Uvunjaji

Algumas palavras são intraduzíveis, no sentido que só podem ser explicadas em outra língua com frases inteiras. Uma delas é o conceito de "uvunjaji". Ao invés de uma frase, foi explicá-la com uma pequena história.

Os dois homens, empoleirados em uma encosta íngreme, observaram de uma distância segura como o exército orc destruia a cidade abaixo deles. A imponente muralha que a protegia, outrora forte e inquebrável, não conseguiu conter a investida. Mesmo não entendendo a língua orc, os humanos podiam decifrar, pelo tom dos gritos, o teor das ordens recebidas: nenhum homem, mulher, criança ou animal deveria ser deixado vivo. As instruções foram obedecidas com espadas e lanças, e um só dia foi suficiente para o abate.

Os dois observadores, Dakimu e Kiji, entenderam as implicações do que haviam testemunhado. A cidade mais próxima era a sua terra natal, a cerca de dois dias de marcha. Um ano atrás, junto com vários outros soldados, eles haviam sido mandados em uma missão de escoltar um embaixador para uma terra distante. A missão havia fracassado e o embaixador foi morto. Na jornada de volta, os corpos dos outros soldados ficaram pelo deserto, sendo Dakimu e Kiji os únicos sobreviventes, voltando para casa para relatar o fracasso da missão. Então, por acaso, deram de cara com o exército orc ocupando território humano.

Logo perceberam que, enquanto metade do exército continuava a destruição, a outra metade partia para o próximo cerco, indo em direção à cidade deles. Decidiram correr para avisar seu povo, mas o caminho mais curto era justamente aquele usado pelo invasor. Decidiram usar o mais longo, esperando que dois homens caminhando rápido seriam mais rápidos que um exército em marcha. Se enganaram, porém: o exército inimigo era maior do que eles esperavam, de modo que havia um destacamento avançado que já havia chegado em sua terra-natal quando eles chegaram, e a estava cercando.

A maior preocupação de Dakimu era por sua esposa. Ele queria salvá-la, mas àquela altura parecia impossível. Ela era a única pessoa que ele já havia amado na vida - o mais próximo disso era sua amizade com Kiji. Enquanto pensava nisso, seu companheiro quebrou sua concentração:

- Há uma maneira de entrar, você sabe disso. Podemos ir pelo túnel. - O túnel antigo e esquecido tinha uma entrada em um quarto escondido sob o templo da cidade e a outra do lado de fora das muralhas, na base de uma colina. Kiji, quando jovem, havia-o explorado com alguns amigos. A entrada externa estava escondida por uma pedra, mas dois homens fortes podiam movê-la o suficiente para se arrastar para dentro. - Vamos entrar na cidade esta noite, antes que o resto do exército chegue. Vamos salvar sua esposa.

Kiji, como a maioria dos soldados, não tinha esposa. Também não tinha qualquer parente ou amigo vivo na cidade. Portanto, a esposa de Dakimu era a única preocupação de ambos. Decidiram descansar um pouco, pois não haviam dormido direito há dias, e quando estivesse bem escuro entrar na cidade pelo túnel e resgatar Mchango. Durante o sono, porém, Dakimu sonhou com sua esposa, algum tipo de pesadelo macabro. Ao acordar, havia uma silhueta na escuridão observando. Kiji dormia profundamente, cansado. Dakimu fez menção de sacar sua espada, mas pôde ver como que um gesto apaziguador das sombras.

- Eu posso te ajudar a salvar Mchango. - A sombra falou. - Meu nome é Bwana.

- Já ouvi falar em você. Sim, Bwana, o demônio. Não quero sua ajuda, não preciso de você. - Dakimu era um misto de irritação e medo.

- Teu plano é insensato. Vocês todos vão morrer se fizerem isso. - Quando a voz soou, o medo passou a predominar sobre a raiva. - Eu posso te levar à cidade, e te trazer de volta. Basta que você me dê um sacrifício.

Dakimu ficou alguns segundos sem entender, então olhou para Kiji, prevendo o que seu interlocutor iria pedir.

- O que você quer de mim?

- Quero o coração do seu amigo. Pegue sua espada, abra o peito dele, arranque o seu coração e o entregue para mim.

- Eu... - Dakimu balançava a cabeça lentamente - Eu não posso fazer isso. Ele é meu único amigo.

- Você realmente acha que tem alguma chance? Vocês todos vão morrer. Seu amigo já está morto, Dakimu. Estou te oferecendo a tua vida, e a da tua esposa.

Dakimu se angustiou com a escolha. Quanto mais pensava no plano de Kiji, mais ele acreditava que era uma tarefa tola que só poderia terminar em tragédia. A figura escura ficou pacientemente esperando enquanto o humano se debatia em tormento. Finalmente, sua natureza pragmática e seu treinamento como soldado levaram-no a tomar uma decisão difícil.

- Eu vou sacrificar meu amigo para você, e eu vou lhe dar o coração dele. Mas, antes disso, quero te conjurar a cumprir um acordo.

- Que acordo?

- Que você me responda três perguntas, e você as responda de forma totalmente sincera e verdadeira.

- Oh, sim... - A entidade parecia se deliciar com aquilo. - Certo, eu juro, de mão levantada, responder às suas três perguntas com toda a sinceridade. Mas, para que eu não me comprometa demais, vou colocar um elemento nesse trato: eu só responderei "sim" ou "não" às suas perguntas. De acordo?

- Hum... Sim, parece justo.

Dakimu meditou por alguns instantes. Ele sabia que uma criatura das trevas não se preocupava muito com juramentos, mas ele não tinha qualquer meio de se garantir contra ela. Ele teria que fazer as perguntas certas.

- O que você quer saber? - Finalmente a criatura interviu.

- Bem... Mchango está viva?

- Sim.

Dakimu ficou aliviado com a resposta. Apavorava-o a ideia de que algo ruim tivesse acontecido com ele em sua ausência.

- Você foi honesto quando disse que me daria a capacidade de entrar na cidade e sair em segurança com minha mulher?

- Sim.

Dakimu até teve vontade de sorrir, mas a situação era tensa demais.

- Você vai permitir a Kiji uma morte rápida?

- Sim. O modo de execução será escolhido por você. Apenas exijo que o coração não seja danificado.

Dakimu respirou fundo, aliviado.

- Agora pare de desperdiçar meu tempo. Respondi às três perguntas, entregue-me o sacrifício.

Dakimu virou-se e encarou o local onde Kiji estivera dormindo e, como era de se esperar, apesar de Dakimu estar preocupado demais para pensar nisso, ele estava acordado e observando-o.

- Há quanto tempo você está acordado? - Havia ira na voz de Dakimu.

- Com quem você estava conversando? - Kiji também parecia agressivo. Dakimu olhou para o lugar de onde a criatura das trevas surgira, mas não havia mais nada lá. - Fiz um acordo com Bwana. Ele quer o teu coração. Sinto muito.

- Meu coração? - Kiji rangeu os dentes. - Pegue-o então, se acha que precisa dele!

Kiji se levantou, jogou a espada no chão e abriu os braços. O companheiro sacou sua espada e, desligando as emoções, foi na direção dele, como fora treinado para fazer. Kiji ia falar mais alguma coisa, mas Dakimu executou o golpe fatal. De relance, julgou ver um olhar de surpresa no amigo, como se ele realmente não esperasse que Dakimu iria até o fim, antes de sua cabeça cair no chão. Por um momento, Dakimu caiu de joelhos em tristeza. A dor de suas ações quase o dominou, mas ele pensou nas lições de sua juventude, do treinamento como soldado.

Pela última vez, afastou seus sentimentos pessoais para que pudesse completar sua missão. As emoções não foram suprimidas facilmente, mas, no entanto, o soldado recuperou seu foco. Puxando uma faca, cortou a barriga do amigo, subindo até a caixa torácica. Depois de vários minutos de cortes e puxões, ele finalmente tomou seu coração. Uma voz sibilante soou atrás dele.

- Faça uma fogueira e aproxime o coração dela.

- Se eu fizer isso vou denunciar minha localização!

- Não se preocupe com isso, vou me certificar de que eles não o verão.

Dakimu fez uma fogueira e, segurando o coração com as mãos, deixou-o perto do fogo. A voz na escuridão começou a cantar em uma língua que Dakimu não conhecia, mas era a língua élfica. Os minutos se arrastaram, a noite foi ficando mais escura.

- Tire o coração do fogo e coloque sobre uma pedra. - A voz disse, o humano obedeceu. - Agora use sua faca e faça uma fenda nele. - Quando Dakimu fez isso, sangue escorreu pela pedra. - Agora, esfregue um pouco do sangue na sua testa. Você será capaz de andar pela cidade sem ser detectado. O sangue permanecerá molhado. Quando você selecionar a pessoa que deseja trazer consigo, esfregue um pouco do sangue na testa dela. Vocês serão capazes de sair em segurança. Lembre-se, você me deu um sacrifício, então eu te permitirei salvar somente uma pessoa. Vida por vida. Não tente trazer mais do que isso. Os invasores atacarão ao meio dia, você deve deixar a cidade antes disso. Agora vá e deixe o coração aqui para mim.

Depois de espalhar uma quantidade generosa de sangue em sua testa, Dakimu saiu da colina em direção à cidade. Para tirar sua mente da morte do companheiro, imaginou como seria sua vida futura com Mchango. Com as viagens à serviço, conhecia várias cidades, mesmo longe dali. Viveriam em uma casa grande, cheia de filhos, que seriam criados com o amor e carinho que ele não recebeu. Ao se aproximar dos invasores, respirou fundo. Logo, notou que eles ficaram em um tipo transe, abrindo passagem pra ele.

Aliviado, sua mente começou a vagar novamente. Ele não via a esposa há quase um ano. Perguntou-se se ela havia mudado. Pensou em como ela ficaria feliz em vê-lo, e ele sorriu com o pensamento. Finalmente chegou ao portão principal da cidade. Os guardas de plantão olharam para ele do alto da parede, mas tinham olhares vazios em seus rostos. Abriram o portão sem dizer uma só palavra. Entrou, e o portão se fechou atrás dele. Seus batimentos aceleraram. Começou a correr então, tentando chegar o mais rápido possível ao casebre de madeira onde vivia com Mchango. As pessoas da cidade pareciam preocupadas. Eles estavam chorando e discutindo. Soldados estavam ocupados fortificando suas posições ao longo do muro. Ninguém dava atenção a Dakimu enquanto corria pelos becos. Sem fôlego, irrompeu pela porta de sua casa. Mchango estava acordada na cama quando ele entrou. Uma única lamparina iluminava a sala.

- Dakimu! - Ela gritou seu nome explodindo de alegria, e correu até ele. Ela parecia exatamente como ele se lembrava. Abraçaram-se, beijaram-se. Ele não podia começar a explicar para ela como conseguiu chegar lá, e ela não perguntou, apenas aceitou sua presença feliz.

- Eu vim te salvar. Temos que sair agora.

- Sim, vamos, vamos para onde você quiser! Mas espere, preciso te mostrar uma coisa.

- Não temos muito tempo, nós... - então ele ouviu, antes que ela pudesse mostrar, o bebê chorando. Ela pegou um pequeno pacote de cobertores que ele não havia notado antes, aproximando-o dele com um sorriso. A criança tinha cerca de três meses de idade.

- Conheça seu filho, Mvulana. - Dakimu olhou para o bebê e seu coração se encheu de amor e orgulho. A criança pequena, concebida nos dias anteriores à sua partida e nascida em sua ausência, tinha os mesmos olhos coloridos que ele. Mchango entregou-lhe o pacote, e ele segurou seu primeiro e único filho de perto. No entanto, seu sorriso desapareceu, e seu orgulho rapidamente se transformou em horror quando percebeu qual era a intenção do demônio desde o começo.

Olhando para Mchango e para o bebê, lembrou-se das palavras do pacto. Ele tinha que escolher somente um. Desejou invocá-lo novamente e fazer novo trato, mas sabia que seria inútil. Para alguns homens, a escolha seria fácil. Mas, nos poucos segundos que Dakimu viu aquela criança, ele já passou a amá-la tanto quanto sua esposa. Ele era capaz de escolher entre seu único amor e seu único amigo, mas não entre dois amores, os únicos dois amores que ele teve na vida. Esse é o conceito de uvunjaji: quando você tem duas opções para escolher que são tão difíceis que as consequências da escolha te obrigam a não escolher nenhum dos dois.