Marie Ann II

-Senhor Peter Boulard, eu presumo – disse-me o lacaio de vestes rústicas e rosto marcado ao abrir a porta.

Não restou nenhuma dúvida sobre o abandono do casarão assim que vi o interior do salão de entrada. Uns poucos candelabros iluminavam a imensa estrutura que, mesmo na penumbra se mostrava descuidada. Não sei dizer exatamente o que senti vendo aquilo. Não conheci o interior da casa quando aqui estive pela ultima vez. Mas tudo indicava um lugar de luxo, requinte e bom gosto. Não era isto que se apresentava aos meus olhos cansados.

Confirmei meu nome com um meneio de cabeça e entreguei-lhe meu chapéu e minha capa.

-Estou sendo esperado, por favor, avise seu patrão.

O criado me conduziu a um salão lateral que seguramente fez vezes de gabinete de trabalho em algum passado remoto. Estava em bem melhores condições e parecia ter sido preparado para me receber. Sentei-me em um dos sofás que, apesar de limpo, apresentava muitas marcas e puídos que denunciavam o passar dos anos e a decadência. Mesmo assim, sentindo um ar abafado e com cheiro de mofo, sinais evidentes do abandono, percebi em algum momento fugaz um aroma que me pareceu familiar, algo sutil, leve, mas que me trouxe vivamente a imagem do rosto de Marie Ann.

Pensei no passado e no que teria acontecido com ela. Teria casado? Tido filhos? Ainda vivia? O que, afinal, teria acontecido com sua família que antes era próspera e de bom nome? Minhas divagações foram interrompidas pelo som de passos que se aproximavam. Em alguns instantes uma figura alta e esguia entrou no aposento.

De início, a parca luz dos candelabros não me permitiu ver claramente a fisionomia da pessoa que entrava. Ele veio direto a mim e me estendeu a mão. Assim, bem de perto, pude ver o rosto de meu anfitrião com clareza. Era um clérigo. Algo familiar existia no seu rosto. Não foram apenas os olhos azuis daquele senhor de pouco mais de quarenta anos que me deu tal impressão, o jeito de olhar e a voz pareciam me transportar para um tempo passado.

Após as apresentações, apertamos as mãos e ele me convidou a sentar junto à lareira que crepitava com seus últimos suspiros.

-Agradeço muito ter atendido ao meu chamado, senhor Peter. Confesso que não o esperava senão amanhã, mas fico feliz que tenha chegado antes.

-Para falar a verdade, padre Edward ... – fiz uma breve pausa – devo chama-lo assim?

-Como queira, mas prefiro que me chame apenas de Edward.

-Pois bem, Edward, como eu ia dizendo, não sei bem o que me fez vir até aqui nesta noite. Fiquei muito curioso, é verdade, com a sua carta. Mas tantos anos se passaram que acabei por ficar mais intrigado do que qualquer outra coisa. Conheci Marie Ann ainda muito jovem e tivemos pouco tempo juntos... acho que de algum modo o destino acabou por traçar rumos diferentes para nossas vidas. Portanto, fiquei muito surpreso ao receber a carta.

-Sem dúvidas, o senhor viveu uma vida sem Marie Ann, mas o mesmo não pode ser dito em relação a ela, meu senhor.

-Como assim? Nosso breve relacionamento ocorreu há mais de quarenta anos... Onde está Marie Ann? – Perguntei, sentindo-me um tanto desconfortável.

-Ainda não tenho condições de responder a esta pergunta com total certeza...

-Mas então, entendo menos ainda. Pelo que entendi da missiva, o senhor queria que eu viesse prestar algum tipo de ajuda. Agora, com esta notícia, não vejo razão.

-Esta história começou para mim dois anos atrás. Chamaram-me na abadia de Northpen, onde prestava meus serviços religiosos desde que fui ordenado. O caso parecia ser uma ocorrência comum de possessão. Não de um ente, uma pessoa, mas de uma propriedade. Não é incomum. Aliás, temo dizer que provavelmente é o que mais acontece. Espíritos atormentados muitas vezes têm dificuldades de se desfazerem das ligações com sua vida terrena. Seguindo as orientações de meus superiores, rumei para o condado de westhfort para me inteirar da situação. Neste tipo de caso quanto mais informações tivermos sobre a família e a propriedade, mais municiados estaremos para darmos cabo da tarefa.

-Entendo. O que o senhor descobriu?

-Bem, uma série longa de acontecimentos acabou por trazer desgraça à família Rotschild.

-Como assim? A família Rotchild era próspera, não era nobre, isto é certo, mas pertencia à burguesia ascendente do condado.

-Veja bem, o senhor Rotchild não tinha outros filhos, apenas Marie Ann. Sua esposa sofreu muito no parto e a partir de então ficou seca, não poderia mais dar à luz. O senhor Rotchild ficou desolado, mas, mesmo sendo um homem muito duro e rígido não abandonou a mulher, ele a amava verdadeiramente. Decidiu, então, preparar a filha para que prosseguisse de algum modo o legado da família. Providenciou os melhores tutores, os melhores professores foram colocados à disposição da moça para que tivesse a educação mais adequada de modo a ficar preparada para dar continuidade ao trabalho do pai. Contudo, ocorreu uma desgraça com a jovem. Quando tinha pouco mais de dezessete anos, a moça passou a apresentar sintomas de uma estranha e inesperada enfermidade.

-Como assim? Enfermidade? – interrompi, afoito – Então não estamos falando da mesma pessoa, Marie Ann era muito saudável quando a conheci...

-Calma, senhor Peter, deixe-me concluir. Como estava dizendo, vários sintomas estranhos surgiram... intolerância aos alimentos, desmaios, enjoos. A moça, senhor Peter, estava grávida.

Senti um aperto muito forte no peito quando ouvi aquilo. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Não me lembrava exatamente qual a idade de Marie Ann quando a conheci, mas tinha quase certeza que era mais ou menos dezessete anos, a idade ideal para as moças acharem um bom casamento.

Mesmo percebendo meu desconforto, Edward prosseguiu.

-Foi um golpe muito duro para o pai, ele era muito religioso e frequentava a igreja semanalmente. Na época os negócios com carvão ainda estavam indo relativamente bem, mas depois deste fatídico acontecimento a derrocada se iniciou. O senhor Rotchild passou a abusar da bebida, descuidou dos negócios, mas não foi só isto.

-Mas e Marie Ann, o que aconteceu com ela?

-A moça foi mandada para um convento distante, no norte da Irlanda, região de Leterkenny, junto às Blue Stack mountains, para ter o filho longe das vistas dos vizinhos e da própria família. Madame Rotschild, que já tinha uma saúde frágil, definhou rapidamente, não suportava a separação da filha. O senhor Rotschild, contudo, não cedeu aos seus apelos. Certa manhã, poucos meses após a partida de Marie Ann, a pobre senhora Rotschild amanheceu morta.

-Meu Deus! E o pai de Marie Ann, o que aconteceu com ele?

-O senhor Rotschild entregou-se ainda mais à bebida. Seus negócios começaram a ruir quase que ao mesmo tempo. Não só pelo seu descuido ou desregramento, novos comerciantes do ramo de carvão se instalaram na cidade e tomaram o mercado com facilidade. Ele ficou arruinado. Enforcou-se tempos depois na estrebaria que fica atrás da casa.

Fiquei estarrecido com o que o jovem Edward me relatava. Tudo parecia ter acontecido muito rapidamente... e tudo estava interligado.

-E Marie Ann, nesta época, ainda estava na Irlanda? – perguntei, aflito.

-Sim, esta tenebrosa sequência de fatos aconteceu poucos meses após a sua partida. Ela só ficou sabendo do acontecido quando retornou com o filho nos braços.

-Mas então ela retornou com a criança? Não entendo.

-Não era para ser assim. O senhor Rotschild determinou que a criança fosse encaminhada para adoção. Uma casa de órfãos. Mas Marie Ann fugiu do convento levando o filho nos braços. Ninguém sabe como ela conseguiu chegar até aqui, mas o fato é que ela retornou, e trouxe o menino.

-E que fim teve esta criança?

-Esta foi outra história triste.

Continua ...

O S Berquó
Enviado por O S Berquó em 14/11/2018
Reeditado em 14/11/2018
Código do texto: T6502595
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