridades-sombras, estendiam caminhos sempre cada vez mais para dentro. Muito mais para dentro. Depois que ela entrava mais na mata, os verdes apagavam até as marcas dos passos. Assim se embrenhava. E assim como os sons, os cheiros e as cores arretavam os mistérios. Mistério não, encante: medos e desejos de uma antiga herança. Por esses cheiros, por esses sons e por essas cores, ela ia se embrenhando para dentro da mata e para dentro de si mesma. Queria derramar a água no rio, o sangue no sangue, o cheiro no vento, a terra na terra. Poderia se esconder na grota mais disfarçada da mata, poderia trepar no galho de pau mais alto, que sempre arranjaria um jeito de resgatar a filha, sem resistência nem alarde.

Quando a mulher já havia perdido os caminhos das muitas voltas, já estava se acostumando com a vida mais agreste... De repente, estava no fundo da fossa, com uma pilha de cadáveres, entre larvas. Entranhas expostas. Tainá, entre eles. Seca, o sangue esgotado. Não tinha tempo para chorá-la, precisava escalar para ganhar a liberdade. Foi empurrando os corpos, sem sequer tentar resgatar a filha. O buraco estreito lhe impedia os movimentos. A cabeça subia alguns centímetros. Abaixava, subia... As frestas entre as pedras eram rasas, escalada quase impossível. Conseguiu subir pequeno trecho, os pés se desequilibraram, o peso caiu nos dedos. Agarrou-se nas lascas e as unhas foram sendo arrancadas na aspereza... Uma longa queda de volta aos corpos podres, circundados por densa massa gasosa. Os vapores infectaram suas narinas.  Estranhamente não sentia dor. Anestesiada.

Recomeçou a escalada até o topo, sem entender como sairia daquela furna. Não conseguia sequer lembrar seu nome. A boca não emitia palavras, apenas alguns murmúrios estranhos e nada inteligíveis.

 
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Do algar onde estava amarrada, Nasir estremeceu; ouvia uma sinistra onda que desprendida das regiões indevassadas da mente. Entre guinchos e grunhidos, um cântico começava a se articular:
 
Cada gota do sangue
Cada dor que sentimos
Oferece vida à terra
E mostra o que não se pode ver
O alimento vem da terra
A sua obra já começou...
A vida vai brotar,
A escuridão iluminar
Satã marcou com sangue o seu poder!
A transformação.
 
 
Dois nativos sujos de fuligem e sangue se destacaram do grupo que formava uma roda:

— O sangue é a tintura da eternidade —repetindo o mantra, iam apertando o nariz da sacrificada que acabava por ter que abrir a boca por inteiro e os pulmões se expandiam sugando o oxigênio de que precisava. Em um jato asqueroso nova onda de sangue penetrava a boca. Vômito e choro. Qual o significado daquilo? Um ritual? Crendice maldita... Misericordiosamente, o sofrimento só durou minutos antes do mundo cair na escuridão.
 
Nos poucos instantes de lucidez, com frieza nos pensamentos, Nasir lembrava da filha. Era o processo do inútil, a consciência do absurdo pesava as possibilidades: as duas estavam irremediavelmente perdidas. Evidência esmagadora.  Imaginou Tainá atada a um tronco, mansa, bonita e indefesa. Os bárbaros a teriam imolado naquela espécie de cerimônia? Fora abatida como gado para que o sangue alimentasse outro ser acorrentado como ela? E os outros da equipe... Entendia agora que a foice que adornava o pórtico não era o símbolo da morte. Na verdade, simbolizava o alimento transformador da natureza: a colheita das dádivas. Tentava processar todo o bizarro culto. Todo aquele sangue digerido por quem esse ocupasse aquela função em que se encontrava, era como se regasse a terra para produzir, adubada pelas cinzas dos corpos queimados.

Era praticamente impossível a alguém descobrir aquele lugar. Ela já desistia, estava consciente de que nunca sairia dali. Seria a Xamã daquela gente até que conseguissem uma substituta, mais forte e saudável. Seu sangue a alimentaria. Foi o momento mais natural. Uma força a guiava, um encante a chamava. Sem rumo essa caminhada. Sentiu que findaria seus dias naquele prédio abandonado, beco do mundo. Ela gostaria de recostar sua cabeça e poder dormir indefinidamente.
 
Clamor de mãe aflita — a sereia desapareceu, a menina-fada se foi, o sol morreu um pouco, a terra foi fertilizada e o fosso, integrou-se ao rio ameaçador, feio. O tempo escoava. E, a maneira de suportar isso tudo lá dentro era trazer os pedaços de lá fora.



 
 
 
 
Fheluany Nogueira
Enviado por Fheluany Nogueira em 08/12/2018
Código do texto: T6522159
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