OS PROCEDIMENTOS

Estava no terceiro andar, um lugar apertado, dois por dois metros aproximadamente, e a opressão do ambiente aumentava a sensação de claustrofobia com a expectativa do que estava por vir.

Nuvens negras encobriam a lua e o grito insistente dos corvos agitavam os animais e anunciavam o mau presságio. Checou a tranca da porta que levava ao piso inferior. Agora era só esperar.

***

A construção de três andares era estreita e muito antiga se comparada às demais propriedades. O primeiro andar era composto de um grande salão, lavabo e uma cozinha de tamanho razoável ao fundo. Uma escada em curva subia da parte esquerda da entrada conduzindo uniformemente aos andares superiores, ambos compostos de três quartos, um banheiro e uma saleta. Entretanto, havia o sótão com uma claraboia, cujo acesso se dava por uma minúscula escada paralela à saleta do terceiro pavimento. Era um observatório do tempo que também servia para avistar possíveis invasores, sejam de quais tipos fossem. Ninguém ia lá, exceto o dono da propriedade, um homem de estilo simples, de poucas palavras e semblante endurecido pela labuta diária e por alguma coisa que escurecia seu olhar.

Tinha duas filhas moças, formadas e recém-casadas, mas há muito tempo nem a esposa ou as filhas moravam com ele. Ninguém morava lá, a não ser ele, dois ajudantes e uma empregada, sendo que os três últimos iam para suas casas ao final do dia e folgavam nos fins de semana.

Gostava das coisas certas. Nada podia fugir ao seu controle, e por isso, não queria companhia quando os invasores viessem à noite dessa vez, como faziam sempre em época de colheita por mais de dois séculos, o máximo que seu avô podia lembrar.

***

Tão logo alcançou algum entendimento sobre os cuidados com a propriedade, seu avô, um homem sábio e taciturno, lhe passou os procedimentos. Só os homens poderiam sabê-lo. Seu pai não tivera tanta sorte. Tinha puxado a personalidade impetuosa da mãe e não atentou para os procedimentos. Naquela fazenda, vida, morte, prosperidade ou falência, resumiam-se a isso, aos procedimentos.

Segundo seu avô, o filho não lhe dera ouvidos e, quando já era pai de família e encarregado da vigília, resolveu beber e acabou dormindo. Foi encontrado morto, e sem os olhos. A polícia concluiu que foi ataque dos corvos, mas o pai sabia que não. A nora, não suportando a dor da perda, deixou o filho aos cuidados do avô e nunca mais foi vista.

A colheita seguinte não aconteceu, nem no trimestre posterior. Na época ainda era uma criança, mas muito observadora e sabia que algo não estava certo por conta do pai, o último zelador. Passaram um ano de grande aperto e tiveram que vender alguns animais até restabelecerem a ordem dos visitantes e observar os procedimentos com maior rigor.

Sentia falta de sua mãe, ou do pouco que recordava dela. Ainda podia ouvir os risos, a música e a festa regada a bebida caseira e tudo que o milho podia oferecer em forma de iguaria nas sempre fartas épocas de colheita. Esses dias estavam distantes, enevoados numa memória obscurecida pelo tempo. Já estava velho e seu avô há muito tinha partido, numa morte calma e em avançada idade. A vida tinha sido boa com ele – dizia -, tudo porque tinha observado os procedimentos.

“O milho é generoso, desde que se guarde com prudência o tempo certo até a colheita; 90 dias no verão e de 100 dias no inverno” - dizia o ancião - Nunca falhou, porque eles nunca falharam, nem seu avô e nem ele, ou quase.

Logo depois da morte do velho, a casa tinha ficado triste e uma celebração deveria ser dada em sua honra.

Já estava com trinta anos e seria um bom momento para achar uma esposa entre as filhas dos fazendeiros locais; foi quando a conheceu. Casaram-se exatos três meses depois da festa do luto, coincidentemente no tempo da colheita. Tinha cumprido os ritos, sido zeloso com o plantio e no cuidado com os campos, mas foi após a festa de casamento, justo depois da tarde de bebedeira, que eles apareceram.

Os casamentos eram tradicionalmente celebrados durante o dia, seguidos de um grande almoço e despedidas ao cair da tarde. Não imaginava que eles viriam naquele dia, aliás, para ser sincero, nunca os tinha visto. O zelador tinha que estar só ao abrir a claraboia o que, até então, tinha sido seu avô. Ele, por sua vez, estava nos braços de sua linda esposa.

Estavam a sós, como todos recém-casados devem estar. Tomou o cuidado de fechar as janelas por causa dos mosquitos, e as portas da frente e dos fundos, para não serem incomodados. Pronto, tudo perfeito.

Era uma noite clara de verão e, provavelmente, passavam das vinte e três horas, quase meia noite, tendo em vista a posição da lua cheia no meio do céu. Acordou sobressaltado, mas sua esposa dormia profundamente a seu lado. Ele, no entanto, julgava ter sido despertado por uma força oculta; mais tarde poderia jurar que fora o espírito angustiado de seu avô. Porém, naquele momento, tinha coisas mais importantes com as quais se preocupar, a forte ventania agitando o milharal e os animais se debatendo no curral. Corvos crocitavam sobre a propriedade e viu, pela janela, uma escuridão estranha cobrindo a lua. Já tinha visto aquilo inúmeras vezes, e seu avô sempre o mandava aguardar no quarto até que tudo se restabelecesse. Agora seu momento havia chegado, mas ele estava entorpecido pela bebida que havia ingerido durante toda a tarde.

O quarto dos noivos ficava no segundo andar e ele correu como pode, tropeçando e derrubando objetos pelo caminho, enquanto procurava freneticamente a chave nos bolsos da calça até chegar à porta do sótão, mas a havia esquecido dentro do bolso do paletó. Não era momento para frustrações. Soltou um palavrão ao voltar aflito escada abaixo, observando pelas janelas a nuvem espectral chegando perto da soleira da varanda. Não ia dar tempo. Virou nos calcanhares retornando como louco. Meteu o pé na porta do sótão arrancando-a das dobradiças e esticando-se o máximo que pode para abrir a claraboia e deixar que os espectros entrassem.

Seu avô o tinha preparado para aquele momento, fazendo-o repetir inúmeras vezes todas as etapas da visita; o principal era que tampasse os ouvidos e não deixasse que o olhassem nos olhos. Seu pai foi acordado no susto, e perdeu os seus e a vida por isso.

A nuvem que pairava na parte frontal imediatamente subiu e adentrou pelo mirante. Ele tremia como vara verde tentando controlar a raiva que sentia de si mesmo e a curiosidade em vê-los com nitidez. As sombras estavam hostis, passando com velocidade e violência ao redor de seu corpo, e a porta para a casa estava aberta.

O desespero o invadiu ao lembrar que sua noiva estava em sono profundo no segundo andar e não sabia como deteria os visitantes àquela altura. Lembrou que, por enquanto, ele era o motivo da curiosidade. Tentava se desvencilhar das sombras mantendo os ouvidos tapados, os olhos cerrados e arrastando os pés até alcançar a porta caída. Sem fazer movimentos bruscos, agachou-se e levantou a barreira que poderia impedir que eles invadissem a casa, segurando-a contra o batente o máximo que pode e sem saber por quanto tempo a tortura duraria. A sensação foi de que horas haviam transcorrido, até que não sentiu mais os vultos enegrecidos transitarem ao redor e de encontro a ele.

Estava exausto, rasgado e com medo. Então fora isso que seus antepassados enfrentaram por tantos anos e o que ceifou a vida de seu pai. Mas, porque sua família e sua fazenda? O que eles queriam?

Enquanto as perguntas nunca antes feitas martelavam em sua cabeça, procurava pela caixa de ferramentas para consertar a maldita porta. Não cometeria novamente aquele erro. Doravante carregaria a chave presa ao pescoço, como se fosse um estranho adorno.

Contudo, ao achar a enorme caixa debaixo da bancada de reparos no celeiro, algo em que não mexia desde sua adolescência, percebeu que dentro dela não haviam só ferramentas, mas um livro envelhecido e bem grosso, protegido cuidadosamente por um saco de feltro. Apesar de muito antigo e de páginas amareladas, estava bem conservado, talvez por causa do cadeado que protegia seu conteúdo. A curiosidade foi mais forte, afinal não seria invasão de privacidade, pois tudo que estava dentro de sua propriedade era herança e, por direito, seu.

Pegou a chave de fenda de ponta mais fina que pode achar e começou a violar o dispositivo até conseguir abri-lo. Sentado no chão com a caixa de ferramentas fechada e o livro sobre ela, esqueceu-se da esposa e da porta. Um silêncio mórbido o envolveu ao abrir a capa dura do que parecia ser um diário. Na contra capa, constava uma dedicatória a seu bisavô que dizia o seguinte:

“- A meu único filho, filho de meu único amor, aos quais peço perdão.”

As páginas que se seguiram eram entremeadas de fotos antigas,

possivelmente de seu tataravô, um homem alto, magro, barba comprida e rosto vincado pelas agruras de quem trabalhou com as mãos e debaixo do sol. A mulher que eventualmente aparecia a seu lado, grávida, com o filho no colo, e mais tarde agarrado a suas pernas, devia ser a mãe de seu bisavô. Pelo jeito que se olhavam deviam ser felizes, apesar das roupas simples e do trator em frangalhos ao fundo. Os relatos datavam de quase três séculos de história: as dívidas, a hipoteca, a seca, a praga, até chegar ao suicídio de sua mulher, o grande amor de sua vida.

Foi acordado por sua jovem e preocupada esposa. Nem se dera conta do tempo que ficara ali por conta das coisas horríveis que havia lido. Caiu de cansaço pela recente luta com as sombras e pelo excesso de informação que não sabia ainda como processar. Levantou meio envergonhado pelo papelão em deixar uma mulher tão bela sozinha na cama de núpcias, mas iria compensá-la com o resto de energia que lhe sobrara.

Os trimestres iam passando e nunca mais um episódio como aqueles ocorreu novamente. Eles vinham, eles iam, e a vida seguia em paz e prosperidade. Sempre que tinha um tempo sobrando voltava discretamente ao celeiro para continuar a assustadora leitura. Pelo que havia entendido, o livro fora escrito quase ao final da vida de seu tataravô, enquanto havia energia em sua mão para fazê-lo.

O pai e a mãe de seu bisavô foram pioneiros naquelas terras, descendentes dos primeiros peregrinos e praticamente isolados. Os recursos oferecidos pelos colonizadores e pelo governo da época não passavam de sementes, madeira e algum material para o roçado. Tudo foi extremamente difícil e a propriedade só tomou a forma atual por causa dos descendentes. Seu bisavô foi amparado pela igreja e voltou para a propriedade bem mais tarde, após o falecimento de seus pais em completa penúria. Reergueu a fazenda das ruínas e com alguma ajuda da igreja pode permanecer ali com alguma dignidade.

Pelo que pode entender, seu tataravô, devastado e meio louco após a morte trágica da esposa, creu que Deus o havia abandonado e resolveu invocar as sombras para tentar trazê-la de volta. Ele a manteve por semanas conservada em sal no sótão - exatamente no vestíbulo da claraboia -, pedindo dia após dia que fosse atendido, enquanto seu filho quase agonizava de fome. Enfim as sombras apareceram através da claraboia, vindas após uma grande ventania. Sua esposa não foi trazida de volta, mas prometeram fartura e prosperidade para toda sua descendência em troca da única coisa que possuía de valor, seu filho.

Não haveria descendentes se lhos desse, tampouco a prosperidade o interessaria nessas condições traiçoeiras e não restando com quem partilhar. Seu desespero não chegava ao ponto de lhe embotar o raciocínio para negociar o que ainda lhe restara de mais precioso. Entretanto, segundo ele, sua alma não valia de mais nada.

O pacto foi selado sob certas condições; que só voltassem àquele lugar após a recompensa antecipada para o que lhe restava de vida, e o mesmo se daria como nefasto legado a cada descendente macho, poupando sempre as descendentes fêmeas. Porém, a cada ano, ficavam ansiosas e mais gananciosas, passando a checar seus domínios e o estado de seu prêmio prometido a cada colheita, o que deu início ao registro dos procedimentos, um manual de segurança contra uma morte prematura e horrenda. No entanto, algo de errado aconteceu e os procedimentos só foram retomados após retorno de seu filho.

Desde então não se viu lugar mais invejado pelos demais fazendeiros. Os herdeiros eram cobiçados pelas moças da região, que mal sabiam o quanto eles eram amaldiçoados por sua riqueza.

***

Sua esposa era uma mulher honesta, adorável e o fazia muito feliz. Houve um tempo em que pensou em contar sobre a maldição que assombrava a propriedade trimestralmente, mas desistia ao lembrar que deveria cumprir os procedimentos e, entre eles, não constava o compartilhamento com a esposa. Ele achava que ela desconfiava de algo, - ele desconfiaria -, mas ela nunca quis saber, exceto quando estava grávida da segunda filha e sentiu as dores de parto exatamente na hora da ilustre visita.

Lembrava bem desse episódio em particular, coisa que tinha habilmente contornado na proximidade do nascimento da filha anterior, quando enviara a esposa para a casa de seus pais, pois assim seria mais bem assistida. Nessa vez, porém, fora diferente. A amada esposa insistira para que ficassem juntos e não abrira mão, invocando os votos de casamento e inúmeras chantagens emocionais que lhe conferiam um charme todo especial, e ele cedera.

***

Novamente era época de colheita e os incômodos de sua esposa começaram no início da manhã e duraram por todo o dia, mal lhe dando chance para gerenciar os empregados no campo. A parteira estava ciente há semanas e não morava muito longe. As coisas ainda eram feitas daquele jeito por ali. Os empregados contratados se foram ao cair da tarde e ele se viu só com a parteira, a esposa e a filha de três anos. Sentia a conhecida estática no ar e a ventania que agitava os campos dava sinais do que estava prestes a acontecer. Acomodou a todas no quarto do casal com orientações para que de lá não saíssem sob quaisquer circunstâncias, enquanto iria verificar o estado dos animais. Certificou-se da chave presa ao pescoço e partiu para o vestíbulo bem conhecido, trancando a porta atrás de si.

Os corvos crocitavam, os animais se agitavam e a lua cheia era encoberta como o esperado. Os gritos de sua esposa, que se sobrepunham ao caos externo, de repente pararam. Pouco depois, suaves batidas na porta desviaram sua atenção do trinco que abria a claraboia. Sua pequena filha o chamava feliz, contando que o bebê havia nascido.

Nada poderia traduzir a palavra desespero naquele momento. A claraboia estava aberta, sua filha pequena estava sozinha ao pé da escada estreita e perigosa, as sombras entrando e ele de olhos arregalados sem saber o que fazer. Seu coração experimentou sentimentos que transitaram da felicidade para a agonia e o terror, mas os procedimentos tinham que ser seguidos à risca.

Correu para a porta implorando pela fresta para que ela se sentasse, enquanto ele se prostrava contra o batente de olhos bem fechados, ignorando os gritinhos insistentes da pequena.

Seu peito estava apertado, torcendo para que eles não a ouvissem e procurassem um meio de alcança-la por alguma brecha, mas não foi o que aconteceu. As sombras que o fustigavam perceberam que uma vítima indefesa estava à solta e não perderiam a oportunidade de levarem um prêmio, deveras valioso, mais cedo. Saíram por onde entraram e circundaram a construção buscando outra maneira de entrar.

Não lembrava mais ao certo se havia esquecido alguma janela semiaberta ou porta sem trancar, afinal tinha uma estranha em casa e, se tinha deixado a menina sair do quarto, tudo seria possível. Fechou rapidamente a claraboia e abriu a porta, mas as sombras já estavam ao pé da escada, e uma menininha apavorada gritava sem parar. Como elas entraram?

Antes que os alcançasse, tomou a filha em seus braços e pediu para que apertasse os olhinhos e o abraçasse com toda a força. Não dava mais tempo de voltar ao vestíbulo, pois as sombras os haviam rodeado, empurrando, machucando e tentando entrar pelos olhos, boca ou ouvidos. Manteve a cabeça da pequena protegida na curva de seu pescoço enquanto se arrastava contra a parede. Foi grande a dificuldade para descer as escadas e retornar ao quarto do casal cuja porta estava aberta. As sombras, porém, não o seguiram, foram direto para o andar inferior de onde um grito agonizante se ouviu. Sobre a cama, lençóis revirados e uma imensa mancha de sangue fresco. Onde estariam? Um silêncio mortal oprimia um ambiente, apenas quebrado pelos soluços da filha e, um gemido de bebê?

Teve o cuidado de trancar a porta atrás de si e checar novamente as janelas. “Afinal, por onde haviam entrado?”. Lágrimas quentes embaçavam seus olhos e ainda com a filha em seus braços, procurava por trás das cortinas, debaixo da cama e, por fim, dentro do guarda roupas. Lá estavam elas!- expirou com alívio - Encolhida em meio as roupas penduradas e com a recém-nascida em seus braços, sua esposa de olhos arregalados sufocava da própria boca o grito de pavor.

O bebê estava bem. Todos estavam bem. Exceto o cadáver sem olhos que jazia no hall da entrada. A parteira havia aberto a porta para procurar a menininha, que tinha fugido feliz para contar a novidade ao pai, sob protestos da mãe cansada e da profissional atarefada. Lavou o sangue do salão da entrada depois de levar o corpo para o meio da estrada no início da madrugada.

À polícia alegou que bandidos atacaram a vítima em sua volta para casa e os corvos, mais uma vez, terminaram o serviço. Não podia afirmar se haviam acreditado, mas nunca questionariam nada do que vinha do maior agricultor de toda a região.

***

Depois daquela noite, nada mais foi o mesmo. Custearam o enterro da parteira, indenizaram a família e silêncio, só silêncio.

O leite dela havia secado com o trauma e os dias de felicidade haviam ido embora com as sombras. Logo após os quarenta e cinco dias de resguardo, sua linda esposa e adoráveis filhas também.

Assim que passaram os ritos do funeral eles tiveram uma longa e esclarecedora conversa. Seria a primeira e última vez a quebrar os malditos procedimentos, mas ele devia uma boa e justa explicação. Contudo, longe de esperar compreensão para o que tinha herdado sem possibilidade de consentimento, recebeu a aversão por saber que tudo que possuíam vinha do maligno e do sangue de inocentes. Depois de meses sem permitir qualquer contato, dela só veio uma longa carta de despedida e os papéis da separação.

Anos de solidão se seguiram, quebrados por fotos atualizadas e curtas linhas em cartões de aniversário e Natal. Os fantasmas trimestrais talvez fossem o único contato que mantinha além dos empregados eventuais. Saber que as meninas cresciam bem e sem lhes faltar coisa alguma já era um consolo para enorme tristeza que o consumia, colheita após colheita e ano após ano. A idade estava avançada, as meninas criadas. Meninas, descendentes. Primeira geração de uma maldição de séculos a ser finalmente quebrada.

A colheita estava próxima e era hora de findar as últimas páginas do diário da maldição.

Refugiava-se a cada fim de tarde para escrever os detalhes de sua saga, as efêmeras lembranças da vida de marido e pai, e os bons investimentos que fizera com a fortuna amealhada por todos aqueles séculos. Ninguém mais passaria por aquilo, se dependesse dele.

Ao fim de mais uma colheita, demitiu os empregados indenizando-os generosamente. Pegou a velha caixa de ferramentas, um resistente pedaço de madeira e talhou um alerta aos futuros visitantes, prendendo-o criteriosamente à entrada da propriedade. Trancou a casa e foi até a velha claraboia fechando a porta atrás de si e aguardou, pacientemente. As sombras vieram e o encontraram de olhos e ouvidos bem abertos.

- Venham miseráveis! Peguem seu prêmio enquanto está fresco!

Se houvessem testemunhas, jurariam ouvir gargalhadas sinistras entre gritos de agonia ecoando por toda a localidade. Vozes sussurrantes e famintas pela longa espera de mais uma alma para o clube seleto dos familiares insones e delirantes, do qual ele agora também faria parte, perdendo a memória e a redenção.

***

Uma semana se passou até darem pela falta do velho e taciturno empresário. Suas filhas, genros, netos crescidos e a ex esposa, enfim retornaram para o funeral, o qual, somente a idosa era a única a saber a causa. Os pertences foram cuidadosamente embalados e divididos conforme o interesse de cada uma, exceto o grosso e velho diário, discretamente suprimido pelo ambicioso cônjuge da mais velha das filhas.

“Aos que cruzarem estes portões, observem os procedimentos. Tapem os ouvidos e cerrem os olhos, pois essas terras tão prósperas são malditas, e seus donos também”.

FIM

Rose Paz
Enviado por Rose Paz em 08/12/2018
Reeditado em 23/05/2021
Código do texto: T6522152
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