Marie Ann

Era início de inverno e um vento frio dominava a paisagem. Meu cavalo trotava arisco para atravessar a relva alta que circundava o bosque perto de nosso destino. Ainda tínhamos um pouco de luz, mas a noite se aproximava rapidamente, de modo que usei o chicote para apressar o passo na esperança de chegar ao casarão dos Rotschild antes de a noite dominar o horizonte.

Não sabia o que me esperava naquele lugar esquecido. Nem tão esquecido assim, na verdade. Mas foi há muito tempo que tudo aconteceu. Hoje sou um velho. Mas vivi. Ah, vivi! E justamente por isto não sabia bem o porquê de estar naquele lugar. Olhando para o passado, às vezes com o coração apertado, às vezes com o coração seco, não precisava esforçar minha memória para sentir o que senti. Nunca mais experimentei tal sentimento. Mesmo assim, não olhei para trás quando parti. E, agora, mais de quarenta anos passados, encontro-me quase às portas do único lugar em que realmente fui feliz.

Conheci Marie Ann ainda muito jovem. Recém-saído da academia naval, com pouco mais de vinte anos, ainda não tinha um rumo traçado para meu futuro. Assim eu pensava quando voltei ao condado de Versbuth. Minha família, porém, tinha outros planos e eu só fui inteirado deles meses após o meu retorno.

Neste meio tempo, para minha felicidade, tive a sorte de, em um de meus passeios pela feira da aldeia, me deparar com o mais lindo par de olhos que jamais vira em toda a minha vida. Era de um azul turquesa, claro, límpido... e mesmo assim, profundo. Mas ia além. Mais, muito mais do que a cor daqueles lindos olhos, havia o olhar. Um olhar calmo, tímido, fugidio, desafiador. E, para meu total desespero... ou felicidade, não sei, não eram apenas os olhos daquele azul envolvente, ou o olhar recatado e malicioso, havia também um sorriso... o sorriso mais doce, sincero e ameaçador que já pude contemplar. Jamais me esqueci daquela manhã ensolarada de final de primavera em que vi Marie Ann pela primeira vez.

Não sei dizer de onde tirei a impetuosidade que me fez ir até ela, mas agradeço com sinceridade. Apresentei-me com a fidalguia e o respeito que o momento requeria e perguntei o nome da moça. Não foi ela, porém, quem respondeu minha indagação. Repentinamente, uma senhora, vinda não sei de onde, que depois descobri ser serviçal da casa, pegou-a pela mão e disse em tom grave: “é Marie Ann Rotschild, senhor, bom dia”. E saiu apressada, levando-a pela mão. Não preciso dizer que passei a ser frequentador assíduo do mercado. Esperei. Ela teria que voltar lá algum dia. E voltou.

Minha paciência foi premiada depois de uma semana. Era mais uma bela manhã de sol ameno e brisa suave, Marie Ann surgiu sob a marquise do almofariz, acompanhada de sua guardiã. Refreei meu ímpeto e aguardei até que a pequena megera de touca cinza claro se afastasse para conferir de perto e com apalpadelas ligeiras a qualidade das verduras de uma barraca do outro lado da rua. Aproveitei a oportunidade e me aproximei olhando para os lados como se estivesse em busca de alguma mercadoria. Apresentei-me novamente e começamos a conversar. A moça tinha uma voz suave, quase sussurrada, que tive que me esforçar para ouvir em meio ao burburinho da feira. Em poucos instantes, porém, Gertrudes, este era o nome da acompanhante, chegou até nós. Desta vez, contudo, não arrancou Marie Ann de mim. Cumprimentei-a com cordialidade e me apresentei. O sorriso de Gertrudes denunciou o respeito que minha família e seu bom nome gozavam na região. Caminhamos lado a lado por alguns minutos conversando sobre amenidades até que tivemos que nos separar. Um cocheiro que estava no final da linha das barracas as esperava para levá-las de volta à propriedade dos Rotschild.

E assim foi pelos próximos dias e semanas. Com o passar do tempo, nossa proximidade foi aumentando. Eu estava encantado... ela também. Tínhamos enormes dificuldades em nos livrarmos de Gertrudes, sempre por perto, sempre vigilante. Até que Marie Ann me contou de seu refúgio secreto. Em meio ao bosque que circunda a sede da propriedade de sua família, existia uma pequena elevação de pedras que continha uma pequena gruta. E era neste lugar isolado que ela , desde menina, costumava se refugiar em busca de momentos de solidão.

Nossos encontros passaram a se tornar frequentes naquele pequeno paraíso. E nossa intimidade foi aumentando no mesmo grau em que se agigantava nossa paixão. Foi lá que senti pela primeira vez o calor úmido dos lábios dela. E foi lá que tivemos a nossa primeira e inesquecível tarde de amor. Nunca poderei esquecer-me daqueles momentos mágicos, da maciez de sua pele, do sabor dos seus beijos, da quentura firme e macia dos seus seios alvos. Amei Marie Ann com todas as forças do meu coração. Mais tarde, depois do amor, refeitos de nossa embriaguez de carinhos, tive que ir embora.

Nunca fui de cantar, mas lembro-me que soltei a voz, cantei quase todo o tempo de retorno em cima de meu cavalo. Quando cheguei a casa, porém, a felicidade que estava estampada em meu rosto contrastou enormemente com o semblante de minha mãe. Senti na hora que algo muito errado estava acontecendo. Sem muitas explicações ela me levou até os aposentos íntimos onde meu pai estendido sobre a cama, banhado em suor, tentava parar de tossir. Ele, assim que me viu, fez sinal para que me aproximasse. Sentei-me na beirada da cama ao seu lado de olhos arregalados. Jamais tinha visto meu pai em tal condição de fragilidade, aquilo não combinava com ele.

Naquela fatídica tarde meu pai passou-me uma dura e inesperada missão. Deveria embarcar para Londres a fim de conhecer minha noiva, Helen Bratsborow, filha do barão Ernest Asrth Bratsborow. Fiquei lívido. Mas, diante da condição frágil daquele homem a minha frente, decidi não protestar naquele momento. Saímos do quarto e fomos para o grande salão. Minha mãe caminhava calada atrás de mim.

-O que é que está acontecendo, mamãe? O que o papai tem? Nunca o vi deste jeito.

-Ele esconde bem, mas já faz tempo que está doente.

-Como assim? Vocês nunca me falaram nada.

-Seu pai não queria que soubesse. Aliás, não queria que ninguém soubesse o que está se passando com ele. Você sabe, Richard sempre detestou fragilidades em um homem.

-E esta história de viajar para Londres, noivado? Não pode ser. Ele nunca me falou nada.

-Ora, Peter, seu pai está tratando deste assunto desde que você foi para a academia.

Minha mãe, a senhora de Artnde Hall, sempre fez muito bem o seu papel de submissa para contentar meu pai, mas era uma mulher forte e determinada que comandava as coisas da casa e da família com mãos de ferro caso necessário. Parecia ser o caso.

Na hora seguinte fiquei estupefato ao saber que nossos negócios estavam quase arruinados. Pouca esperança havia de contornar a situação. E meu pai já sabia do rumo dos acontecimentos há bastante tempo, de modo que começou a alinhavar minha união com Helen Bratsborow prevendo a necessidade. Ainda tínhamos um bom nome e este era seu maior trunfo. Aliados aos Bratsborow, de Londres, novos caminhos, novas perspectivas de negócios se abririam com toda a certeza. Além do mais, havia um dote polpudo de vários milhares de libras.

Madame Boulard, minha mãe, foi tão direta, enfática e dura que não parecia restar qualquer opção ou saída. Fiquei desolado naquela noite. Aguardei insone a chegada da alvorada. Acabei por subir até as ameias para aguardar a chegada do dia. Meu coração estava apertado. Sabia que não poderia deixar de atender ao chamado da família, que tuto aquilo que agora podia ver olhando para todos os lados, quase a perder de vista, as terras dos Boulard, tudo estava ameaçado. Mas havia Marie Ann. Minha mente fervilhava em busca de opções, de algum fugidio e inesperado modo de agir de modo diferente, salvar minha família e ficar com minha pequena de olhos azuis.

Fui aos estábulos e ordenei que preparassem meu cavalo. Precisava falar com Ann, mesmo que não soubesse exatamente o que iria dizer ou que atitude tomaria depois disto. Galopei direto para a propriedade da família dela. Meia hora depois eu me acercava da imponente construção em estilo clássico e passei a ser mais cauteloso. Nunca tinha estado lá, mas sabia, pelas descrições que ela me fez, que seu quarto era o último do lado esquerdo, no segundo andar. Joguei alguns pedregulhos até que ela apareceu e eu acenei.

Continua...

O S Berquó
Enviado por O S Berquó em 06/11/2018
Reeditado em 06/11/2018
Código do texto: T6495941
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