William, bispo de Paris, como chefe da Santa Inquisição para todo o reino de França, sabia que difílmente o papa liberaria uma investigação contra a Ordem do Templo por vontade própria. Mas agora, com a denúncia em mãos, assinada por William de Nogaret, ele não tinha muita certeza do que devia fazer. Ela o colocava em um impasse. Abriria de imediato um processo contra a Ordem do Templo, considerando suas prerrogativas de chefe da Inquisição na França ou aguardaria uma manifestação de Clemente V, tendo em vista que, juridicamente, somente o Supremo Pontífice tinha autoridade para tanto?
Para se sentir mais seguro sobre que caminho tomar, ele consultou seu fiel acessor, Nicolau d’Ennezat, um frade dominicano formado em direito canônico, que lhe servia como secretário.
– Como devemos tratar essa denúncia? – perguntou ele a Nicolau d’Ennezat.– Oficialmente, somente o papa pode autorizar uma inves-tigação contra a Ordem do Templo, pois só ele tem poder para isso. Mas o Tribunal do Santo Ofício, por sua vez, recebida uma denúncia de heresia, não pode furtar-se a cumprir sua obrigação.
– Já consultastes Sua Santidade? – perguntoud’Ennezat.
–Sim– respondeu William –, mas até agora ele não respondeu.
– E creio que jamais responderá – sentenciou d’Ennezat. – Ele vai deixar que as coisas se resolvam por si mesmas. O papa Clemente V não tem coragem para enfrentar o Templo, nem para afrontar o rei.
─ O Irmão D'Ennezat parece não ter muito respeito pelo nosso querido Pontífice Máximo ─ observou, com certo sarcasmo, William de Paris.
─ Uma mitra não faz de um homem aquilo que ele não é ─ res-pondeu d’Ennezat.
─ São opiniões como essa que alimentam as fogueiras ─, respondeu o grande inquisidor, com um sorriso ambíguo.
─ E quem vai julgar as opiniões que alimentam as fogueiras? ─ perguntou o secretário, com um sorriso maroto.
– É verdade ─ respondeu William de Paris, abandonando o assun-to, que parecia aborrecê-lo. ─ Suponho que vamos ter que conduzir esse caso segundo nosso próprio julgamento – suspirou, resignado.
– Isso pode ser feito sem suscitar qualquer problema jurídico –, disse d’ Ennezat. – Legalmente, temos autoridade para abrir proces-sos em qualquer acusação de heresia, desde que oficializada por um cidadão livre do país. Não precisamos, para isso, da autorização do papa.
─ Contra pessoas, sim. Mas contra uma Ordem religiosa que está sujeita apenas à autoridade da Igreja, não sei não ─, observou William de Paris, expressando a pouca convicção que tinha nesse caso.
─ Não precisamos processar a Ordem enquanto organização. Cita-remos seus membros e as pessoas dos seus oficiais comandantes ─, dissse d’Enezat. ─ Assim, não estaremos invadindo a competência do papa e não deixaremos de estar exercendo a nossa. Se da inquirição de seus membros e especialmente seus comandantes, obtivermos elementos suficientes para incriminar a Ordem como um todo, será mais fácil convencer o papa a abrir um processo contra a Irmandade.
D’Ennezat, frade dominicano que William de Paris guindara ao posto de secretário da Santa Inquisição, formado em direito pela Uni-versidade de Paris, era grande conhecedor da legislação canônica. Por isso falava com conhecimento de causa. A filigrana jurídica do seu secretário pareceu agradá-lo.
– Sim, bem pensado –, respondeu o inquisidor – mor. ̶ Dessa forma não estaremos agindo contra a Ordem, mas sim contra as pessoas de seus membros. Estas não estão protegidas pela autoridade do papa. Não invadiremos, com isso, a sua competência. Mas ainda assim pesa-me a responsabilidade de ter que agir contra pessoas tão importantes como os comandantes templários. Mesmo porque desconfio dos motivos pelos quais essas acusações estão sendo feitas.
– É verdade que os motivos dessas acusações são francamente políticos, mas nada impede que elas, no fundo, sejam verdadeiras –, lembrou d’Ennezat.
– Isso é verdade. Acreditais então, como eu, que os templários sejam realmente culpados dessas acusações?...Que eles sejam heréticos e pratiquem, de fato, bruxaria? – arguiu William de Paris.
– Não é de hoje que se falam certas coisas escabrosas praticadas intramuros por essa gente – respondeu d’ Ennezat.
─ É verdade. Essa história de que eles colocam no vinho as cinzas de seus mortos, para beber “o espírito deles” é uma coisa tenebrosa ─, disse o inquisidor- mor.
─ Pior é esse negócio de cozinhar e comer as criancinhas que eles fazem em suas monjas ─, respondeu d’Enezzat.
─ E untar os seus ídolos com a gordura das vítimas que eles sacri-ficam em seus satânicos rituais... Não sei o que é pior ─, disse William de Paris.
─ Acreditais mesmo que eles façam tais barbaridades em seus ri-tuais secretos? ─ perguntou d’ Ennezat.
─ Tudo é possível, meu Irmão, tudo é possível. Quando o Diabo
toma conta de uma fazenda, qualquer planta maligna pode ser cul-tivada ─, respondeu William de Paris.
─ Talvez tudo não passe de calúnia e difamação para perder os templários. Afinal, esta nossa herança druida fez dos franceses o povo mais supersticioso da Cristandade ─, disse d’Ennezat, demonstrando certa dúvida.
─ É verdade ─, concordou o inquisidor-mor. ─ E essa nossa lei canônica está ai para demonstrar isso.
─ Pois é. A prova do fogo ainda é a nossa melhor estratégia para detectar um feiticeiro. Principalmente quando ele é nosso inimigo ─, disse d’ Ennezat, com uma ponta de sarcasmo.
– Realmente. E ninguém fez tantos inimigos como os templários –, lembrou William de Paris.
– O poder e o sucesso sempre incomodam quem não o tem e geral-mente acaba perdendo quem tem e não partilha –, completou, filoso-ficamente, d'Ennezat.
─ Avaros, arrogantes e egoístas eles sempre foram mesmo ─, disse o inquisidor.
─ Como todos aqueles que tem nas mãos um grande poder ─, completou d’ Ennnezat.
─ Seja como for, temos que tomar uma posição ─, disse, final-mente, William de Paris.
♦♦
De fato, toda apuração de denúncia de heresia estava afeita ao Tri-bunal da Santa Inquisição. Embora o papa, oficialmente, represen-tasse a autoridade máxima nesse caso, já que a Ordem do Templo não estava sujeita a nenhuma outra hierarquia além da exercida por ele, se o processo começasse contra as pessoas físicas dos cavaleiros, ele não poderia ser inquinado de ilegalidade, ainda que o aval do chefe da Igreja não existisse. Isso era competência do inquisidor-mor e podia ser exercida sem problemas. Bastava para isso que o tribunal fosse provocado através de uma denúncia feita por qualquer cidadão livre. A denúncia formulada por Nogaret preenchia todos os requisitos legais. Depois, à medida que fossem sendo obtidas as confissões, o papa seria convencido a liberar a Inquisição contra a própria Ordem. Esse era o plano.
Como chefe da Inquisição na França, William de Paris sabia que poderia desgostar seu superior hierárquico dando início ao procedi-mento por sua própria conta, mas tinha certeza que faria um inimigo ainda mais poderoso se não o fizesse. Ponderou os custos e benefí-cios da atitude a tomar. Não ignorava que o próprio Sumo Pontífice era submisso a Filipe, o Belo, e que fora o rei que patrocinara a sua eleição para o trono papal, garantira a sua posse e praticamente o obrigara a mudar a sede do papado de Roma para Poitiers.
Sabia que Clemente V não tinha força, nem personalidade para enfrentar Filipe. “Quem pode o mais pode o menos”, concluiu o arguto inquisidor-mor. Se o rei podia manipular o papa, quem era ele para resistir?
Depois, não era ele próprio, William de Paris, simpatizante de Filipe, o Belo? Não fora seu secretário particular durante dois anos? Não fora o próprio rei francês que o colocara nesse cargo? Ele co-nhecia bem o monarca para quem trabalhara. Sabia que ele costuma-va premiar os que lhe eram fieis, mas não tinha contemplação com aqueles que o afrontavam. Certamente não o perdoaria se ele o traísse. Depois, quem eram, para ele, os templários? Ele os via como uma casta de monges orgulhosos, que haviam enriquecido à sombra do poder que lhes dera a Igreja e agora se portavam como se fossem o próprio poder. Eram arrogantes, autoritários, ciosos da sua inde-pendência pessoal; afrontavam a autoridade secular e estavam pouco se importando com a hierarquia da Igreja. Pois não haviam recusado a proposta do papa, de uma fusão com os cavaleiros do Hospital de São João?
Esse era o desejo do papa e de toda a Cristandade, pensava o inquisidor-mor. Clemente V tentara, por todos os meios, convencer Jacques de Molay de que a sobrevivência da Ordem estava condicio-nada à uma fusão do Templo com o Hospital. Colocara o altivo grão-mestre templário a par das acusações que eram feitas contra a Irman-dade e das diatribes que o rei Filipe tinha pronunciado contra eles. Mas a resposta debochada que de Molay lhe dera fora que seria “perigoso para as almas envolvidas uma fusão desse tipo, porque segundo creio, são raros aqueles que querem mudar sua vida e seus costumes.”
“Malditos monges sodomitas, promíscuos e arrogantes” murmu-rou, para si mesmo, William de Paris. “Então eles se julgavam se-nhores da verdade? Donos do mundo? Não queriam mudar suas formas de viver? Não queriam largar o osso? Queriam manter a sua independência a todo custo? Talvez fosse verdade as suspeitas do ministro Nogaret, de que os templários estariam conspirando para formar um reino independente, semelhante ao que os cavaleiros teu-tônicos já haviam fundado na Europa Central.”
“E aquele Jacques de Molay, com sua longa e bifurcada barba de profeta, seu vistoso manto branco, ornado com aquela emblemática cruz vermelha? Era um velho ignorante, analfabeto, um bruto, mas ostentava, com aquela indumentária toda e seu porte altivo de guer-reiro, uma arrogância sem limites.”
De repente, William de Paris descobriu que também odiava os templários. Sempre odiara, mas jamais tinha tido uma percepção tão aguda desse sentimento como naquele instante. E ao experimentá-lo, uma sensação de infinito prazer percorreu todo seu corpo. Sentiu um arrepio de satisfação na espinha ao pensar que, por um golpe do destino, tinha nas mãos o poder de vida e morte sobre aqueles cava-leiros orgulhosos que ostentavam, garbosos, pelos burgos da Cris-tandade toda, aquela cruz vermelha no peito, como se ela fosse um escudo que o próprio Deus lhes houvesse dado para sua distinção entre os mortais. Eles agora estavam em suas mãos. Podia esmagá-los, triturá-los, quebrar seus ossos, arrancar suas peles, submetê-los ao suplício dos borzeguins, esticar seus nervos e ossos em um cava-lete, até o rompimento...
Uma onda de prazer percorreu todos os seus nervos ao imaginar o corpo do velho e orgulhoso de Molay se contorcendo ao ranger das roldanas, sentindo seus nervos se romperem na roda, seus braços serem sugados dos ombros pelo retesamento das cordas, seu peito explodindo à força do esticamento do seu esqueleto em todas as direções, seu ventre rachando como fosse uma bexiga de porco soprada por uma criança, com a água derramada na cucufa que seria colocada na sua boca...
Gozando aquele sentimento de prazer sádico, nem percebeu que sua mão se fechava com força, como se estivesse esmagando um ovo...Sim.Ele os julgaria,como se estivesse julgando o próprio diabo.
♦♦♦
Cento e quarenta cavaleiros haviam sido presos na ação policial da madrugada da sexta-feira, 13 de outubro de 1307, no edifício do Templo, em Paris. Foram todos confinados nas masmorras do pró-prio castelo templário. Em toda a Cristandade, estimou-se que exis-tiam mais de dez mil templários, entre cavaleiros, sargentos e tur-copolos, como homens de armas. Só em França havia mais de dois mil homens nessa condição. Mas o Templo, considerando toda a estrutura da Ordem, ultrapassava o número de vinte mil membros e afiliados. Uma boa parte deles fora presa na ação concatenada na-quela sexta-feira, inclusive os seus mais importantes dignitários. Em Paris, nas masmorras do próprio Templo, foram encerrados, em celas separadas, Jacques de Molay, grão-mestre geral da Ordem, Hugues de Peyráuld, seu inspetor-visitador, Geoffroy de Charney, preceptor da Normandia e Geoffroy de Gonneville, preceptor de Aquitânia. Presos desde aquela fatídica manhã, durante vários dias, a única alma viva que viram foi o carcereiro que lhe trazia a magra ração diária de pão e água.
Em uma sala do edifício do castelo do Templo, agora ocupado pela polícia do rei, William de Paris montara o seu gabinete.Acompanhado pelo seu fiel secretário Nicolau d’Ezennat, estava preparado para começar o interrogatório. Sentado em frente à uma improvisada mesa, feita de pranchas de carvalho, sustentadas por quatro cavaletes colocados em cima de um estrado, ele esperava a entrada dos acusados. A sala estava iluminada apenas por algumas velas, postas em candelabros de bronze. Ele vestia o seu burel branco, próprio para a ocasião. Ao seu lado direito, um monge servia como escrivão, para registrar as perguntas e respostas dadas. Atrás deles, sentados em cadeiras de alto espaldar, como testemunhas do ato, seis prelados com suas vestes eclesiásticas.
Num canto do aposento, meio ocultos pelas sombras que dança-vam na grande sala mal iluminada, dois soldados armados com espa-das e piques, vestidos com suas cotas de malha, cobertas com uma capa vermelha, se postavam, silenciosamente, em pé, com um sem-blante impassível nos rostos de barbas negras e cerradas: eram os guardas da Santa Inquisição. O inquérito sobre os crimes praticados pelos pobres soldados de Cristo estava começando. Era a manhã do dia 21 de outubro de 1307.
♦♦♦♦
– Vosso nome e o cargo que exerceis na Ordem do Templo – ordenou, com sua voz fria e metálica, William de Paris, ao prisionei-ro.
– Geoffroy de Charney, preceptor do Templo na Normandia – res-
pondeu o acusado, sentado em um banquinho de madeira, sem encos-to nem espaldar.
– Tendes conhecimento do motivo pelo qual estais aqui?
– Não, Eminência.
William de Paris pediu a d’Ezennat para ler as acusações.
– Vós sois acusado de negar a divindade de Cristo, de pregar a falsidade da sua ressurreição, de renegar a Deus, duvidar da vir-gindade de Maria e da virtude dos santos reconhecidos pela Santa Madre Igreja;
– (...) acusado de cometer atos de sacrilégio, cuspindo na cruz, pisando na imagem do Nosso Senhor Jesus Cristo, urinar nela, pro-ferir palavras profanas e fazer gestos obscenos e ofensivos a estes símbolos sagrados;
– (...) de praticar atos de sodomia, como o coito carnal com seus próprios irmãos de Ordem e dar beijos obscenos em suas partes ín-timas;
– (...) de alterar a liturgia da Santa Missa e criar um ritual de missa próprio, que ofende e transgride os ritos da Santa Madre Igreja;
– (...) de zombar e duvidar dos sacramentos instituidos pela Santa Madre Igreja e incitar os vossos Irmãos a fazer o mesmo;
─ (...) de permitir que sejam enterradas em seus cemitérios as pessoas excomungadas pela Santa Madre Igreja, e ministrar a elas os sacramentos que lhe foram interditos em razão da excomunhão;
– (...) da prática de idolatria, adorando ídolos estranhos e demoníacos, praticando liturgias condenadas pela Santa Madre Igreja;
– (...) de usurpar as funções eclesiásticas, absolvendo os Irmãos da vossa Ordem de seus pecados...
E por ai afora, foi o secretário de William de Paris desfilando um imenso rol de acusações, boa parte delas repetidas, que levou pelo menos uma hora para serem lidas. À todas, o preceptor da Norman-
dia ouviu, arregalando os olhos, mas sem emitir uma única palavra.
– São verdadeiras ou falsas essas acusações? – perguntou William de Paris.
Sua voz parecia sair do fundo de uma caverna. Geoffrey de Charney ainda não se recuperara da sua perplexidade e não se dera conta da periculosidade da situação em que estava sendo colocado.
– Lembrai-vos que temos meios para extrair-vos a verdade e que os usaremos sem qualquer piedade e sem qualquer consideração para com a vossa posição – vociferou d’ Ennezat, com uma frieza na voz, que fez perpassar na espinha do preceptor da Normandia um arrepio como se nas costas fosse encostado um punhal de gelo. Ele sabia do que aquele miserável estava falando: tortura. Imediatamente empalideceu e seu coração contraiu-se como se estivesse sendo esmagado por uma morsa de ferreiro. Ainda assim teve presença de espírito suficiente para dar uma resposta temperada por um certo orgulho de cavaleiro, em face de um confronto com o inimigo.
– Se algum homem praticou todos esses crimes que Vossa Emi-nência nomeou, ele não deveria nem nascer –, respondeu Charney, com um olhar desafiador, que logo se desfez ao ver a face rígida e severa dos inquisidores.
– Advirto-vos para não fazer troça deste Tribunal, porque não te-remos constrangimento em usar todos os meios à nossa disposição para arrancar de vós e dos vossos Irmãos a verdade –, advertiu William de Paris.
– Já temos as confisssões de diversos membros da vossa Ordem e vós pouparíeis tempo para nós e evitarieis sofrimento para vós mes-mos, se fôrdes sincero conosco e confessardes logo o que queremos saber –, ajuntou d’ Ennezat.
– Nada tenho a confessar –, disse Geoffrey de Charney. – Reputo que taisa acusações são falsas e absurdas. E quem a fez, ou confessou, comete perjúrio e levanta falso testemunho –, completou o cavaleiro, que finalmente parecia se dar conta do que estava realmente acontecendo.
– Veremos se os vossos Irmãos dirão a mesma coisa –, disse William de Paris. – Devolvei o prisioneiro à sua cela –, ordenou ele aos dois arqueiros que guardavam, impassíveis como estátuas de pedra, a porta do aposento.
(do livro A Irmandade dos Santos Malditos, no prelo)
Para se sentir mais seguro sobre que caminho tomar, ele consultou seu fiel acessor, Nicolau d’Ennezat, um frade dominicano formado em direito canônico, que lhe servia como secretário.
– Como devemos tratar essa denúncia? – perguntou ele a Nicolau d’Ennezat.– Oficialmente, somente o papa pode autorizar uma inves-tigação contra a Ordem do Templo, pois só ele tem poder para isso. Mas o Tribunal do Santo Ofício, por sua vez, recebida uma denúncia de heresia, não pode furtar-se a cumprir sua obrigação.
– Já consultastes Sua Santidade? – perguntoud’Ennezat.
–Sim– respondeu William –, mas até agora ele não respondeu.
– E creio que jamais responderá – sentenciou d’Ennezat. – Ele vai deixar que as coisas se resolvam por si mesmas. O papa Clemente V não tem coragem para enfrentar o Templo, nem para afrontar o rei.
─ O Irmão D'Ennezat parece não ter muito respeito pelo nosso querido Pontífice Máximo ─ observou, com certo sarcasmo, William de Paris.
─ Uma mitra não faz de um homem aquilo que ele não é ─ res-pondeu d’Ennezat.
─ São opiniões como essa que alimentam as fogueiras ─, respondeu o grande inquisidor, com um sorriso ambíguo.
─ E quem vai julgar as opiniões que alimentam as fogueiras? ─ perguntou o secretário, com um sorriso maroto.
– É verdade ─ respondeu William de Paris, abandonando o assun-to, que parecia aborrecê-lo. ─ Suponho que vamos ter que conduzir esse caso segundo nosso próprio julgamento – suspirou, resignado.
– Isso pode ser feito sem suscitar qualquer problema jurídico –, disse d’ Ennezat. – Legalmente, temos autoridade para abrir proces-sos em qualquer acusação de heresia, desde que oficializada por um cidadão livre do país. Não precisamos, para isso, da autorização do papa.
─ Contra pessoas, sim. Mas contra uma Ordem religiosa que está sujeita apenas à autoridade da Igreja, não sei não ─, observou William de Paris, expressando a pouca convicção que tinha nesse caso.
─ Não precisamos processar a Ordem enquanto organização. Cita-remos seus membros e as pessoas dos seus oficiais comandantes ─, dissse d’Enezat. ─ Assim, não estaremos invadindo a competência do papa e não deixaremos de estar exercendo a nossa. Se da inquirição de seus membros e especialmente seus comandantes, obtivermos elementos suficientes para incriminar a Ordem como um todo, será mais fácil convencer o papa a abrir um processo contra a Irmandade.
D’Ennezat, frade dominicano que William de Paris guindara ao posto de secretário da Santa Inquisição, formado em direito pela Uni-versidade de Paris, era grande conhecedor da legislação canônica. Por isso falava com conhecimento de causa. A filigrana jurídica do seu secretário pareceu agradá-lo.
– Sim, bem pensado –, respondeu o inquisidor – mor. ̶ Dessa forma não estaremos agindo contra a Ordem, mas sim contra as pessoas de seus membros. Estas não estão protegidas pela autoridade do papa. Não invadiremos, com isso, a sua competência. Mas ainda assim pesa-me a responsabilidade de ter que agir contra pessoas tão importantes como os comandantes templários. Mesmo porque desconfio dos motivos pelos quais essas acusações estão sendo feitas.
– É verdade que os motivos dessas acusações são francamente políticos, mas nada impede que elas, no fundo, sejam verdadeiras –, lembrou d’Ennezat.
– Isso é verdade. Acreditais então, como eu, que os templários sejam realmente culpados dessas acusações?...Que eles sejam heréticos e pratiquem, de fato, bruxaria? – arguiu William de Paris.
– Não é de hoje que se falam certas coisas escabrosas praticadas intramuros por essa gente – respondeu d’ Ennezat.
─ É verdade. Essa história de que eles colocam no vinho as cinzas de seus mortos, para beber “o espírito deles” é uma coisa tenebrosa ─, disse o inquisidor- mor.
─ Pior é esse negócio de cozinhar e comer as criancinhas que eles fazem em suas monjas ─, respondeu d’Enezzat.
─ E untar os seus ídolos com a gordura das vítimas que eles sacri-ficam em seus satânicos rituais... Não sei o que é pior ─, disse William de Paris.
─ Acreditais mesmo que eles façam tais barbaridades em seus ri-tuais secretos? ─ perguntou d’ Ennezat.
─ Tudo é possível, meu Irmão, tudo é possível. Quando o Diabo
toma conta de uma fazenda, qualquer planta maligna pode ser cul-tivada ─, respondeu William de Paris.
─ Talvez tudo não passe de calúnia e difamação para perder os templários. Afinal, esta nossa herança druida fez dos franceses o povo mais supersticioso da Cristandade ─, disse d’Ennezat, demonstrando certa dúvida.
─ É verdade ─, concordou o inquisidor-mor. ─ E essa nossa lei canônica está ai para demonstrar isso.
─ Pois é. A prova do fogo ainda é a nossa melhor estratégia para detectar um feiticeiro. Principalmente quando ele é nosso inimigo ─, disse d’ Ennezat, com uma ponta de sarcasmo.
– Realmente. E ninguém fez tantos inimigos como os templários –, lembrou William de Paris.
– O poder e o sucesso sempre incomodam quem não o tem e geral-mente acaba perdendo quem tem e não partilha –, completou, filoso-ficamente, d'Ennezat.
─ Avaros, arrogantes e egoístas eles sempre foram mesmo ─, disse o inquisidor.
─ Como todos aqueles que tem nas mãos um grande poder ─, completou d’ Ennnezat.
─ Seja como for, temos que tomar uma posição ─, disse, final-mente, William de Paris.
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De fato, toda apuração de denúncia de heresia estava afeita ao Tri-bunal da Santa Inquisição. Embora o papa, oficialmente, represen-tasse a autoridade máxima nesse caso, já que a Ordem do Templo não estava sujeita a nenhuma outra hierarquia além da exercida por ele, se o processo começasse contra as pessoas físicas dos cavaleiros, ele não poderia ser inquinado de ilegalidade, ainda que o aval do chefe da Igreja não existisse. Isso era competência do inquisidor-mor e podia ser exercida sem problemas. Bastava para isso que o tribunal fosse provocado através de uma denúncia feita por qualquer cidadão livre. A denúncia formulada por Nogaret preenchia todos os requisitos legais. Depois, à medida que fossem sendo obtidas as confissões, o papa seria convencido a liberar a Inquisição contra a própria Ordem. Esse era o plano.
Como chefe da Inquisição na França, William de Paris sabia que poderia desgostar seu superior hierárquico dando início ao procedi-mento por sua própria conta, mas tinha certeza que faria um inimigo ainda mais poderoso se não o fizesse. Ponderou os custos e benefí-cios da atitude a tomar. Não ignorava que o próprio Sumo Pontífice era submisso a Filipe, o Belo, e que fora o rei que patrocinara a sua eleição para o trono papal, garantira a sua posse e praticamente o obrigara a mudar a sede do papado de Roma para Poitiers.
Sabia que Clemente V não tinha força, nem personalidade para enfrentar Filipe. “Quem pode o mais pode o menos”, concluiu o arguto inquisidor-mor. Se o rei podia manipular o papa, quem era ele para resistir?
Depois, não era ele próprio, William de Paris, simpatizante de Filipe, o Belo? Não fora seu secretário particular durante dois anos? Não fora o próprio rei francês que o colocara nesse cargo? Ele co-nhecia bem o monarca para quem trabalhara. Sabia que ele costuma-va premiar os que lhe eram fieis, mas não tinha contemplação com aqueles que o afrontavam. Certamente não o perdoaria se ele o traísse. Depois, quem eram, para ele, os templários? Ele os via como uma casta de monges orgulhosos, que haviam enriquecido à sombra do poder que lhes dera a Igreja e agora se portavam como se fossem o próprio poder. Eram arrogantes, autoritários, ciosos da sua inde-pendência pessoal; afrontavam a autoridade secular e estavam pouco se importando com a hierarquia da Igreja. Pois não haviam recusado a proposta do papa, de uma fusão com os cavaleiros do Hospital de São João?
Esse era o desejo do papa e de toda a Cristandade, pensava o inquisidor-mor. Clemente V tentara, por todos os meios, convencer Jacques de Molay de que a sobrevivência da Ordem estava condicio-nada à uma fusão do Templo com o Hospital. Colocara o altivo grão-mestre templário a par das acusações que eram feitas contra a Irman-dade e das diatribes que o rei Filipe tinha pronunciado contra eles. Mas a resposta debochada que de Molay lhe dera fora que seria “perigoso para as almas envolvidas uma fusão desse tipo, porque segundo creio, são raros aqueles que querem mudar sua vida e seus costumes.”
“Malditos monges sodomitas, promíscuos e arrogantes” murmu-rou, para si mesmo, William de Paris. “Então eles se julgavam se-nhores da verdade? Donos do mundo? Não queriam mudar suas formas de viver? Não queriam largar o osso? Queriam manter a sua independência a todo custo? Talvez fosse verdade as suspeitas do ministro Nogaret, de que os templários estariam conspirando para formar um reino independente, semelhante ao que os cavaleiros teu-tônicos já haviam fundado na Europa Central.”
“E aquele Jacques de Molay, com sua longa e bifurcada barba de profeta, seu vistoso manto branco, ornado com aquela emblemática cruz vermelha? Era um velho ignorante, analfabeto, um bruto, mas ostentava, com aquela indumentária toda e seu porte altivo de guer-reiro, uma arrogância sem limites.”
De repente, William de Paris descobriu que também odiava os templários. Sempre odiara, mas jamais tinha tido uma percepção tão aguda desse sentimento como naquele instante. E ao experimentá-lo, uma sensação de infinito prazer percorreu todo seu corpo. Sentiu um arrepio de satisfação na espinha ao pensar que, por um golpe do destino, tinha nas mãos o poder de vida e morte sobre aqueles cava-leiros orgulhosos que ostentavam, garbosos, pelos burgos da Cris-tandade toda, aquela cruz vermelha no peito, como se ela fosse um escudo que o próprio Deus lhes houvesse dado para sua distinção entre os mortais. Eles agora estavam em suas mãos. Podia esmagá-los, triturá-los, quebrar seus ossos, arrancar suas peles, submetê-los ao suplício dos borzeguins, esticar seus nervos e ossos em um cava-lete, até o rompimento...
Uma onda de prazer percorreu todos os seus nervos ao imaginar o corpo do velho e orgulhoso de Molay se contorcendo ao ranger das roldanas, sentindo seus nervos se romperem na roda, seus braços serem sugados dos ombros pelo retesamento das cordas, seu peito explodindo à força do esticamento do seu esqueleto em todas as direções, seu ventre rachando como fosse uma bexiga de porco soprada por uma criança, com a água derramada na cucufa que seria colocada na sua boca...
Gozando aquele sentimento de prazer sádico, nem percebeu que sua mão se fechava com força, como se estivesse esmagando um ovo...Sim.Ele os julgaria,como se estivesse julgando o próprio diabo.
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Cento e quarenta cavaleiros haviam sido presos na ação policial da madrugada da sexta-feira, 13 de outubro de 1307, no edifício do Templo, em Paris. Foram todos confinados nas masmorras do pró-prio castelo templário. Em toda a Cristandade, estimou-se que exis-tiam mais de dez mil templários, entre cavaleiros, sargentos e tur-copolos, como homens de armas. Só em França havia mais de dois mil homens nessa condição. Mas o Templo, considerando toda a estrutura da Ordem, ultrapassava o número de vinte mil membros e afiliados. Uma boa parte deles fora presa na ação concatenada na-quela sexta-feira, inclusive os seus mais importantes dignitários. Em Paris, nas masmorras do próprio Templo, foram encerrados, em celas separadas, Jacques de Molay, grão-mestre geral da Ordem, Hugues de Peyráuld, seu inspetor-visitador, Geoffroy de Charney, preceptor da Normandia e Geoffroy de Gonneville, preceptor de Aquitânia. Presos desde aquela fatídica manhã, durante vários dias, a única alma viva que viram foi o carcereiro que lhe trazia a magra ração diária de pão e água.
Em uma sala do edifício do castelo do Templo, agora ocupado pela polícia do rei, William de Paris montara o seu gabinete.Acompanhado pelo seu fiel secretário Nicolau d’Ezennat, estava preparado para começar o interrogatório. Sentado em frente à uma improvisada mesa, feita de pranchas de carvalho, sustentadas por quatro cavaletes colocados em cima de um estrado, ele esperava a entrada dos acusados. A sala estava iluminada apenas por algumas velas, postas em candelabros de bronze. Ele vestia o seu burel branco, próprio para a ocasião. Ao seu lado direito, um monge servia como escrivão, para registrar as perguntas e respostas dadas. Atrás deles, sentados em cadeiras de alto espaldar, como testemunhas do ato, seis prelados com suas vestes eclesiásticas.
Num canto do aposento, meio ocultos pelas sombras que dança-vam na grande sala mal iluminada, dois soldados armados com espa-das e piques, vestidos com suas cotas de malha, cobertas com uma capa vermelha, se postavam, silenciosamente, em pé, com um sem-blante impassível nos rostos de barbas negras e cerradas: eram os guardas da Santa Inquisição. O inquérito sobre os crimes praticados pelos pobres soldados de Cristo estava começando. Era a manhã do dia 21 de outubro de 1307.
♦♦♦♦
– Vosso nome e o cargo que exerceis na Ordem do Templo – ordenou, com sua voz fria e metálica, William de Paris, ao prisionei-ro.
– Geoffroy de Charney, preceptor do Templo na Normandia – res-
pondeu o acusado, sentado em um banquinho de madeira, sem encos-to nem espaldar.
– Tendes conhecimento do motivo pelo qual estais aqui?
– Não, Eminência.
William de Paris pediu a d’Ezennat para ler as acusações.
– Vós sois acusado de negar a divindade de Cristo, de pregar a falsidade da sua ressurreição, de renegar a Deus, duvidar da vir-gindade de Maria e da virtude dos santos reconhecidos pela Santa Madre Igreja;
– (...) acusado de cometer atos de sacrilégio, cuspindo na cruz, pisando na imagem do Nosso Senhor Jesus Cristo, urinar nela, pro-ferir palavras profanas e fazer gestos obscenos e ofensivos a estes símbolos sagrados;
– (...) de praticar atos de sodomia, como o coito carnal com seus próprios irmãos de Ordem e dar beijos obscenos em suas partes ín-timas;
– (...) de alterar a liturgia da Santa Missa e criar um ritual de missa próprio, que ofende e transgride os ritos da Santa Madre Igreja;
– (...) de zombar e duvidar dos sacramentos instituidos pela Santa Madre Igreja e incitar os vossos Irmãos a fazer o mesmo;
─ (...) de permitir que sejam enterradas em seus cemitérios as pessoas excomungadas pela Santa Madre Igreja, e ministrar a elas os sacramentos que lhe foram interditos em razão da excomunhão;
– (...) da prática de idolatria, adorando ídolos estranhos e demoníacos, praticando liturgias condenadas pela Santa Madre Igreja;
– (...) de usurpar as funções eclesiásticas, absolvendo os Irmãos da vossa Ordem de seus pecados...
E por ai afora, foi o secretário de William de Paris desfilando um imenso rol de acusações, boa parte delas repetidas, que levou pelo menos uma hora para serem lidas. À todas, o preceptor da Norman-
dia ouviu, arregalando os olhos, mas sem emitir uma única palavra.
– São verdadeiras ou falsas essas acusações? – perguntou William de Paris.
Sua voz parecia sair do fundo de uma caverna. Geoffrey de Charney ainda não se recuperara da sua perplexidade e não se dera conta da periculosidade da situação em que estava sendo colocado.
– Lembrai-vos que temos meios para extrair-vos a verdade e que os usaremos sem qualquer piedade e sem qualquer consideração para com a vossa posição – vociferou d’ Ennezat, com uma frieza na voz, que fez perpassar na espinha do preceptor da Normandia um arrepio como se nas costas fosse encostado um punhal de gelo. Ele sabia do que aquele miserável estava falando: tortura. Imediatamente empalideceu e seu coração contraiu-se como se estivesse sendo esmagado por uma morsa de ferreiro. Ainda assim teve presença de espírito suficiente para dar uma resposta temperada por um certo orgulho de cavaleiro, em face de um confronto com o inimigo.
– Se algum homem praticou todos esses crimes que Vossa Emi-nência nomeou, ele não deveria nem nascer –, respondeu Charney, com um olhar desafiador, que logo se desfez ao ver a face rígida e severa dos inquisidores.
– Advirto-vos para não fazer troça deste Tribunal, porque não te-remos constrangimento em usar todos os meios à nossa disposição para arrancar de vós e dos vossos Irmãos a verdade –, advertiu William de Paris.
– Já temos as confisssões de diversos membros da vossa Ordem e vós pouparíeis tempo para nós e evitarieis sofrimento para vós mes-mos, se fôrdes sincero conosco e confessardes logo o que queremos saber –, ajuntou d’ Ennezat.
– Nada tenho a confessar –, disse Geoffrey de Charney. – Reputo que taisa acusações são falsas e absurdas. E quem a fez, ou confessou, comete perjúrio e levanta falso testemunho –, completou o cavaleiro, que finalmente parecia se dar conta do que estava realmente acontecendo.
– Veremos se os vossos Irmãos dirão a mesma coisa –, disse William de Paris. – Devolvei o prisioneiro à sua cela –, ordenou ele aos dois arqueiros que guardavam, impassíveis como estátuas de pedra, a porta do aposento.
(do livro A Irmandade dos Santos Malditos, no prelo)