A casa na colina
- Já era para a gente ter chegado à horas. - Disse uma garota morena no banco de trás do carro, aborrecida. Ela tinha uma pequena cicatriz no queixo.
- O desvio nem foi tão grande assim, não exagera. - Disse o motorista, franzindo a testa.
- Eu disse para ligar o GPS. - Falou a garota loira na banco do carona. Uma rosa saia da gola de sua camiseta e tomava boa parte do seu pescoço.
- É, mas eu não liguei e me perdi. Quer parar vocês duas com isso?
- Não tá mais aqui quem falou.
- Dá próxima vez eu dirijo. - Disse a garota morena.
- Só por cima do meu cadáver. - Disse ele, a encarando pelo espelho interno.
- Eu só espero que a tirolesa ainda esteja funcionando quando a gente chegar. - Falou a garota loira, olhando pela janela.
Uma planície verde cercava os dois lados da estrada.
- Eu acho que a sua tirolesa vai ter que ficar para outro dia. - Disse ele, olhando para uma nuvem escura que começava a se formar.
- Tá de brincadeira. - Olhando na direção da nuvem.
- Me fala que essa luz piscando não é por causa do combustível. - Disse a garota morena, já sabendo qual seria a resposta.
- Você não disse que tinha abastecido?
- E abasteci. - Ele se defendeu. - Aquele desvio não estava nos meus planos.
- E por que não procurou um posto!? - Falou a garota morena, quase gritando.
- Vai com calma ai, Verônica.
- Calma? A gente vai ficar sem gasolina no meio da chuva e num lugar onde não passa quase ninguém. - Disse a garota loira, pegando o celular de cima do painel. - E para ajudar aqui não tem sinal.
- Desculpa, como eu ia adivinhar?
- Qual é o seu problema, Tales? - Disse Verônica, mostrando uma careta.
- Vê se o meu celular tem sinal. - Disse ele, olhando para a garota loira.
- E onde ele está?
- Dentro do porta-luvas.
- Não. - Disse, assim que pegou o aparelho.
- O meu também não tem. - Verônica soltou uma curta bufada.
- Talvez a gente possa pedir ajuda naquela casa. - Disse Tales, olhando a casa pela janela.
A residência estava a pelo menos quinhentos metros da estrada, no alto de uma colina. Um árvore com o tronco inclinado espalhava seus galhos sobre o telhado da casa.
- Se houver alguém lá. - Disse Verônica.
- Se não tiver ninguém, a gente passa a noite lá e amanhã pedimos ajuda.
- Acho que a gente não tem muita escolha. - Disse a garota loira, soltando um curto chiado.
Tales dirigiu até a casa. Um trovão ecoou intenso. Todos os galhos da árvore estavam secos e a casa tinha uma aparência mórbida. Os jovens saltaram e Verônica enfiou as mãos nos bolsos de trás da calça, fazendo uma pequena careta desgostosa.
- Você bate na porta. - Disse a jovem loira, para Tales
- E por que você não faz isso? Está com medo do quê?
- Não enche o saco.
Tales bateu algumas vezes na porta, não havia qualquer som vindo do interior. Bateu mais algumas vezes e alguém pareceu se aproximar. A porta foi aberta e um homem calvo de cinquenta e tantos anos e barba por fazer, apareceu em sua frente. Ele usava roupas que pareciam ter saído da década de 80.
- Em que posso ajudar? - Sua voz tinha um ar cansado.
- Nosso carro ficou sem gasolina e queríamos saber se podemos usar seu telefone.
O senhor olhou para as outras duas garotas.
- O telefone sempre fica mudo quando vem uma tempestade.
- Tempestade? - Disse a garota loira.
O senhor assentiu.
- Hoje não é o dia de sorte de vocês.
- Com toda a certeza. - Disse Verônica, mais para si mesma.
- Se quiserem podem passar a noite aqui, nós temos um quarto sobrando.
Tales olhou para as amigas. Elas não disseram uma palavra.
- Acho que a gente vai aceitar.
- Entrem. - Abrindo caminho para eles passarem.
O senhor olhou ao redor por alguns instantes antes de fechar a porta.
- A casa é pequena, mas cabe todo mundo. - Disse o senhor, com um sorriso.
- Vamos ter visitas essas noite? - Perguntou uma senhora surgindo do corredor. Ela era magra, cabelos com alguns fios brancos presos em um coque, e o rosto cadavérico.
- O carro deles ficou sem gasolina.
- Que bom, faz tempo que não temos visitas. O que acham de um frango recheado com batatas?
- Parece muito bom, querida.
- E o que vocês acham?
- Eu adoro frango. - Respondeu Tales.
As garotas ficaram em silêncio.
- Ótimo, vou começar a preparar o jantar. - Disse, desaparecendo pelo pequeno corredor.
- Há que horas vocês jantam? - Quis saber a garota loira.
- Sentem-se, por favor. - Indicando um sofá escuro de três lugares atrás deles. - Até as sete no máximo. - Sentando-se numa poltrona da mesma cor que o sofá. Um rasgo no tecido deixava a mostra a espuma num dos braços. - Nós somos das antigas.
- Vocês têm filhos? - Perguntou Tales.
- Tivemos um, mas morreu de leucemia há vários anos atrás.
- Sinto muito.
- Para onde vocês iam?
- Um parque de esportes radicais que tem a cinco quilômetros daqui.
- Já ouvi falar. É o parque Radicalize, não é?
- Esse mesmo. - Respondeu Verônica.
- Vamos, eu vou mostrar o quarto onde vão ficar. - Se levantando. Os ossos de seu joelho estalaram.
O senhor os deixou sozinhos e logo após revesaram em um banho rápido no único banheiro da casa, um cubículo de 2x2. O espelho quadrado tinha uma rachadura e havia marcas de infiltração nas paredes.
O cheiro do frango recheado tomava toda a casa e Tales suspeitava que chegasse até a estrada. O rapaz se fartou enquanto ouvia o casal contar como haviam se conhecido, em um pequeno bairro suburbano da década de 80. Uma história que parecia ter sido contada várias e várias vezes. As garotas quase não falaram durante todo o jantar e a jovem loira parecia estar incomodada com algo. A chuva martelava forte contra o telhado da pequena casa.
- Eu até poderia falar para vocês irem assistir televisão enquanto eu e minha esposa lavamos a louça, mas com certeza vai estar fora do ar. - Disse o senhor, ao se levantar da mesa.
- Vocês querem ajuda com a louça? - Perguntou Verônica.
- Não precisa, podem ir descansar. - Disse a senhora, com um sorriso gentil.
- Nós vamos acabar aqui e vamos dormir também. - Falou o senhor, pegando os pratos da mesa.
- Boa noite. - Os três disseram quase que ao mesmo tempo e seguiram até o quarto.
- O que a gente vai fazer agora? Eu não estou cm nenhum pingo de sono. - Disse a garota loira, se sentando na única cama do quarto.
A cama de solteiro e uma cômoda de seis gavetas antiquada eram os únicos moveis ali. Um colchão de casal havia sido colocado no chão ao lado da cama. A garota loira olhou para a árvore seca pelas grades da janela.
- É melhor que o encontre porque não tem mais nada para fazer nesse fim de mundo. - Disse Verônica, se deitando.
- A gente tem mais é que agradecer, se não fosse por eles nós estaríamos lá fora de baixo dessa chuva. - Disse Tales, se sentando no colchão.
- Se não fosse por você a gente nem estaria preso nesse fim de mundo.
- Pode colocar toda a culpa em mim, mas dá próxima vez podem me implorar de joelho que eu não trago mais nenhuma das duas.
- É melhor a gente ir dormir, essa história não vai nos levar a lugar algum. - Disse a garota loira.
- Boa noite. - Disse Verônica, puxando a coberta e dando as costas para o Tales.
Ele se levantou para apagar a luz. O barulho que vinha da cozinha se misturava ao som da chuva.
A garota loira sentiu alguém cutucando seu braço, fazendo-a acordar. Um garoto de oito anos estava sentado no colchão ao seu lado, olhando-a, e a luz acessa. A casa estava inteiramente silenciosa, apenas a chuva ecoava do lado de fora.
- Como é o seu nome?
- Fernanda. - Intrigada. - De onde você surgiu?
O garoto olhou para as amigos dela que dormiam tranquilamente ao lado.
- Meu nome é Antônio. - Pausa. - Mamãe me mordeu, ela disse que eu sou uma iguaria rara. Eu não sei o que é iguaria. - Com um meio sorriso. - Vocês não deveriam estar aqui.
- Por quê? - Perguntou Fernanda, assustada.
O garoto colocou o dedo indicador sobre a boca. Um trovão ecoou e a luz foi apagada.
Fernanda acordou com um pulo, ofegante e aterrorizada.
- O que aconteceu? - Perguntou Tales, acendendo a luz.
- A gente tem que sair daqui. - Seu rosto estava pálido.
- E ir para onde? Não podemos sair daqui. - Disse Verônica.
- Foi só um pesadelo, tente voltar a dormir.
- A gente tem que ir embora. - Se levantando com um salto.
- Tente se acalmar, amanhã nós vamos embora. - Disse Verônica, segurando-a.
- Ela está bem? - Perguntou a senhora, ao abrir a porta.
- Fique longe de mim! - Disse Fernanda, se afastando.
- Desculpe, ela teve um pesadelo. - Disse Tales, um pouco sem graça.
- Aquele maldito de novo. Ele sempre tentando acabar com a diversão.
- Está tudo bem, querida? - Perguntou o senhor, ao se aproximar.
- Aquele garoto de novo.
Os três jovens se afastaram da porta, olhando-os assustados e tentando entender o que estava acontecendo..
- Dá última vez você começou, agora é a minha vez. - Disse o senhor, puxando uma faca de açougueiro detrás das costas e se aproximando dos jovens.
Tales deu um passo corajoso a frente e tentou acertá-lo com um soco, mas o senhor segurou seu punho e com o cabo da faca o acertou na cabeça, derrubando-o. Ele era mais forte do que aparentava. Não havia saída, estavam encurralados. Gritos tomavam o quarto enquanto tentavam lutar por suas vidas e em vão.