SDAROT, O IFRIT - CLTS 05

"Um grito, um brado violentíssimo saiu do meio do mar. Assim que botou os pés na terra, ambos puderam vê-lo bem: tratava-se de um Ifrit preto." (Trecho do Livro Das Mil e Uma Noites - Ramo Sírio)

MATAR

Seus olhos vermelhos, injetados de sangue e ódio, pareciam aumentar de tamanho dentro das órbitas enquanto uma baba espessa dependurada na ponta do queixo teimava em não cair. O homem truculento batia com força seu martelo no ofício hediondo e brutal, embora a razão para continuar com aquilo estivesse obsoleta, anulada pela morte da vítima. Os olhos abertos eram como globos de luminárias sem lâmpadas, obscenas e inúteis.

Deixa o martelo cair e ainda sobre o corpo admira o rosto da sua vítima, virado de lado. Passa a mão nos seus cabelos molhados, arrumando-os para que ela parecesse mais com alguém que dorme. A blusa de botão branca e semiaberta servia de moldura caprichosa para um dos seios dela, o outro ele acabara de descobrir. Depois ajeitou o colar que ela usava no pescoço, o mesmo colar arrebentado que usou para esgana-la minutos antes, caído ao lado do corpo, banguela de algumas dezenas de pérolas, que ele repôs uma a uma pacientemente, unindo as pontas com um nó. Agora sim, ela estava pronta.

Levantou-se, foi até o quarto e voltou com uma câmera fotográfica. Em pé sobre o cadáver disparava sua câmera polaroide enquanto as fotos caiam uma após outra, tão freneticamente quanto suas feições se alteravam entre loucura, satisfação e um desejo mórbido.

Depois da seção de fotos, Ricardo buscou no olhar opaco e frio da moça alguma satisfação temporária, para então catar na geladeira qualquer refeição rápida.

Sentado na banqueta da copa abriu o refrigerante, depois de ter montado o simples e bom misto quente que aquecia na sanduicheira. O chiado das bolhas tornava o prazer de abrir a tampa devagar algo único e belo para ele. Instantaneamente seus pensamentos o remeteram ao esganamento de Perla e dos últimos resquícios de vida quando ela tentava, sem forças, empurrar aquele ar preso nas glândulas e na traqueia, emitindo o som fraco e fino, continuo e decrescente tal qual o borbulhar dos gases pressurizados dentro daquela garrafa. A excitação momentânea veio, mas ele a inibiu por enquanto. Quando fosse transferir para ela toda a sua energia vital, deveria estar pronto. Teria de ser especial. Afinal é o êxtase causado pelo sexo que eleva o ser humano a um grau tão alto de transcendência e se ele tivesse que honrar aquela linda alma no purgatório, teria de ser através do seu esperma, jorrando fecundo e enérgico, como chuva numa terra estéril, para fazer crescer a esperança do broto renovado que ele espalharia nela. “As prostitutas nojentas sabem. Todas elas sabem que o sexo é o poder, mas elas usam de forma errada. Rebaixam esse dom especial de Deus e se esquecem que homem e mulher juntos se deitam para encontrar Deus e não para se afastar dele. Eu vou ensiná-las. Vou ensinar todas as meretrizes”.

MORRER

Estou morta? Espero estar. Então o inferno é um beco sujo e fedorento, cheio de caçambas entulhadas de lixo? É onde estou, dentro de uma caçamba. Não sinto minha perna, nem a vejo. Nossa, está dobrada e torcida para cima, quebrava. Se eu tentar me mexer sentirei tanta dor que nem posso imaginar. As dores; essas dores todas arrancadas de mim na força. Primeiro em lágrimas, depois em mordidas e tapas, até o sufocamento. Sabe, quando você sente a mão de um homem te apertar o pescoço, na hora você sente a sua vida ir embora e na hora você vê desaparecer tudo que fazia daquele homem alguém especial pra você. Nesta hora a dor maior é na alma, o que te arrancam é o respeito, o amor, o carinho. Um monstro só cresce e se alimenta de sujeira e escória e todos esses anos juntos. Cada dia, momentos compartilhados, alegrias, tristezas. Cada afago dele, palavras de conforto e momentos: “Pode contar comigo”, sendo direcionados todos naquele braço. A pressão daquela mão, dos dedos, cada centímetro quadrado de força bruta para te machucar e todas as lembranças boas e más ali, se desfazendo ou se transformando no pior que um ser humano pode ser.

Pensando bem não é só minha perna quebrada que não sinto. Estou nua, disso eu sei. A minha calcinha enrolada numa bola e enfiada na minha boca foi o que me matou. As mãos amarradas aqui nas costas dificultaram muito. Você se debate tanto no começo, enquanto ainda tem ar. Depois que o ar rareia tudo vai te deixando junto. O pulmão espremido faz o coração enlouquecer debilmente e nas suas batidas suplicantes e sofridas ele também entende que vai parar. Por fim o pior é perder totalmente a capacidade de respirar. Saber que você puxa ar e recebe a morte dura e fria, a tampa do caixão, a lápide. O gosto do sangue e por fim você se debate e seus músculos se contraem, as articulações ressecam e doem e você para. É o fim, acabou.

Escorre de dentro de mim essa asquerosa lembrança da possessão. Tal qual um demônio, mais evasivo, destruidor, cruel. Sobre mim me paralisou com seu corpo grande e forte, com sua mão na minha boca impediu que eu gritasse. Com seu pênis entrando em mim me comandava, direcionando seu manche, seu leme. Retrocedendo, avançando, cada vez mais violento e satisfeito. Lançava-se sobre mim como uma fera faminta que encontra uma presa fácil depois de muitos dias sem nada. Mas eu não posso compará-lo a qualquer animal. Seria muito triste para o animal ser comparado ao que ele é. Sei que estou morta e minha morte é física, total, irreversível. Porém ele já está morto e seco e no lugar da semente o que vicejou foi o adubo.

CEMITÉRIO

Um Ifrit, chamado Sdarot, sentado sobre a copa de uma grande mangueira, descansava por ali. Os seus pés apoiados sobre os túmulos dos mortos enquanto cuspia carroços das mangas que devorava avidamente. Quando percebeu a presença de um vivo naquela hora de quietude, faltando alguns minutos para o sol nascer, o Ifrit cuidou logo de se esconder e girou nos calcanhares virando um forte redemoinho. As folhas arremessadas por todos os lados atingiam Ricardo nas pernas e no rosto mais intensamente. O Ifrit aproveitou uma brecha em um dos túmulos e entrou ali, como gás que se dissipa pela tubulação. Não imaginava o pobre demônio alado que o que Ricardo procurava iria encontrar justamente dentro do túmulo para o qual ele correu. Picareta, cinzel, marreta e em alguns minutos arrastou a tampa. Dentro do caixão repousava uma jovem loura, pele alva, a maquiagem ainda recente se desfazendo. Porque o necrófilo, assassino e estuprador sabia que ela tinha sido enterrada naquele mesmo dia mais cedo. Tinha ido no enterro, às 18h30 e cumprimentou convidados, deu condolências e chorou junto com a família. Agora estava ali para cobrar pela gentiliza, mas antes que pudesse relar suas mãos na defunta o Ifrit abruptamente se manifestou, precipitando-se numa cataclísmica tormenta relampejante de fogo e enxofre, varrendo os ares com ventos abrasadores, tornando tudo que tocasse em partículas de cinzas que se desmanchavam.

A fúria do poderoso Ifrit não parou até que Ricardo de joelhos implorasse por perdão. O monstro desalmado chorou como uma criança e com os dedos entrelaçados, de joelhos, pediu por sua vida e jurou nunca mais fazer aquelas coisas horríveis que fazia com as prostituas que perseguia. Mas o Ifrit tinha planos que sequer poderiam ser imaginados pelo estuprador e aquele dia que se anunciava com a luz do sol recém-chegado ainda prometia muito.

A ESTRADA

Enquanto acelerava o seu Mustang Shelby GT500 pela autoestrada, a paisagem transformava-se em borrões cada vez mais indistintos e o vento batia em seu rosto e agitava seus cabelos. Tal sensação de liberdade, há muito já não era sentida por Ricardo. Na verdade não se lembrava mesmo o que era isso. Abandonado pelo pai quando nasceu, com uma mãe que o deixava com qualquer um para se divertir com homens em bares e boates por ai, ele não cresceu com grandes esperanças, nem bons sentimentos que pudesse nutrir por alguém.

Sdarot, o Ifrit, agora na forma de um homem de uns 40 anos, elegante, com terno e sapatos italianos impecáveis, ria no banco do passageiro. Ele seguia a estrada com o olhar, acompanhando esses desejos brotando do coração daquele homem e então ele disse:

–Brisez le silence, soufflez l'air. Vous êtes parti si tôt, la pensée vague vous soulève peu. Les éléments vous emportent du lit froid, le cycle sans commencement, sans fin. Le vent, les courants marins. D'où viennent-ils, où vont-ils? Où commencent-ils et où finissent-ils? Vous êtes limité humain, si petit et triste que même ces choses que vous ne comprenez pas.

Ricardo, que não terminou nem o quarto ano do ensino básico, fez aquela cara de quem não estava entendendo nada, mas Sdarot só ria e apontava o dedo para ele, debochando e se divertindo da cara ridicula do ignorante. A viagem seria longa, seguiram caminho por mais 60 quilometros até resolverem parar pra descansar.

Quando Ricardo acordou e se vestiu para tomar o café da manhã e seguir viagem, não encontrou o Ifrit, que deveria estar dormindo na cama ao lado da sua. Isso porque ele não sabia que o Ifrit para poupar suas energias tinha entrado no espelho de uma penteadeira que ali tinha, pois desta forma poderia se conservar intacto das emanações e vibraçãos, das energias e cargas magnéticas, como de todo o resto de coisas poluidoras e toxicas que poderiam deixar doente um Ifrit. Ainda pensando naquelas palavras estranhas ditas pelo Ifrit, Ricardo pensava num jeito de escapar daquela situação. Fugir, correr, despistar. O que poderia fazer ? Afinal aquela criatura era uma entidade sobrenatural, que ele não sabia o que, mas era muito poderosa, isso era.

–Temos que ir, homem. O momento não espera. Se não estivermos lá quando o ônibus chegar, perdermos a oportunidade.

–Mas nem tomei café. Dá um tempo aí, carniça. Fica gelo!

–Grande otário você é! Fica gelo? Carniça? Tem quantos anos? Doze? Compreenda esta máxima que é seguida à risca pelos sábios ao longo dos tempos: Nada espere, nada se alcança parado no mesmo lugar. Pedra que rola não cria musgo, heim? Com esta deve estar familiarizado. Vamos embora. Abasteça o carro, paramos e comemos alguma coisa na estrada.

A VÍTIMA

Quando chegaram no destino, uma rodoviária movimentada no centro, esperaram num ponto estratégico, de onde veriam os passageiros descerem. A mulher que aguardavam desceu. Era uma morena de cabelos negros e longos, vestido comprido, brincos, braceletes, colares e muita bagagem.

–Então, você é Filomena? A Cigana?

–Sim, sou eu. –Se apresentou a mulher. Sdarot beijou-lhe a mão pousando os lábios demoradamente sobre ela e a encarou depois, piscaram um pro outro. Algum segredo sugerido por aquela cumplicidade os unia. Ela sorriu satisfeita e o Ifrit ajudou a carregar as malas.

Ricardo acenava de pé, junto ao Mustang e também se desmanchou num sorriso ainda insatisfeito, mas que ele esperava satisfazer em breve.

Passaram o dia em bares bebendo e conversando. A moça cigana não era prostituta, mas Ricardo não sabia disso, nem sabia que estava sendo enganado, menos ainda que em breve passaria por uma situação daquelas.

Sdarot beijava a cigana e estava tomando certas liberdades com ela, como passar as mãos em seus seios por cima do vestido e estas coisas estavam incomodando Ricardo, que já não disfarçava. Então ele levantou e saiu para fumar um cigarro. Mesmo de longe ele ainda podia ver e ouvir as risadas. Sdarot dizia coisas no ouvido dela e ela ria, depois ela dizia coisas no ouvido dele. Ai eles saíram e foram para um quarto. Naquele bar existiam quartos que os clientes podiam pagar para satisfazer seus desejos íntimos. Isso o deixou agitado demais. Ricardo passou a fumar um cigarro atrás do outro e esperar ansioso para que retornassem. A situação o fez voltar ao passado e lembrar da mãe e dos homens sujos que passavam as mãos por todo o seu corpo. Era uma criança, tinha onze anos e via tudo. Um dia um sujeito bêbado que ele nunca tinha visto entrou em casa louco, gritando e batendo as coisas. No calor da discussão sua mãe esbofeteou o cara, ele ameaçou revidar, ela ainda provocou e por fim os dois começaram a se beijar sem mais nem menos.

No sofá ele estava totalmente invisível para os dois, encolhido no canto e viu o bêbado asqueroso e sujo levantar o vestido curto da mãe e enfiar seu dedo na vagina dela. As nádegas da mãe expostas daquela maneira, com aquele homem desprezível enfiando vários dedos em buracos que ela tinha o fizeram correr pro banheiro e vomitar o pouco que comeu naquele dia. Dormiu no chão frio do banheiro aquela noite, sobre o próprio vomito.

As memórias doloridas o fizeram recuar momentaneamente da intenção de matar aqueles dois. Ele ainda não sabia como daria conta do Ifrit, mas da cigana ele daria. Não estava entendendo. O acordo feito com o Ifrit era de que os dois convenceriam a tal cigana, uma garota de programa contratada por Sdarot, a sair com eles e terem uma noite agradável os três, para depois Ricardo se divertir de verdade com ela, entendem? Mas ai as coisas não acontecem como têm de ser e o cara pega e leva o prêmio sozinho para o quarto. E ele faria o que?

Então ele foi até o quarto, já passaram 30 minutos e nem sabia se ainda estavam lá. Quando entrou viu só a cigana. Ela olhou pra ele e veio em sua direção, estranha, tão provocante, sensual. Segurou seu rosto com as mãos e deu um beijo nele. Ricardo desesperou-se e a jogou na cama. Depois começou a bater nela, a espanca-la, com socos no rosto. Mas a cigana deitada não reagia. Nem gritava ou chorava. Ele achou estranho. Tinha se virado para procurar algo e ataca-la, mas ai percebeu que os socos pareceram não surtir efeito. Ainda assim foi mais uma vez pra cima dela, com um sarrafo que achou dentro do guarda-roupas. Quando desferiu o golpe a cigana agarrou o pedaço de madeira e com ele malhou a cara de Ricardo tanto e com tanta força que logo uma massa desfigurada de carne tomou o seu lugar. Ai ela o segurou pelo tronco e o ergueu para depois o arremessar com força no chão e sobre ele passou a lhe socar todo o corpo. Finalmente com suas próprias mãos a cigana arrancou o pênis do homem, o virou facilmente com as mãos, como se ele fosse um boneco e introduziu o negócio no cu dele. Por fim ela enfiou um punhal com cabo de ouro cravejado de esmeraldas no seu coração e depois o arrancou e comeu.

O VINGADOR

Assim foi feito e terminado o ato. Sdarot, possuindo a cigana, teve a sua vingança contra aquele biltre miserável que ousou atrapalhar seu banquete de deliciosas mangas, invadindo o cemitério para violar um corpo morto.

A linda morena que mesmo sendo instrumento de toda aquela barbárie não se lembrou de nada, confiava em Sdarot e foi gentil com ele. Eles se encontraram depois outras vezes na casa dela. O Ifrit, mesmo detestando o gênero humano, pois assim são os Ifrits, permitiu que ela o adulasse e até lhe lesse as mãos. Ela tinha a resposta, que foi nenhuma. Sem futuro, sem passado. Ela sabia, eles riram. Ela perguntou se ele queria mais uma xícara de café.

Tradução da fala do Ifrit no capítulo: A ESTRADA

–Rompe o silêncio, sopra o ar. Esmoreces tão cedo, pensamento vago te eleva pouco. Os elementos te carregam do leito frio, no ciclo sem começo, sem fim. O vento, as correntes marinhas. De onde vêm, pra onde vão? Onde começam, onde acabam? És limitado humano, tão pequeno e triste que nem essas coisas compreendes.

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