Marie Ann III
Depois de que ela percebeu o meu aceno, não tive que esperar muito. Seus olhos denunciavam surpresa e receio quando nos encontramos atrás da casa. Pedi que se acalmasse que eu explicaria tudo. Fui covarde. Não tive coragem de dizer a verdade, talvez por orgulho do nome de minha família e não querer revelar que estávamos à beira da ruina, talvez por medo de que me rejeitasse prontamente. Omiti os verdadeiros motivos de minha partida e menti, mesmo olhando para aqueles lindos olhos, menti. Inventei um motivo urgente de negócios e que partiria por algum tempo. Prometi que voltaria, e nada mais disse. Não nos beijamos na despedida. Montei em meu cavalo e parti, sem olhar para trás.
Uma estação lotada estava a nossa espera na hora de partir a locomotiva. O relógio no alto do prédio marcava quase seis horas. O comboio de ferro estava parado soltando fumaça e o segundo apito soou em meio à névoa aquecida que tomava a plataforma, de modo que não perdemos tempo e entramos no vagão da primeira classe em busca de nosso camarote. Normalmente, a família toda iria para este encontro formal. Diante, porém, da enfermidade de meu pai e da gravidade de nossa situação, coube a mim e minha mãe tal tarefa. Jane, minha irmã mais velha, ficou para cuidar de nosso pai.
O trem partiu logo em seguida. Minha cabeça girava talvez tão rápido quanto as rodas de aço daquele comboio. Não conseguia parar de pensar em Marie Ann, mas também não me abandonava o fantasma da ruína do pequeno império de meu pai. Não consegui pregar o olho durante a viagem. Apesar de pensar e pensar e pensar, nenhuma luz, nenhum vislumbre de alternativa digna me aparecia. Pensei em negociar com o barão, fugir da questão do enlace entre as famílias e propor apenas uma aliança comercial. Isto salvaria nossos negócios. Contudo, tal atitude poderia facilmente ser considerada como uma ofensa... e tudo estaria perdido.
Tentei esquecer-me do que me esperava em Londres e passei a relembrar meus bons momentos com Marie Ann. Aquela menina tinha me tirado do abismo. Não fazia muito tempo que estava de volta, mas o tédio da vida em uma propriedade rural e em uma pequena vila já me consumia. Procurava não demonstrar minha insatisfação aos meus pais, que estavam radiantes com o meu retorno, mas em meu íntimo o enfado me consumia. À noite, quando me recolhia a meus aposentos, deitado no catre, visitava em pensamentos todas as aventuras de que participei com meus companheiros de embarcação pelos quatro cantos do mundo.
Estávamos em um navio escola que levava futuros comandantes da Armada para sua iniciação no mar. Todos filhos de famílias nobres, todos destinados a em poucos anos dirigir os negócios de suas famílias e os rumos da própria nação.
A rotina no navio era implacável. Tínhamos que desempenhar nossas tarefas de marujos com denodo e muito empenho... caso contrário, sofreríamos as consequências destinadas aos ineptos e insolentes. Por outro lado, em cada porto em que havia estrutura de Sua Majestade éramos recebidos com pompa. Ordem do almirantado. Festas memoráveis nos aguardavam nos mais longínquos recantos que visitávamos. Nestas ocasiões se tornava fácil o encontro com o sexo oposto. Conheci moças encantadoras.
Passávamos às vezes quase dois meses no mar, sob uma rotina dura e exaustiva. Com o passar do tempo, começamos a ansiar pela chegada em um novo porto para poder desfrutar do que nos aguardava. E assim foi durante os dois anos no HMS Ringle, nosso navio de batismo. Mas este período se foi tão rápido quanto o vento que enfunava nossas velas em dias de tempestade.
Lembro-me bem de nosso último dia na sede do Royal Naval College, às margens do Tâmisa, em que nos despedimos para seguirmos cada um o seu rumo, seu destino. Estávamos entusiasmados com o que o futuro nos reservava, mas, tenho certeza, a grande maioria desejava retornar ao mar, como oficial ou imediato, para num futuro próximo receber o comando de algum navio da Armada.
Eu também fui tocado por tal desejo. Gostei da experiência, gostei dos bailes e das aventuras, mas o que mais me atraía era a possibilidade de comandar uma embarcação, singrar os mares, chegar a lugares onde ninguém tivesse estado antes para fincar a bandeira de Sua Majestade.
Não seria de se estranhar, portanto, que a vida pacata em meio ao campo e à restrita vida social de um pequeno condado no interior da Inglaterra não mais me atraísse. Sentia saudades das diabruras daqueles lugares exóticos.
Voltei ao condado de Versbruth com planos de passar o mínimo de tempo possível, só o necessário até que meu pai providenciasse as conversas que me levariam a algum navio para continuar minha carreira naval. Não foi o que aconteceu. Apesar de meus apelos, meu pai me pedia paciência, dizia que estava alinhavando o meu futuro.
Os meses foram passando e eu procurava me distrair em longas cavalgadas com meus amigos ou visitando a vila em dias de feira. Então encontrei Marie Ann.
O trem deu seu apito característico quando nos aproximávamos de nossa parada final na estação de Londres. Com os olhos vermelhos pela falta de sono, peguei, junto com minha mãe, o primeiro coche que encontrei e rumamos para o hotel para nos prepararmos para o encontro com o barão Ernest Bratsborow.
Como ainda era muito cedo, deitei-me sobre os lençóis macios e perfumados de meus aposentos com o coração apertado. O Rosto de Marie Ann não saía de diante de meus olhos. Decidido, fui até a escrivaninha que guarnecia o quarto, apanhei papel na gaveta esquerda e servi-me da pena e do tinteiro à minha disposição para escrever para minha linda pequena de olhos azuis. Não escondi nada desta vez. E mesmo sem saber exatamente qual seria o resultado do encontro que teria em poucas horas, fiz as juras de amor que explodiam em meu peito, e prometi que voltaria.
Pouco depois das nove horas daquela manhã, desci ao saguão e deixei a carta com o recepcionista para que providenciasse o despacho. Aguardei lady Boulard descer e solicitei o coche para irmos ao encontro que nos aguardava. Em meio ao balanço monótono do trotar dos cavalos foi que me dei conta de que em momento algum desde que soube dos acordos de meu pai, nem mesmo durante minha triste viagem, passou-me pela cabeça a figura da senhorita Helen Bratsborow, minha futura noiva. Como seria ela? Culta, viajada e conhecedora das artes, certamente. Seria inteligente, vivaz, divertida? Seria bela?
Minhas divagações foram interrompidas com a chegada ao destino. Embora estivesse muito contrariado com a situação imposta pelas circunstâncias, não pude deixar de ficar impressionado pela beleza e imponência do castelo dos Bratsborow. Verdadeiramente esplêndido.
Fomos recebidos pelo barão com cordialidade e algum distanciamento. Pairava no ar uma sensação de contrariedade com o modo que as coisas estavam acontecendo. O mais natural em tais ocasiões e com tais fatos seria o adiamento de qualquer encontro. Em respeito ao meu pai, fiz-lhe ver que por razões de saúde e pelo desejo de meus familiares de ver tal enlace, nosso encontro, que parecia açodado, ocorria apenas por uma necessidade premente. Não deixava de ser verdade. Ou parcialmente verdade. Devo admitir que fiquei surpreso comigo mesmo ao apresentar tais argumentos. De algum modo parecia que minha contrariedade em estar ali tinha se esvaído, ou se atenuado.
Como era de se esperar, fomos convidados a ficar no castelo. Foi providenciada a busca de nossas bagagens no hotel e nos instalamos na ala destinada aos hospedes mais ilustres para descansarmos por algumas horas e nos prepararmos para o jantar em que finalmente conheceria mylady Helen Bratsborow.
Quando descemos ao salão, quase na hora marcada para o jantar, muitos convidados já tomavam o lugar. Fomos apresentados com pompa e fidalguia à nata da nobreza de Londres. O barão, sem dúvidas, era um homem de muito prestígio.
Minha mãe, apesar de nossas agruras, pareceu-me nas nuvens. Fiquei feliz por ela. E, pior, eu estava encantado. Era como se os tempos de glamour da chegada em portos distantes em possessões inglesas tivessem retornado. Mas isto não foi o melhor.
Pouco antes das dezenove horas, marco do jantar, um dos lacaios anunciou a presença de mylafdy Helen. Um silêncio respeitoso e tomado de expectativa baixou sobre o salão festivo.
Helen Bratsborw, em um lindo vestido branco descia as escadas em curva, com seus cabelos negros a cair aos ombros alvos como leite, lentamente, quase a flutuar, para deleite dos convivas que a esperavam, e, para minha própria surpresa, meu prazer.
Continua ...