Espelho Antigo
"Tornai-me a aparecer entes imaginários, que me encheis outrora os olhos visionários! Poder-vos-ei fixar?... Tenho ainda coração capaz de se render à vossa sedução?"
Goethe
Goethe
Helena sempre fora uma menina calada, com a pele pálida de lírio silvestre e um quê de desemparo em suas feições acentuado por olhos que exibiam a melancólica certeza de não pertencer a este mundo.
Passava os dias vagando sozinha pelo casarão, absorta em suas lembranças e em longas conversas consigo mesma. Algumas vezes, perdia-se por horas observando pela janela o mundo lá fora, desejando ver de perto aquilo que apenas a sua alma conhecia.
Gostava das noites perfumadas quando o chão do jardim ficava coberto pelas centenas de pequenas flores amarelas que a chuva, após se derramar durante o dia todo, fazia cair das árvores bem cuidadas que margeavam a casa, formando um tapete acolchoado sobre o gramado verde.
Noites em que o aroma refrescante das laranjeiras e da terra molhada se espalhava pelo ar repleto pela cacofonia de dezenas de grilos que com seu canto saudavam a chegada do anoitecer que se estendia como um sudário negro sobre a cidade distante.
Mas aquela não seria uma noite assim.
Postada em frente ao grande espelho antigo que adornava desde sempre o belo salão, Helena sentia seu coração tomado pelas trevas, assim como eram os cômodos do velho palacete, repletos de cantos escuros dominados pelas sombras que, mesmo nos dias mais ensolarados, permaneciam aprisionadas entre suas paredes opressivas.
Nas noites em que o vento frio uivava lá fora chorando sua canção lúgubre, ela sabia o que esperar. A chuva anunciaria a tristeza das almas e o espelho antigo lhe mostraria um rosto.
Ela o veria como se fosse seu reflexo, mas que, apesar de já ter se passado uma eternidade sem que ela pudesse ver-se a si mesma e mesmo após a lembrança de seus próprios olhos há muito tempo ter se desfeito em sua memória, ela saberia não ser o seu.
Seria apenas mais um rosto triste e desconhecido, como aquele que ela contemplava naquele momento. Um rosto que revelava uma alma partida pelo sofrimento e consumida pela dor, de onde emanava desespero, desilusão e desesperança e cujos olhos eram dominados por uma loucura feita de silêncio e solidão capaz de impregnar a carne e os ossos.
Helena observava aquele rosto sem forças para desviar seu olhar. Sentia-se presa àquela visão como que por uma maldição que pesava sobre sua alma desde o dia em que, confundida por uma ilusão, acreditara na falsa promessa de uma solução permanente para suas dores passageiras e se convencera de que o fim lhe traria a paz que tanto desejava.
Ela podia sentir o quanto aquela imagem que a observava do outro lado do espelho sem vê-la, ansiava por se libertar das absurdas certezas que a invadiam com tanta força e que rodopiavam em sua mente em círculos infinitos que lhe feriam.
Conhecia bem aquele desespero e sabia que não havia como lutar contra a febre que domina os pensamentos e que depois de invadir a mente pela primeira vez, permanecem para sempre lá, se repetindo e se repetindo incessantemente com suas vozes que nunca se calam.
Um dia ela também havia tentado em vão fugir das vozes que gritavam em sua mente com aqueles mesmos laivos agudos que vinham do outro lado do espelho para atormentá-la em sua existência eterna e que ressoavam por todos os cômodos da mansão vazia até se desfazerem no ar.
Angustiada pela certeza do que viria a seguir, seus olhos continuavam presos àquele rosto vazio que já fora belo.
Impotente e com lágrimas escorrendo mais uma vez por sua face ela tentou gritar, mas o som de sua voz morreu antes mesmo de alcançar a garganta e ela viu os olhos castanhos se fecharem enquanto no pulso liso e branco a lâmina fria traçava a linha de onde o sangue vermelho brotou.
Uma paz gelada absorveu o rosto do outro lado do espelho e aquela imagem a confundiu a ponto de tornar impossível distinguir entre sonho e realidade até que não soube mais se aquela deitada sobre a poça de sangue que se espalhava pelo chão era apenas o reflexo de alguém ou dela mesma.
(...)
Do lado de fora da mansão que outrora fora o orgulho da cidade, mas que, após a chegada das dezenas de prédios modernos que dominavam a paisagem acabara renegada ao ostracismo arquitetônico até ser reduzida a ruínas, uma garotinha puxa a manga da camisa da mãe tentando ganhar sua atenção.
A mulher está ocupada demais em sua conversa para perder tempo com bobagens e ignora a menina que, chateada, aproxima-se dos portões carcomidos pela ferrugem que cercam o casarão.
Ela sente o perfume do ar após o dia de chuva. Há flores amarelas espalhadas pelo chão e aquilo parece combinar perfeitamente com o abandono e a tristeza do emaranhado de árvores e arbustos que formam o jardim esquecido pelo tempo e pelos homens.
O cenário todo a fascina.
Ela observa as paredes desgastadas, a tinta desbotada, a madeira apodrecida e os vitrais quebrados aqui e ali e, apesar de ser ainda tão pequena, é capaz de sentir e perceber a beleza dolorida que emana daquela decadência.
Cada detalhe parece lhe soprar uma história e ela olha tudo com atenção e interesse até que vê, em uma das janelas, uma moça bonita e pálida que contempla o céu perdida em seus pensamentos.
Hipnotizada pela visão, a garotinha não desvia os olhos até que a moça parecendo sentir seu olhar volta-se em sua direção.
A menina, encantada, acena e para sua surpresa a moça lhe acena de volta.
(...)