O PLANTÃO DO DIA 10
 
            — Jonhy, acorda, você está suando. Está dando soco para todo lado.
            — Vai acontecer.
            — Acontecer o que, homem de Deus?
            — A maldição vai acontecer.
            — Que maldição?
            — A maldição que nossa família carrega. Vai acontecer comigo.
            — Jonhy, você está bem? Acorda direito. Que maldição, meu Deus. Como assim? Você está tendo um pesadelo.
            — Não, eu não estou. É uma maldição. Um pacto que meus antepassados fizeram com o demônio. E a gente não consegue se livrar disso. Vai passando de geração para geração. Depois dos trinta e três anos.
            — Jonhy, você está me deixando com medo. Demônio, que demônio? Quer dizer que seu pai tinha essa maldição aí também.
            — Todo filho mais velho tem que ter essa maldição. Eu não deveria ter me casado com você. Eu não deveria ter esposa. Eu tentei fugir, mas a paixão por você foi forte demais, e eu, covarde demais. Eu agora prefiro morrer que fazer isso. Aí passará para Thomson. Então não sei se prefiro correr esse risco. O que faço?
            — Que história é essa, meu amor? Que maldição, pacto, seja lá o que for. O que é isso que você está tentando me contar?
            — Eu vi quando eu tinha onze anos. Eu perdi o sono aquela noite. Ouvi alguns gritos vindos lá do quarto do papai. Uns gritos meio abafados. Peguei meu ursinho de pelúcia, segurei bem firme no braço dele e caminhei pelo corredor escuro. O quarto estava fechado, mas eu, atiçado pela curiosidade, olhei pelo buraco da fechadura, então eu vi.
            — Viu o quê? Não me diga que você viu seus pais na intimidade deles? Está assustado até hoje com isso? Como você acha que você nasceu?
            — Não, Karen. Você não está entendendo. Vi meu pai devorando minha mãe, comendo ela parte por parte. Ele tinha os olhos vermelhos. O lençol todo ensanguentado, ela estava sendo esquartejada pelo meu pai que comia pedaço por pedaço. Ele arrancou o coração dela, entende? Ele enfiou aquelas mãos pingando sangue dentro do peito dela já aberto. Pegou o coração e mordeu com tanta voracidade que nem parecia ser os dentes dele de verdade, eram dentes enormes, e aquela baba amarela escorrendo pelos cantos da sua boca. Aliás, ele sequer parecia meu pai. Estava transtornado. Ele parecia o demônio em pessoa devorando a minha mãe.
            — Nossa, que pesadelo terrível que você teve? Não me diga que você voltou a ter o mesmo pesadelo?
            — Antes fosse. O incrível é que pela manhã eu vi um lençol diferente forrando a cama deles. Fui até o cesto de roupa suja e lá estava o lençol que eu tinha visto durante a noite, todo ensanguentado mesmo. E pela tarde eu o vi no varal enquanto estava brincando no quintal. E mamãe nem um arranhão.  Ela parecia cansada, mas parecia também uma mulher com pele nova. Reparei que mamãe nunca envelhecia como as demais mulheres da sua idade.
            — E depois disso? O que aconteceu depois que você viu seu pai devorar a sua mãe?
            — Eu passei um bom tempo sem dormir direito. Na escola eu dormia na hora da aula. E estava sempre irritado por causa do sono. Mas tentava esconder isso de todo mundo. Ninguém iria acreditar em mim, assim como você.
            — Vá, me conte tudo. Eu quero saber, e vai fazer bem para você me contar.
            — Você não vai achar que eu estou ficando louco, vai?
            — Não, eu não vou. Eu me interessei por essa história pra lá de maluca. Mas eu não vou te achar louco. Você é o amor da minha vida. Louco é o meu amor por você.
            — Durante várias noites eu ia até a fechadura. Eu já os flagrei nas suas intimidades. Mas isso era de menos. Foi numa dessas noites que eu vi algo mais estranho ainda. Mamãe estava tendo intimidade com um bicho de fato esquisito. Era o demônio. Eu vi o demônio com minha mãe. Entende o que é isso? O demônio tendo relação sexual com a mãe da gente. Eu quase fiquei louco nesse dia. Uma mão fria apertou um dos meus ombros enquanto eu via aquela cena ridícula. Não era meu pai como das outras vezes, era diferente. Aquele animal sobre ela, o demônio. Muito mais feio como as pessoas contas. Ninguém tem ideia de como ele é. Ninguém consegue explicar como ele é horrível.
            — Calma. E aí o que seu pai falou para você?
            — Ele, nesse dia, estava dormindo no quarto de hóspede. Ele me levou para lá e falou para eu nunca contar a ninguém o que eu tinha visto. Eu era muito novo para entender o que estava acontecendo. Só depois que eu completasse dezoito anos é que ele me contaria tudo.
            — E contou?
            — Uma semana depois que eu completei dezoito anos, ele me chamou para dar uma volta de carro. Subimos o morro que na minha cidade a gente conhece como morro da torre, e de lá se avistava a cidade inteira. Ele manobrou o carro e ficamos de frente para o amontoado de luzes lá embaixo, ela parecia se recolher para uma noite de sono tranquilo.
            — E o que ele te contou? Qual a relação entre as duas noites de horror que você presenciou?
            — Meu tataravô fez um pacto. Ele estava prestes a perder suas terras por causa do fim da escravidão. Ninguém queria mais trabalhar nas lavouras de café por um preço mais baixo. Então ele, vendo que ia falir, acertou com o demônio que exigia um sacrifício da sua esposa. Ele teria que devorá-la todo dia treze de cada mês. Devorar o que desse conta, o que a barriga aguentasse, mas tinha que devorar o coração. O coração tinha que ser arrancado e devorado. Mas meu tataravô disse que era impossível, como conseguir uma esposa por mês para ser devorada?
            — Então, como?
            — Se a esposa dele se tornasse amante do demônio, que passaria a ter relação carnal com ela todo dia dez de cada mês, mesmo se fosse dia das regras, ela se ressuscitada e se regeneraria sempre que fosse esquartejada para o sacrifício e de quebra permaneceria sempre jovem. Em contrapartida, a maldição iria passar de geração em geração. O primogênito, ao completar trinta e três anos de idade, teria que fazer o sacrifício. Mas antes teria que convencer a sua esposa a ser amante do demônio para que na noite do dia treze ele já tivesse se relacionado com ela.
            — Então é isso. Você é o primogênito. Você fez trinta e três anos semana passada. E hoje é dia treze.
            — Sim, se eu não te matar e comer seu coração, eu vou morrer por não cumprir minha parte na maldição. Eu quero que você pegue suas coisas e corra para o mais longe possível. Ainda há tempo. Eu vou morrer por que eu não quero fazer isso com você. Às três horas da manhã a maldição vai se manifestar. Eu não tive coragem o suficiente para te propor ser amante dele.
            —Não, eu não vou para lugar nenhum. Eu vou ficar aqui com você.
            — Mas eu vou te apunhalar, vou cortar teu peito ao meio, vou arrancar o seu coração.
            — Não faz mal, eu vou me regenerar como sua mãe.
            — Mas o dia dez passou. Agora sou eu que não estou entendendo nada.
            — Agora sou eu que tenho uma história para te contar. O fato de você trabalhar uma noite sim e outra não no hospital, me dá oportunidade de ficar sozinha aqui, sem você, e refletir sobre minha vida.
            — E o que você fez em uma dessas noites?
            — Eu comecei a ficar com medo de envelhecer e você não gostar mais de mim. Então eu murmurei bem alto que eu faria qualquer coisa para nunca envelhecer. Estava com os olhos tristes, fixos no espelho. Aí o dito cujo me apareceu. Fez uma proposta. Se todo dia dez de cada mês eu ficasse com ele, ele me daria juventude para sempre, até o dia que eu viesse a morrer de alguma doença comum aos homens.
            — E você aceitou.
            — Eu hesitei da primeira vez. Resisti ainda uma segunda vez. Mas ele insistiu que isso era necessário. Que você me mataria em breve e que eu me regeneraria depois da morte, voltando a ter a pele mimosa como a de uma criança. Você precisaria um dia que eu aceitasse a proposta dele. Que você mesmo iria um dia me pedir para fazer isso. E como você tem plantão todo dia par, eu aceitei. Antes eu não entendia porque você me pediria isso. Então?
            — Faltam só meia hora para às três da manhã.
            — Estou pronta.
Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 24/11/2018
Reeditado em 24/11/2018
Código do texto: T6510388
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