O Taxidermista
Sempre encarei a taxidermia como um dom elevado e superior a qualquer representação artística ou tentativa de criação de material de estudo biológico. “É mais do que arte”, meu velho mentor e pai costumava dizer por aí. Foi com ele que eu aprendi a desenvolver esse dom que brotou em minha alma quando eu ainda possuía minha primeira dentição. Era admirável! Era como desafiar os deuses da morte para um duelo debochado.
Ainda me lembro do primeiro animal que eu empalhei: A Águia Real. Meu pai a salvara de uma armadilha e fizera de tudo para que a pobrezinha sobrevivesse, mas ela não resistiu e morreu diante de meus olhos mergulhados em tristeza por ver a vida se esvair daquela criatura moribunda. Foi naquele momento que o dom despertou em mim. Meu pai percebera e prontamente me tomou como seu jovem aprendiz taxidermista. Pouco tempo depois a águia estava viva em nossa sala de estar, próxima à lareira e empoleirada em um magnifico pedestal dourado onde ela seria eternamente majestosa.
Não demorou muito pra eu ser capaz de dominar por completo meu dom inato, e mal pude perceber que eu havia passado boa parte da minha vida tentando eternizar de forma sublime aqueles animais que não mais respiravam. Logo não era mais um simples hobbie, pois como taxidermista passei a sustentar minha própria vida financeira.
Quando meu pai faleceu e foi sepultado em um cemitério, eu senti que eu deveria continuar com o seu legado. E minha esposa, Karen, sempre me apoiou e demonstrou certa admiração pelo meu trabalho, o que só fez o meu amor por ela crescer ainda mais durante o tempo em que ficamos juntos. Era comum encontrá-la debruçada sobre minha mesa aonde eu retirava os órgãos dos animais para enxertar palha. Todos os meus movimentos eram acompanhados por seu sorriso.
Mas meu amor por Karen não foi suficiente para salvar-lhe da misteriosa enfermidade que crescera dentro de seu corpo. Ela morreu misteriosamente como sugere o ciclo nunca explicado de nossas vidas neste plano. Os deuses da morte debocharam de mim... Foi durante uma madrugada. Eu estava aplicando-lhe o remédio para amenizar as dores de seu corpo fragilizado quando os olhos dela fitaram os meus pela última vez antes de sorrir para mim. Ela morreu perante meus olhos como a águia de minhas antigas lembranças. Minha primeira reação foi negar o que acontecera e me afugentar nos copos de uísque. E foi enquanto eu bebia que essa mórbida ideia atravessou minha mente. Meu dom gritava em meu cerne: Era hora de elevar o degrau do legado deixado por meu mentor.
Com o corpo enrijecido e gelado de Karen em meus braços, eu segui rumo a minha mesa de trabalho. Eu estava cercado pelas estátuas dos animais que eu empalhei ao longo de minha vida, incluindo o da majestosa águia. Eu sempre fizera de conta que eles eram a minha plateia e ali não seria diferente. Preparei o cadáver de minha esposa e realizei todo o processo de embalsamento. Evitei olhar para o rosto de Karen durante o processo de retirada de seus órgãos internos para o enxerto. Empenhei-me de forma sobre-humana e consegui realizar em pouco tempo um feito de dias. Depois de algumas horas meu trabalho estava quase terminado. Tratei de colocar o sorriso encantador de Karen em seu semblante contente e consegui recriar com sucesso a sua expressão de admiração pelo meu dom. “É mais do que arte doce Karen, meu eterno amor” Eu sussurrava para ela enquanto a posicionava debruçada sobre a minha mesa. Seu sorriso me conduzia, e eu não poderia mais viver sem ele.
Eu eternizei a beleza de minha amada. Eu venci o desafio que os deuses da morte impuseram. Mais tarde, sob o efeito do curtimento, o corpo de Karen expressava perfeitamente o contentamento que ela possuiu em vida para com o meu sustento. Eu alcançara um patamar completamente à frente de meu falecido pai.
E mesmo depois do efeito do álcool ter desaparecido de meu corpo eu ainda sentia orgulho de minha obra prima. Agora Karen sempre está comigo, com seu sorriso único. Eu converso com ela, e em minha mente, sua doce voz me elogia com sussurros. “É mais do que arte meu querido”, ela diz pra mim todas as noites...
Eu venci o duelo. Eu empalhei um ser humano...
FIM
(Guilherme Henrique)>>Voltei!