DOIS IRMÃOS
1)
Quando acordei naquela manhã o único desejo que nutria era o de que o dia passasse depressa. O motivo da minha inquietação respondia pelo compromisso firmado semanas antes com o meu irmão, empenho esse no qual partiríamos numa aventura através de um acampamento noturno na vegetação espessa na região serrana.
Ele me dizia que aos treze anos um mundo novo se abriria. Uma esfera de possibilidades num caminho que começava a se pavimentar rumo à vida adulta. Ele traçava linhas de experiência em seu discurso, embora apenas três anos a mais de diferença nos separasse.
Como se minha vontade fosse capaz de mover os ponteiros do tempo, as horas caminharam em ritmo acelerado, de modo que, quando o manto escuro da noite nos brindou com sua presença, já estávamos em meio à floresta, a qual, a bem da verdade, distava apenas duas horas de nosso bairro.
Com as barracas montadas numa pequena clareira, atiçávamos o fogo com gravetos que, vez ou outra, crepitavam lançando um som diferente ao ambiente selvagem à nossa volta. Conversávamos amenidades quando Edgar olhou desconfiado para mim, lançando-me um pergunta acusadora.
- Rubinho, o que é isso aí ao lado da sua mochila?
Ele se referia à velha garrucha que há tempos eu havia descoberto nas caixas empoeiradas no porão de casa.
- É apenas para nossa proteção, Edgar.
- E você sabe usar isso, garoto?
- Bom, se precisar, descobriremos juntos.
A noite mostrava-se extremamente escura, as nuvens tomavam conta do firmamento. Um cenário que permaneceu imutável, pelo menos até cairmos no sono. Digo isso porque fui despertado por um som aterrador, algo que nem meus piores pesadelos foram capazes de reproduzir. Por reflexo, alcancei a lanterna ao meu lado, mas não somente ela, empunhei também a velha arma.
- Edgar! Edgar!
Gritei pelo meu irmão, mas não obtive resposta. Temeroso, coloquei-me de pé e lancei o olhar luminoso do objeto em minha mão direita rumo ao exterior da barraca. Perscrutei com o facho de luz o perímetro à minha frente.
- Edgar! Edgar! Onde está você?
Nenhuma resposta me alcançou.
Sua barraca estava a uns dez metros de onde eu estava. Caminhei até lá com cautela. A luminosidade artificial revelava um terreno remexido conforme eu avançava. Naquela altura, a lanterna recebia uma ajuda de luxo do céu, as nuvens, que até instantes antes dominavam o espaço aberto, foram substituídas por um tapete estrelado, manto esse coroado pela presença de um plenilúnio marcante.
Quando cheguei ao local onde deveria estar o acampamento de meu irmão, fui surpreendido pela dolorosa verdade de que algo terrível acontecera: a barraca estava totalmente destruída e ele não estava lá, não da maneira que deveria estar. Ao invés dos contornos da pessoa que me inspirava, tudo que encontrei foram retalhos de pele ensanguentada por todo o lado.
Gritei com toda a força dos pulmões. Eu torcia para que meu clamor em desespero encontrasse uma resposta. Mas se eu pudesse adivinhar o tipo de retorno que me aguardava, jamais teria me atrevido a bradar por auxílio.
O estrondo grave em forma de lamento que me tirara do sono profundo retornava com mais intensidade, e só então pude compreender que aquele som era algo produzido por um ser vivo. O rumor que reverberava nas sombras da selva de certo pertencia a algo demoníaco, pois aqueles ganidos que misturavam dor, lamento e raiva não poderiam pertencer a algo desse plano.
Como um menino que eu era, embora tentasse me convencer ao contrário, comecei a chorar em desespero porque eu sabia que o dono daquela voz se aproximava. E eu não poderia estar mais certo, uma vez que mal pude terminar de formular o triste pensamento fui confrontado por órbitas rubras de pura maldade. Na hora imaginei o melancólico fim daquele que amava, destino esse que flertava agora comigo.
A criatura, de negra pelagem, me oferecia um sorriso aguçado, uma afronta moldada em dentes de alva ameaça. Ela balançava os braços armados por grifos mortais. Apontei a arma e atirei. Mas ela saltou em minha direção, cravando a mandíbula em meu ombro. Fui invadido por uma sensação de ardência extrema, como se meu corpo estivesse sendo incinerado.
O monstro me soltou, de modo que fui ao chão. Eu sabia que iria morrer, mas não queria ser levado por um demônio como aquele. E, antes que um novo ataque fosse proposto, mirei o cano da garrucha na minha cabeça e enverguei o gatilho. Nada mais vi além de um clarão azul e cintilante.
2)
Acordei com a lembrança azul em minha mente. Como se mil flashes de máquinas fotográficas ofuscassem minha visão com um cegante clarão. Tentei me mover, mas cada músculo do meu corpo doía de modo inenarrável.
- Sr. Rubens! Sr. Rubens, o senhor acordou! Calma não tente se levantar.
O rapaz de vestes brancas se dirigia a mim. Os aparelhos e luzes ao meu redor indicavam com toda a certeza de que eu estava num hospital. Constatação que me fez perceber os tubos conectados ao meu corpo.
Eu tentava me erguer, o rapaz me amparava.
- Calma, senhor Rubens. Eu te ajudo.
Recostado na cabeceira da cama, procurei de todo modo manter a coerência e entender a situação. Foi quando percebi que havia algo errado. Minhas mãos! Minhas mãos não eram minhas!
- Meu Deus! O que está havendo aqui?!? Me ajude, moço, por favor!
- Acalme-se senhor Rubens. Já acionei o auxílio, o médico de plantão logo estará aqui.
- Um espelho, moço. Por favor, um espelho, me arrume um espelho.
Sem entender minha aflição, o enfermeiro olhou ao redor em busca de algo que pudesse aplacar a inquietação que me assolava. Logo, ele retornou com pequeno espelho de bolso.
- Tome, senhor Rubens. Acho que isso pode lhe ajudar.
Tomei o objeto da mão do rapaz e, dominado pelo desespero, gritei. A imagem refletida não era a minha. O rosto marcado por sulcos profundos de um velho me encarava.
- O que houve? O que há de errado, senhor Rubens?
- Esse não sou eu. Não sou eu! Eu tenho treze anos, moço. Esse no espelho não sou eu, esse é um velho. Um velho!
- Tenha calma, o senhor esteve em coma por muito tempo.
Enquanto o enfermeiro falava, um grupo de três médicos adentrava pela sala e através da confusão de espanto dos profissionais, explicações, exames e toda sorte de agitação, entendi que eu estava internado há muito, muito tempo, vitimado por um ferimento causado por arma de fogo e agora, por mais incrível que pudesse ser, eu era um septuagenário. Alguém que a morte não quis levar.
Mas as surpresas não pararam por aí. Indaguei acerca do meu irmão, se haviam investigado a morte dele, no entanto, da maneira mais dura que havia, fui informado que nunca tive um. E que, na verdade, meus pais foram a única família que tinham notícia, mas eles já haviam falecido há muitos anos.
Mesmo tomado pelo horror daquelas palavras, tentei argumentar a minha versão, da morte do meu irmão, da fera monstruosa, do disparo em desespero.
Eles replicaram dizendo que aquilo tudo não passava de uma ilusão causada pela mente dormente. Eu havia sido vítima de uma bala perdida, atendido num pronto socorro em estado gravíssimo e desde então internado naquele hospital militar graças à carreira do meu finado pai. Se a lei permitisse, já teriam encerrado essa vida de sofrimento há tempos.
Era difícil acreditar naquilo tudo, mas parecia mais plausível crer naquela versão. Mesmo que isso significasse abrir mão da vida que eu lembrava.
Por mais alguns dias permaneci internado. Mas não tardou para que eu fosse liberado e retornasse para a casa que era dos meus pais.
As ruas haviam mudado, vi coisas e atitudes que imaginei existir apenas em prospecções futuristas. Quando a ambulância me deixou na residência, os enfermeiros que me acompanhavam mal podiam crer que eu conseguia me movimentar com a ajuda de muletas. Eles diziam que as décadas de coma deveriam ter acabado com qualquer chance de locomoção. Um cuidadora, bancada com a minha aposentadoria – como isso me soava estranho – chegaria para me auxiliar.
Postado em meu antigo quarto, permaneci em silêncio divagando sobre lembranças turvas que infestavam minha mente. Logo, a noite caiu sem que eu me dessa conta. A moça que deveria ter aparecido não havia dado sinais de presença. Havia uma espécie de telefone portátil ao meu lado, mas eu não fazia a menor ideia de como aquilo funcionava.
Levantei e caminhei pela casa com a ajuda dos suportes metálicos. Cheguei à sala no exato momento em que batidas secas reverberavam pela folha amadeirada da porta.
Atendi ao chamado e fui surpreendido por uma visão aterradora: aquela pessoa que surgia pelo vão escancarado poderia ter mudado, poderia exibir os contornos da velhice, embora muito mais amenos que os meus, mas ainda exibia a mesma expressão, o mesmo olhar.
- Edgar? Edgar, é você?
- Sou eu meu irmão.
- Mas, mas como isso é possível?
- Estive esperando por você todos esses anos, meu irmão.
- Mas eu não tenho irmão, Edgar.
- Você não se lembra? Nós de fato não somos irmãos de sangue, mas somos unidos pela amizade, algo tão forte quanto os laços fraternos.
- Minha mente está confusa, a lembrança que tinha era a de um irmão. Mas isso endossa a informação do hospital. Mas por que você não me procurou?
- Eu não podia Rubinho, mas fiquei cuidando de você de longe. Eu que te socorri, te carreguei da mata, chamei a emergência, fiz parecer um incidente, lembra-se que teus pais não sabiam do acampamento? Era o melhor a ser feito diante do que planejava para você.
- Então tudo foi verdade. A floresta, aquele demônio...você estava morto, Edgar. Morto!
- Não exatamente, Rubinho...
Afastando as cortinas, Edgar inspirou o ar noturno, olhando melancolicamente para o céu.
- Eu só queria lhe dar o presente que recebi na sua idade. Até tentei, por isso você sobreviveu ao tiro direto no cérebro, por isso resistiu tantos anos em coma, por isso consegue andar. Meu veneno está em você Rubinho.
Enquanto eu estava digerindo a informação recém revelada, Edgar com o olhar petrificado começava a arrancar a própria pele com as unhas. Nacos ensanguentados manchavam o assoalho como uma chuva mórbida. A mesma cena que percebi na barraca destruída.
Do corpo em carne viva começaram a brotar tufos enegrecidos e espessos, o velho rosto de Edgar ganhava novos contornos, o som de ossos triturados invadia meus ouvidos, era como se o seu corpo estivesse sendo mastigado por uma força invisível.
Era uma visão aterradora, mas que ficaria ainda pior. Entre rosnados e urros, uma voz grave se dirigia a mim:
- Vamos terminar o que começamos, meu irmão.
Mas antes que o demônio pudesse se projetar em minha direção, uma voz doce surgia pelo vão da porta.
- Senhor Rubens, está tudo bem aí?
Era a cuidadora. Atrasada. Um erro que ela não teria como lamentar.
O monstro saltou sobre a jovem. Suas garras curvas abriam enormes sulcos em seu tórax. Ela gritava. Mas seus gritos não alcançariam ajuda, pois contra aquilo não havia solução.
Enquanto Edgar separava a cabeça do corpo da jovem com uma só mordida, tratei de correr, da melhor maneira que minha capacidade corpórea e as muletas permitiam. Eu tentava chegar ao antigo quarto dos meus pais. Sempre havia uma arma carregada no criado mudo.
E, providencialmente, ela estava lá. Um revólver calibre .38. As balas estavam no tambor. Eu sabia o que Edgar pretendia, eu não me tornaria aquilo. Não seria um assassino demoníaco. Nunca!
Não tardou para a criatura que eu chamava de irmão surgisse na entrada do quarto. A boca escancarada mostrava-se inundada com o vermelho pecaminoso que instantes antes corria nas veias da enfermeira. Aquele vão hediondo indicava um destino tortuoso para mim.
Engatilhei o revólver. Despejaria mais uma vez o chumbo em meu próprio cérebro. Se eu não morresse, que ficasse para sempre em coma num mundo irreal. Tendo a convicção a me guiar, dessa vez não teria erro. Eu sentia o sangue ferver. Meus movimentos estavam cada vez mais incisivos, ao ponto de tornar meu corpo mais forte e os movimentos mais leves.
A besta saltou sobre mim, mas nenhum disparo se fez ouvir. Assim como Edgar sempre soube, no último instante eu também entendi. Aquela sensação era boa demais para ser ignorada. Eu queria todo aquele poder para mim.
Ainda naquela noite, muitas outras vidas foram ceifadas, pois os dois irmãos estavam novamente unidos e livres, e com a eternidade a nos acompanhar.