Inimigo invisível- CLTS 05

Uma semana antes haviam combinado de fazer um novo tipo de amigo invisível. Estavam cansados de todo ano ser a mesma coisa. Quando falaram que fariam algo diferente ele logo sorriu se lembrando de seus tempos de escola em que ele e sua turma faziam um jogo chamado “amigo da onça” em que o objetivo era dá para o outro um presente que ele detestaria. Kelvin lembra que certa vez ganhou algumas pedrinhas que seu amigo havia pego no campinho de futebol. Sorriu ainda mais com a lembrança. Ele havia guardado aquelas pedras por um tempinho depois que terminou o ensino fundamental, porém depois veio o ensino médio, a faculdade e o seu emprego e as pedrinhas se perderam levadas pela correnteza do tempo.

Estava tão perdido em seus pensamentos que nem estava mais prestando atenção no rumo da conversa.

-Kelvin, o que você acha?- ouviu a voz de Mauro, seu colega de trabalho lhe chamando. O rapaz era seu amigo, único amigo, naquele ambiente que considerava por vezes muito competitivo e hostil.

-Desculpe, estava com a mente em outro lugar. E no que ficou o nosso amigo invisível?

-Os nomes serão tirados na hora e cada um ao invés de comprar um presente pensando no que o outro vai gostar comprará o presente que ele gostaria de receber.

Kelvin até que gostou da ideia, apesar de que ainda preferia o bom e velho amigo da onça. Tinha até um presente em mente para algumas daquelas pessoas do escritório.

Depois de tudo acertado se despediu rapidamente. Iria logo comprar o tal presente, pois sabia como as lojas estariam mais perto da data. Ele era uma pessoa fácil de se agradar. Gostava de um bom livro, chocolates e acima de tudo sossego. Se tivesse um cartão que lhe concedesse uns meses de férias em uma boa ilha deserta teria comprado, porém como o produto ainda não estava disponível resolveu que iria comprar um livro que estava com muita vontade de ler. Tinha a chance da pessoa que iria receber não gostar muito, mas como falaram era para comprar o presente pensando nele.

Ainda pensava sobre isso quando notou que as luzes do prédio começaram a oscilar um pouco no momento em que apertou o botão para chamar o elevador. Culpou a instalação elétrica antiga e achou mais seguro ir pela escada, porque teve medo que o elevador desse defeito e ele ficasse preso.

Na sua pressa para realizar a compra não notou arranhões profundos que seguiam pelas paredes próximas dos corrimões da escadaria e nem as marcas um pouco mais suaves na porta.

O fim de semana passou correndo e enquanto dirigia para o local da confraternização pensava que havia tomado a decisão certa, pois pela janela do carro via a correria nas lojas que logo fechariam. Pelo jeito tinha gente de deixava realmente tudo para última hora. No meio das pessoas que disputavam entre si os melhores presentes pensou ter visto um rosto conhecido, aproximou o carro e gritou:

-Mauro!

Seu amigo virou o rosto para ele e sorriu. Pensou que o certo seria o esperar. De qualquer forma não estava com muita pressa. Mauro estava demorando e isso lhe fez ter um ideia, poderiam ambos esquecer esse amigo invisível e fazerem uma comemoração somente deles, talvez com direito ao amigo da onça que ele tanto queria. Não conseguia tirar essa ideia da cabeça, assim como não tirava a ideia de que precisava de férias.

-Obrigado por me esperar, cara. – disse Mauro entrado no carro com uma grande caixa embrulhada para presente, devia ter custado um bom dinheiro.

-Você gastou um bom dinheiro nisso. - não conseguiu deixar de comentar.

-Nesse sim, mas esse não é para o meu amigo invisível. Esse é para mim. – disse e após isso tirou do bolso uma embalagem de presente bem menor.

Os dois riram juntos. Alguns metros depois se viram presos no trânsito por causa de um evento natalino que estava tendo.

-Não sei você, mas eu estou cansado dessa confraternização do pessoal do escritório.- sentia que poderia falar isso para Mauro sem parecer o chato do grupo. Confiava nele e essa confiança aumentou ainda mais a medida que conversavam.

-Compartilho do mesmo pensamento, por mim a gente descia aqui mesmo e passava o resto do dia em uma dessas vilas natalinas. – disse apontando para a entrada de uma dessas vilas onde era possível ver crianças vestidas de renas e várias filas de carros que queriam aproveitar a programação do local.

Kelvin notou o tom de brincadeira na proposta, por isso riu ao invés de concordar, pois se achasse que Mauro falava sério teria se direcionado para a entrada da vila naquele mesmo momento, talvez ainda conseguissem achar fantasias do tamanho deles. A ideia das longas férias na ilha deserta começou a se modificar. Queria que Mauro fosse com ele.

O trânsito continuava lento, era como se a cada sinal fechado aquele dia quisesse lhes mandar um recado para mudarem o rumo. Quando estavam parados em um dos últimos sinais uma sensação começou a tomar conta de Kelvin. Não queria ir para aquela confraternização e dessa vez não era somente por a achar repetitiva. Sentiu uma gota de suor escorrer pelo seu rosto e sentiu um pouco de frio apesar do clima abafado. Em meio a multidão que atravessava na faixa um garotinho parou o passo e ficou os encarando. A criança de repente fez um rápido movimento com o dedo na garganta, simulando um corte. Aquilo foi tremendamente assustador e paralisante. Despertou com o som das buzinas.

-Cara, não podemos ir para essa confraternização. Você pode me achar estranho por dizer isso, mas se a gente for algo vai ocorrer. Aquele garotinho na faixa quis dizer isso para nós, você deve ter visto o sinal que ele fez.

-Que é isso, cara. O pessoal já deve está comendo agora. E que sinal? Único sinal que vi foi o semáforo, nenhuma das crianças se quer olhou na nossa direção.

Ficaram alguns minutos em uma discussão que tinha com objetivo fazer o outro mudar de opinião, mas que não surtiu efeito algum. No fim Mauro abriu a porta do carro, iria o resto do caminho a pé. Ainda olhou uma última vez para Kelvin:

-Você realmente não parece bem com a ideia de ir para a festa, não posso lhe obrigar a ir, mas me sinto obrigado, sabe como aquele pessoal é, se eu não aparecer será um falatório.

-Podemos fazer uma comemoração somente nossa.- tentou Kelvin uma última vez.- Ou ir para aquela vila.

-Podemos fazer isso quando eu voltar. –disse Mauro se despedindo por final. –Espero que fique bem.

Kelvin esperava a mesma coisa. Abaixou a cabeça por um momento e ao ergue-la novamente aquele garotinho estava sentado no banco de trás. O medo congelou o seu grito na garganta.

-Sabe que ele não vai voltar.- disse o menino.

-O que você é?- disse sem forças. Um pensamento se formava na sua mente. O medo foi trocado por outra coisa.

-Ainda dá tempo de ir atrás dele.

-Para salva-lo?

-Digamos que não.

Vários pensamentos passaram pela sua mente em um piscar de olhos. Não tinha mais família, apesar de ainda ser relativamente novo. Se ocorresse algo com Mauro ficaria ainda mais sozinho do que era. Além disso, não queria que seu amigo morresse sozinho e assustado. A pessoa que considerava como irmão. Engoliu o medo e o alcançou. Ele parecia está andando lentamente de propósito para que fosse alcançado. E além de tudo era uma pessoa teimosa, achava que poderia sim fazer algo.

Seguiram o resto do caminho em silêncio profundo. Aquela criança estranha desceu com eles e continuava a segui-los até mesmo no momento em que apertaram no botão para chamar o elevador.

-Acho que não poderão usar o elevador.-disse o menino que pela primeira vez pareceu confuso e isso o fez ter esperança. Era como se ele estivesse decidindo se contava ou não algo para ele, talvez ele os ajudasse.

-Acho que ainda não consertaram o elevador.- disse Mauro meio irritado apertando o botão sem parar. A luz piscou enquanto ele apertava pela última vez e durante o curto período de tempo em que estavam no escuro foi como se estivessem em outro lugar. Kelvin sentia que a estrutura do chão estava diferente. Quando tudo normalizou o rosto do menino estava ainda mais estranho. Decidiram ir pelas escadas.

O menino que somente ele via ficou para trás e aproximou o seu dedo do botão do elevador e apertou. Para espanto de Kelvin a luz do botão acendeu e a criança olhou em sua direção como se falasse que o elevador estava disponível somente para ele.

Kelvin tinha a sensação de que estava subindo os degraus que o conduziriam até a forca. Reparou nas marcas que não tinha visto antes, principalmente nas profundas marcas de arranhões na porta que levava até a escadaria. Quando chegou na sala decorada encontrou um cenário que não condizia com o seu medo. Seus colegas estavam comendo e rindo. Os presentes já haviam sido abertos e todos estavam em um clima animado.

Mauro se apressou em fazer um prato com um pouco de tudo. Kelvin continuou parado no centro da sala. Sentia o perigo e tentava entender de onde ele vinha exatamente. Encarava os seus colegas de trabalho. Notou cochichos e olhares de chacota na sua direção. O pessoal devia achar que ele tinha ficado doido.

-Vocês tem que sair daqui agora. Não perca tempo procurando quem dos seus colegas é o inimigo. O maior problema é o prédio que está contra vocês. - disse o menino aparecendo de repente do seu lado.- E nem pensem em ir pela escadaria. –o menino fez uma pausa e com o rosto mais sombrio, como de um juiz que fala uma sentença que não acha justa, completou – Terão que ir pelo elevador.

-Pelo elevador? Mas pensei que ele não estivesse pegando.

-Cara, com quem você está falando? Realmente não está bem.- disse Mauro com preocupação –Acho melhor irmos embora. Talvez precise de um médico.

Ouviu alguém fazer uma piada sobre o tipo de médico de que precisava e as risadas que se seguiram de quase todos. Se estivesse enganado era bom começar a pensar em outro lugar para trabalhar. Se estivesse certo também.

-Temos todos que sair daqui. Estamos correndo perigo. – disse mesmo sabendo que provavelmente aquilo apenas os faria rir mais, porém mesmo que eles não acreditassem tinha que tentar os avisar pelo menos.

-Vamos embora, cara. Não ligue para eles.- disse Mauro com a voz gentil quando os risos se tornaram mais altos e as piadinhas mais cortantes alimentadas por algumas doses de álcool a mais- Vocês deviam ter vergonha há pouco tempo estavam todos com aquele papo de amizade e bondade e agora estão fazendo isso com o Kelvin.

-Vocês ainda não estão totalmente seguros. Entrem logo no elevador. - o menino os seguia. Ele sabia disso antes mesmo da criança falar, pois sentiu o ar ficar alguns graus mais frio a medida que os minutos passaram. E de alguma forma se sentiu observado no momento em que saiu da sala com Mauro.

-Vai ficar tudo bem, Kel.- disse Mauro quando já estavam próximos da porta que levava até a escadaria- E sinto muito, devia ter percebido que você não estava mesmo bem.

O amigo ainda falava quando notou que a porta estava trancada, o que era estranho, pois eles tinham acabado de subir por aquela escada. Forçou a porta, porém sem resultado. Era como se ela estivesse sido fechada pelo lado dos degraus.

Kelvin apertava o botão do elevador de forma compulsiva, porém sem resultado algum. E a urgência apenas crescia.

-Você poderia apertar o botão por favor? Esse negócio funciona somente com você!- disse alto para o menino que apenas os observava. Havia um nervosismo crescente nele também. Mauro o olhou com preocupação, mas ele estava começando a sentir o medo dele que parecia os envolver como uma névoa. Ao longe ainda ouviam o barulho dos risos e da agitação da festa, mas algo estava começando a mudar. As luzes se apagaram de repente e ouviram ao longe o barulho de gritos, que não pareciam terem sido somente pela falta de luz. O barulho seco da porta se fechando e trancando seus colegas logo se fez ouvir. Kelvin afastou as mãos rapidamente da parede, pois sentia que cada tijolo do prédio estava vibrando ansioso pelo que viria a seguir. Queria sair daquele lugar. Em meio ao escuro o botão do elevador acendeu. Única luz naquele corredor tomado pelo escuro.

Um barulho alto cortou o ar vindo da direção da porta da escadaria. Era o som de garras afiadas que arranhavam a porta sem parar, porém o som que fez até o menino gritar foi o barulho dos pedaços de madeira da porta caindo lentamente no chão.

-É isso que ganho por tentar ajudar vocês. –disse na voz de desespero que os três compartilhavam.

A porta do elevador se abriu de forma convidativa nesse exato momento, mas algo estava errado. O interior era diferente do que eles lembravam, porém diante da situação entraram mesmo assim. A porta não queria fechar de jeito nenhum. Estavam apertando em todos os botões quando finalmente ela fez menção de fechar, mas da forma mais lentamente possível, era como se quisesse os torturar até o último segundo. Não havia fechado quando a luz voltou de repente. Conseguiram ver que haviam lascas de madeira e sangue que se misturava com outro líquido viscoso que parecia formar uma trilha até a sala em que trabalhavam. O ar pareceu mais frio do que nunca. Sabiam que o perigo continuava, por isso ficaram paralisados no lugar em que estava.

No fim da trilha estava o homem que foi o chefe deles. Com as roupas sujas do líquido viscoso e segurando uma faca. O olhar dele com Kelvin se cruzaram e naquele momento o rapaz entendeu o que o menino quis dizer quando disse que o prédio era o inimigo deles. No fundo daquele olhar viu os alicerces do prédio, as janelas que estavam o vigiando, cada tijolo e o chão, todos vibrando no mesmo ritmo em uma espécie de orquestra bizarra. O som parecia ser produzido no abrir e fechar daqueles olhos de uma forma que ele não poderia explicar. Era semelhante ao som dos arranhões.

Mas por algum motivo a criatura não fez menção de ir atrás deles, parecia está satisfeito. As manchas de sangue sumiram do chão em segundos, como uma esponja o prédio sugou até a última gota, deixando para trás apenas as lascas de madeira.

Kelvin desabou no chão e chorou quando a porta finalmente se fechou. Mauro se abaixou e o abraçou por um longo tempo.

-Vai ficar tudo bem, Kel. –disse Mauro depois de algum tempo- Vamos para casa.

-Se conseguirem descer no andar certo. –disse o menino com voz sombria- Não cometam o mesmo erro que eu cometi, pensei ter descido no andar correto e descobrir que estava preso em outra realidade do prédio. Esse elevador é digamos diferente.

-Quem é você?- perguntou Mauro assustado finalmente vendo o menino. Parecia que o elevador os deixava no mesmo plano. Kelvin explicou tudo para ele e depois se virando para o menino perguntou:

-Como assim andar certo? Esse prédio tem só três andares.

-Olhe para o marcador de andares.

Kelvin ainda nervoso olhou e viu que o marcador estava no andar vinte e pouco. O que não fazia sentido nenhum. O que fez ainda menos sentido foi a porta se abrir em um andar que não devia existir e uma moça vim na direção do elevador pedindo para eles segurarem a porta. Não era possível ver o rosto dela, pois estava procurando alguma coisa de forma compulsiva dentro da bolsa de mão.

Quando levantou o rosto conter o grito foi impossível, pois havia dois buracos vazios no lugar dos olhos dela. Da bolsa aberta tirou o órgão que faltava e forçou tentando colocar no lugar com a tranqüilidade de quem coloca um simples acessório antes de ir para o trabalho. Devido a sua parada para colocar o olho a porta do elevador fechou antes que pudesse entrar.

Em meio ao susto Kelvin começou a pensar que talvez a criatura não tenha os atacado porque sabia que se seguissem no elevador teriam um destino pior. Seu coração batia de forma apressada, Mauro mesmo mais assustado que ele tentava o acalmar.

Cada vez que a porta do elevador abria e não viam nenhuma nova criatura era um alivio, porém Kelvin começou a notar que o espelho do elevador ia ficando cada vez mais embaçado a medida que a porta se abria. Não tinham noção de quanto tempo estavam dentro daquele elevador.

-Acho que lhe devo desculpas. Devia ter lhe ouvido.-disse Mauro de forma fraca como se tivesse desistido de sair dali.

Kelvin ia responder quando a porta fez sinal de abrir. A expressão no rosto do menino mudou. Antes mesmo que ele falasse Kelvin já tinha entendido:

-Esse é o nosso andar.

Mauro e o menino sorriam, porém no meio do silêncio Kelvin conseguia ouvir o perigo. Aquele prédio era um inimigo que devia está planejando algo silenciosamente. Podia ouvir cada estrutura da construção se preparando para uma risada de triunfo cortante. Lembrou do vento frio que sentiu passar por ele nos andares em que a porta abriu. O espelho cada vez com mais manchas. Entendeu.

-Se afastem do espelho!- gritou no momento em que garras atravessaram o objeto como se passassem por água parada. Seria um bote certeiro segundos após a porta abrir, porém sem o elemento surpresa e contando com a velocidade que somente o medo pode conferir saíram antes em um salto. Rostos contorcidos no espelho pareceram decepcionados.

Kelvin chorou de alívio e recebeu o abraço de Mauro que repetia que tudo estava bem. Havia conseguido salvar o amigo e no fim o menino também. Enquanto isso o elevador subia para algum lugar desconhecido.

Temas: Espelhos e assombrações