Eclipse da Alma
Estranhar o lugar em que acordava tinha se tornado um hábito difícil de abandonar, mesmo quando Tales Martini possuía um teto fixo onde pudesse descansar e do qual gostasse bastante. Os detalhes do quarto foram entrando em foco depois que ele abriu os olhos, demorando um instante para reconhecer o apartamento e se certificar de que não estava sonhando. Ainda que estivesse hospedado há dias e não pretendesse sair – pelo menos não nas próximas semanas –, o ambiente quase nunca lhe era familiar ao despertar pela manhã.
O jovem se levantou e arrumou a cama com o mesmo zelo de quem agradecia um favor. Depois, tomou um banho com uma água gelada que varria para longe qualquer resquício de sono, muito embora não precisasse desse recurso para ficar desperto logo cedo. Ele fez café um pouco atrapalhado com a cafeteira e manejou a torradeira com a mesma falta de experiência.
Após mais de três anos vivendo na penúria, dormindo e comendo de favor ou em troca de sua formidável força física empregada em trabalhos braçais, certos aspectos e utensílios de uma vida comum pareciam extravagâncias de outra parte do mundo, mas ele não tinha intenção de fugir disso, obviamente. Já tinha dormido ao relento, tomado sopa rala junto com moradores de rua e uma vez por mês se isolava no campo ou em galpões abandonados para passar a noite amarrado com cordas ou correntes. As dificuldades não o abateram e não seria o conforto que o assustaria.
Tales comeu as torradas uma por uma e limpou metodicamente as migalhas da mesa. Pegou a garrafa térmica e encheu a xícara até quase transbordar café pelas bordas brancas. Segurou a pequena peça de porcelana pela asa recurvada e se levantou, caminhando rumo à varanda, onde se recostou na entrada e observou a paisagem de prédios erguendo-se como uma cordilheira cinza de montanhas de concreto.
Alguns edifícios exibiam um empilhamento de outras varandas, enquanto que outros mais pareciam um paredão de vidro, refletindo o sol matutino. A vista do quinto andar não era ruim, mas a beleza da metrópole não impediu o rapaz de se distrair, perdendo-se nas lembranças de outra manhã não muito distante. Também nela o sol nascia trazendo a promessa de novas possibilidades, e, como de praxe, não cabia aos mortais escolher quais mudanças deveriam surgir pelo caminho.
* * *
– Levante-se, rapaz! Aqui não é lugar para dormir.
Tales abriu os olhos devagar, se acostumando com a claridade do dia que começava, e viu o guarda em pé ao lado do banco da praça em que estava deitado, se erguendo sobre ele como uma silhueta escura contra o céu turquesa.
– Levante-se! Não é permitido dormir nesses bancos – o policial reiterou, mais em caráter de aviso do que de repreensão.
Tales se sentou, esfregando o rosto ainda um pouco zonzo, e se levantou, ajeitando a jaqueta jeans abarrotada. Sob o olhar do guarda, ele andou lentamente, como se não soubesse exatamente para onde ir. Com o jovem se distanciando, o homem fardado se virou para continuar sua ronda matutina.
As torres da igreja, assim como os outros prédios ao redor, projetavam suas sombras largas sobre a praça deserta, que parecia ligeiramente diferente para Tales depois que amanheceu e a cidade começou a ser iluminada com a luz dourada do sol nascente. O que ele recordava dela, da noite anterior, quando chegou depois de horas andando sem um destino certo, era de um casal namorando em um dos bancos, um homem barbudo vendendo bijuterias feitas à mão, perto de um poste, e de jovens de sua idade conversando alegremente.
Tales havia se sentado exausto em um dos bancos, pensando no que faria a seguir, ou para onde iria, quando acabou adormecendo ali mesmo, o que não foi a experiência mais desconfortável que passou nos últimos meses, desde que descobrira o que era.
Ele tinha acabado de sair de uma situação difícil, no fim de mais um dos ciclos da lua, e, nessas circunstâncias, era difícil não se lembrar do acidente que matou sua mãe. Quando isso acontecia, para não ser dominado pela tristeza, ele apreciava longas caminhadas pelas ruas resplandecentes de neons, vitrines e letreiros, onde via novos rostos e compartilhava do mesmo espaço que outras pessoas – uma forma de se sentir normal, de se sentir ao menos um pouco ainda pertencente à humanidade.
Na noite em que chegou à praça, ele observou os jovens conversando e rindo, aparentemente sem grandes preocupações, e não conseguiu evitar se imaginar com eles. Eles poderiam ser seus amigos. Tales poderia estar indo às festas com eles ou fazendo planos para uma futura carreira, vivendo sem ser uma ameaça, sem se sentir culpado por não ter tido a coragem de acabar com a própria vida, e, consequentemente, de acabar com o que estava dentro de si.
O jovem foi despertado desses pensamentos tristes, sobre como tudo poderia ser diferente, pelo roncar nada elegante de seu estômago. Ele estava faminto e tinha perdido a noção do tempo se afastando da praça pela larga avenida que se agitava com os sons e cheiros do início de uma manhã ensolarada. Os carros iam e vinham pela pista, ou se acumulavam atrás das faixas de pedestres, esperando abrir o sinal e protestando com buzinadas quando ele ficava verde e os veículos da frente não saíam do lugar rápido o suficiente.
Nas calçadas, o rapaz caminhava devagar, quase se esbarrando nas pessoas que andavam a passos curtos e apressados, sem se olhar nos olhos. Aparentemente, todos com o pensamento na agenda lotada. Mas no que ele mais pensava naquele momento, particularmente, era nos cheiros que saiam dos restaurantes e bares que ladeavam a avenida. Cheiros quentes e gelados que atiçavam seus sentidos apurados até quase lhe provocar vertigem.
Ele pegou sua carteira maltrapilha do bolso de trás, encontrando somente alguns poucos trocados em moedas. Aquilo não daria para um copo de refresco ou para um cupcake, quanto mais para um café da manhã completo. Tales estava certo de que a maioria daqueles estabelecimentos não lhe daria sequer um copo d’água por aquele valor. Ele virou em uma esquina e parou em frente a uma vitrine onde estava escrito em grandes letras brancas o nome de uma cafeteria. Ele se aproximou, pondo suas mãos no vidro, e viu através dele as mesas redondas ocupadas por clientes que comiam e bebiam sem dar a menor importância ao que se passava do lado de fora.
Tales tinha a sensação de que podia ouvir o tilintar de talheres nos pratos enquanto observava, quase encostando seu rosto no vidro que se embaçou com sua respiração, ofuscando a imagem do outro lado e o fazendo sentir impresso em seu hálito o cheiro da fome que crescia e o torturava. Tinha se alimentado de maneira precária nos últimos dias, sendo que não tinha comido praticamente nada desde o dia anterior. Ele nem mesmo se lembrava da última vez em que havia feito uma refeição de verdade.
Se pelo menos alguém da cafeteria se compadecesse e lhe desse um café da manhã. Mas caridade não é algo que se possa exigir dos outros, e, mesmo que ele pudesse lavar louça ou fazer outro trabalho qualquer em troca de um prato de comida, isso era algo que dificilmente aconteceria, até porque ele não achava que poderia trabalhar fraco como estava. Se realmente chegasse a fazer um acordo para trocar desjejum por um dia de trabalho, o desjejum teria que vir antes, condição com a qual eles provavelmente não concordariam. Mas e se eles não soubessem?
Entrar, fazer um pedido e depois surpreendê-los dizendo que iria pagar por tudo o que consumiu lavando pratos não era um plano seguro, uma vez que eles poderiam simplesmente chamar a polícia; no entanto, ir parar na delegacia não parecia tão ruim quanto desmaiar em uma calçada. Com esse pensamento, ele entrou, colocando a barra da blusa para dentro da calça, alinhando a jaqueta e penteado com a ponta dos dedos o cabelo desarrumado. Caminhou sem jeito até uma das mesas desocupadas e se sentou, olhando sutilmente em volta. Se agisse naturalmente, ninguém desconfiaria.
Um homem de barda aparada e cabelo penteado, vestido com um avental onde estava escrito o mesmo nome que estava na vitrine, logo se aproximou, uma caderneta e um lápis a postos em suas mãos.
– Bom dia! Gostaria de pedir alguma coisa agora?
Tales tamborilou seus dedos pela mesa, apreensivo. Achava que deveria pedir um cardápio ou algo assim, mas, como não iria pagar com dinheiro, não viu por que conferir os preços.
– Bem... Eu gostaria de uma fatia de torta de maçã e uma xícara de café sem leite e com açúcar, por favor.
O garçom se retirou, deixando Tales sozinho por cerca de cinco minutos, nos quais o rapaz mascarava a tensão com uma postura ereta, firme demais para ser espontânea. O homem de avental retornou trazendo em uma bandeja um prato com uma fatia de torta e uma xícara de café que pôs na mesa, à frente de Tales, juntamente com um gafo e uma faca. Ele observou aquilo por alguns instantes, após a saída do garçom. Se tocasse na refeição, não teria volta. Pegou nos talheres, cada um em uma mão, tirou um pedaço de torta e o levou à boca. A satisfação que aquele pedaço de torta trouxe ao seu paladar, assim como o desejo ávido por mais, arrastou a vergonha e a culpa que poderia estar sentido por dar aquele golpe, se é que poderia chamar assim, afinal ele tinha a intenção de pagar, de uma forma ou de outra.
Tales comeu o pedaço de torta e tomou o café rapidamente, se contendo para não lamber o prato e chamar a atenção. Quando acabou, viu para sua surpresa e desespero que não sabia exatamente o que fazer. O plano em sua cabeça parecia bastante simples: era só comer e depois lavar a louça para pagar, mas a coragem o tinha abandonado. O que faria? Sair correndo? Começar uma briga e na confusão sair sem pagar?
Ele olhou para as pessoas nas outras mesas. Pessoas sérias que entravam, comiam alguma coisa e depois iam embora com a mesma rapidez com que chegavam. Alguns homens estavam engravatados e as mulheres também se vestiam sobriamente. Provavelmente trabalhavam em escritórios e prédios por perto e passaram para tomar um café antes do expediente. Achar um motivo para começar uma briga com algum deles não seria muito fácil.
– Deseja mais alguma coisa, senhor? – disse o garçom, que provavelmente notara a demora de Tales em desocupar a mesa.
– Sim... – As mãos dele começaram a soar. – É... Eu queria mais um pedaço de torta, por gentileza.
O garçom saiu e trouxe outra fatia que pôs na mesa, como da última vez, mas, diferente desta, Tales comeu devagar, sem pressa alguma. Não só porque estava com menos fome. Precisava ganhar tempo e pensar no que fazer. Degustando pedaço por pedaço, ele acabou e ficou parado, olhando seu reflexo na caixa metálica dos guardanapos no centro da mesa. Já não sabia mais como agir, mas, qualquer que fosse a atitude que tomaria, teria de ser logo. Não poderia ficar o dia inteiro sentado ali.
– Gostaria de mais alguma coisa ou a conta? – O garçom voltou depois de alguns minutos.
Tales engoliu em seco.
– Conta.
O garçom anotou alguma coisa e entregou o papel onde estavam descritos os valores das fatias de torta, da xícara de café e o total a ser pago. Eram mais caros do que Tales achava que fossem. O garçom continuou parado ao lado da mesa, esperando. O rapaz olhou o papel, virando frente e verso, depois apalpou sua calça nos bolsos, como se estivesse procurando a carteira. Não tinha jeito. Era hora de falar. Ele poderia dizer que tinha esquecido sua carteira em casa e que não precisavam se preocupar, ele não se importaria em lavar toda a louça que quisessem. O dia todo se fosse preciso. Iria pagar com seu trabalho. Ele procurava as palavras certas, seu coração martelando contra o peito. Era só falar e rezar para que escutassem sua proposta.
– É... – Tales fitou o rosto do garçom, as palavras embargadas em sua garganta. Ele acumulava coragem para expô-las, mas não teve tempo de falar antes que a mulher chegasse.
– Ah... Aí está você! Desculpe pelo atraso. Estava sentada em outra mesa e não tinha reparado que era você. Ando tão distraída ultimamente. Posso ver? – Ela apontou para a conta.
Tales a entregou o papel e a observou examiná-lo. Tinha certeza absoluta de que não a conhecia. Aquilo só poderia ser um engano.
– Uma xícara de café e dois pedaços de torta por esse preço? Nossa! Espero que tenham sido muito bons. Mas eu vou pagar por ter feito você esperar. – Ela se sentou na cadeira do outro lado da mesa. – Pode trazer uma xícara de café com adoçante e acrescentar à conta, por favor? Pagarei tudo junto – ela falou para o garçom, que anotou o pedido e saiu.
A mulher se virou para Tales, sorrindo.
– Então, como vão as coisas?
– Desculpe-me, senhora. Acho que está cometendo um engano.
– Não, não estou. Queria falar com você mesmo.
– Eu a conheço de algum lugar?
– Não acha que essa é uma ótima oportunidade para conhecer? – ela falou, por pouco não dando uma piscadela de olho. De fato, para Tales, fingir que o conhecia para o garçom e pagar a conta não era uma maneira nada ruim de quebrar o gelo. – Bom, se faz questão de algo mais formal. – A mulher tirou da bolsa branca que carregava um cartão azul escuro e o entregou a Tales. No cartão, estava escrito um número de telefone e um nome acima de “agente de modelos”.
– Lara Morgan?
– Sim. Muito prazer – ela falou. – Seu nome é...?
– Tales. Tales Martini.
– Nossa... Lindo nome.
– Muito obrigado. – Mesmo com a timidez, uma pergunta não podia escapar. – Não quero parecer mal agradecido, mas por que você agiu como se me conhecesse e por que vai pagar minha conta?
– O quê? Uma pessoa não pode fazer uma gentileza por outra? – A mulher o interpelou de maneira amistosa. – Eu vi que você estava demorando demais para sair e reparei que estava meio constrangido. O dinheiro está curto e você foi surpreendido com os preços desse lugar, não foi?
O rapaz encolheu os ombros e abaixou o olhar, um pouco por vergonha, um pouco para reavaliar as próprias roupas. A falta de dinheiro estava mais evidente do que imaginava.
– Reparou?
– Reparei em muita coisa, para dizer a verdade.
Tales ficou um instante calado, pensando no que aquilo poderia significar. O garçom chegou com a xícara de café e a mulher tomou o primeiro gole segurando a asa com as pontas dos dedos. O jovem observou hipnotizado o jeito com que ela assoprava o líquido quente.
– O que quer dizer? – ele perguntou. A gentileza dela em pagar a conta não anulava o desconforto que era a ideia de ser observado.
– Eu reparei nos seus olhos – Lara falou, repondo a xícara no pires. – Você tem lindos olhos azuis, ombros largos e um queixo muito bem desenhado. Alguém já falou que você é muito bonito?
– Eu... Eu não sei. – Tales não sabia exatamente como lidar com a pergunta.
– Pois alguém deveria falar. – Ela o olhou nos olhos. – O que acha de pedir mais alguma coisa por minha conta? Uma fatia de bolo, mais uma xícara de café, talvez. Acho que temos muito assunto para conversar.
* * *
Dar ouvidos à Lara e aceitar sua proposta sobre o ensaio fotográfico envolvia muitos temores e incertezas. Diferente da maioria das pessoas que se encontravam na miséria, Tales não via uma oportunidade de trabalho sério e duradouro como algo animador. Ter um emprego era se relacionar com pessoas que conviveriam com ele e lhe fariam perguntas – e das quais ele sentiria falta quando precisasse ir embora. Era ter uma rotina que poderia não se acomodar às suas necessidades mensais de fuga. Uma vida normal era arriscada.
Entretanto, ele não podia dizer que estava arrependido, apesar das relutâncias iniciais. O jeito doce e compreensivo de Lara tornava ainda mais tentadora a perspectiva de sair um pouco do atoleiro miserável em que estava afundado e recobrar um pouco a vontade de viver. Depois de uma sensata negociação com a agente de modelos, Tales encarou o ensaio para uma campanha de roupas íntimas masculinas como mais um de seus trabalhos esporádicos. No fundo, não era muito diferente de capinar lotes ou carregar tijolos, só que com um pouco mais de glamour.
De fato, mesmo não sendo seu sonho de infância ficar seminu no meio de câmeras, se não fosse pelas fotografias, ele não estaria usufruindo do apartamento que Lara o havia emprestado no mesmo prédio em que ela morava, não estaria vivendo como achava que nunca mais viveria, nem comendo o hambúrguer triplo embalado para viajem que tinha comprado em uma lanchonete próxima.
Depois do almoço, Tales lavou a escassa louça que usara e se jogou no sofá para relaxar e aproveitar o resto do dia de folga que tinha pela frente. Ligou a televisão com o controle remoto e ficou alternando de canal até parar em uma propaganda de relógios de pulso masculinos. Ver homens fazendo poses em cenários criteriosamente escolhidos para combinar com os produtos o fez se lembrar de seu próprio ensaio e de tudo que conheceu naquele dia.
O frio do estúdio não colaborava com suas tentativas de lançar olhares próximos a algo que poderia ser qualificado como sexy. Força e músculos definidos, oriundos de sua condição peculiar, não garantiam ao rapaz segurança quanto à própria beleza. Sem dúvida, poses e expressões pretensiosamente provocantes não eram o seu forte, e ele se perguntava se estava obtendo sucesso na exposição daquela sensualidade que haviam pedido antes de começar.
Deve ter resmungado se o que estava fazendo não seria próximo à pornografia, porque o fotógrafo, um sujeito de nome Beto, meio afeminado e com uma câmera que lhe cobria quase todo o rosto, o olhou com ares de indignação e falou que o ensaio não tinha nada de vulgar. Dizendo que era uma arte corporal requintada para grego nenhum colocar defeito, continuou alvejando com flashes o modelo que rolava entre as almofadas em diferentes poses.
Lara ficou calada quanto ao comentário. Estava acompanhando a sessão de fotos muito quieta, não fazia nenhuma crítica e as sugestões eram relativamente raras, mas alguma coisa no seu olhar alertou os sentidos do jovem quando ele se virou para ela procurando por alguma aprovação ou indicação. Já naquele momento ele tinha ficado incomodado, um formigamento na pele não o deixando relaxar.
Tales balançou a cabeça, afugentando pensamentos que julgava inoportunos. Era grato por tudo o que Lara o proporcionou e não deixaria uma impressão gerar um atrito entre eles. A intenção da mulher não era fazer o mal, e, se ele agisse corretamente, poderia levar a situação de maneira que fosse construtivo para ambos.
Esteve absorto de tal modo em suas divagações que não percebeu que tinha começado o telejornal da tarde. A reportagem exibida mostrava pessoas em parques, quintais e outros locais abertos, todo mundo empolgado e encantado, olhando para cima com óculos escuros, chapas de exame de raios-X ou outros meios de proteger os olhos dos raios solares. No momento em que a imagem mudou para uma representação esquemática dos movimentos de rotação e translação da terra, Tales mudou de canal e se levantou, sem muito interesse por astronomia.
Tinha a intenção de pegar um copo d’água quando ouviu um som irritante semelhante ao de um sino soando repetidamente pelo apartamento. Demorou um pouco para notar que era o telefone fixo sobre a estante. Desde que tinha chegado, havia ignorado o aparelho a ponto de esquecer sua existência e se perguntou quem estaria ligando para aquele número. O jovem se aproximou e tirou o telefone do gancho, quase o deixando cair por segurá-lo muito delicadamente. Ele tinha passado por vexames, quebrando objetos involuntariamente devido ao desconhecimento da própria força, e, para evitar prejuízos, tinha adquirido o hábito de pegar tudo com a ponta dos dedos.
– Alô?
– Alô... Tales? – A voz do outro lado da linha foi imediatamente reconhecida.
– Lara? – O rapaz ainda se esforçava para não chamá-la de senhora. – Algum problema?
– Não. Nenhum... Desculpe, eu acordei você?
– Não. Estava assistindo. Posso ajudar em alguma coisa?
– Bom, na verdade, sim... Estava aqui sozinha e está um pouco entediante. Não quer subir para minha casa?
– Ir à sua cobertura? – Ele parou um pouco. – Para lhe fazer companhia, você quer dizer?
– Exatamente. O que acha?
Tales demorou um instante para responder.
– Se você quiser, eu posso ir.
– Ótimo. Traga alguma roupa de banho. Vou esperar por você. Beijos. – A mulher desligou, deixando o rapaz engasgado com um dilema. Ele repôs o aparelho no gancho distraidamente, sentindo-se pressionado entre a vontade de não decepcionar Lara e o receio do que poderia vir em seguida. Geralmente, gostava de agradá-la e por isso se esforçava na realização de favores, mas não podia ignorar que os pedidos dela vinham com uma conotação que transcendia as palavras anunciadas e que era difícil de ignorar. Passar uma tarde inteira com ela significava passar um tempo relativamente longo exposto a esses estímulos constrangedores de frases e olhares.
Tales respirou fundo e tomou a decisão. Ela era apenas uma mulher, e ele não conhecia nenhuma vítima fatal de flertes e insinuações de duplo sentido. O jovem saiu do apartamento e, depois de trancar a porta, caminhou pelo corredor rumo ao elevador, onde apertou o botão do último andar. Ele não possuía roupa de banho, mas estava vestindo shorts e uma camisa clara, não vendo necessidade de trocar por algo ainda mais informal. Quando a caixa metálica abriu em um estampido, dando passagem, ele andou em direção à larga porta da cobertura e tocou a campainha, que soou de forma pesada e solene pelo interior do recinto.
Ele ouviu passos se aproximando e, se alguém perguntasse, saberia dizer precisamente quando a pessoa de dentro chegaria à maçaneta; porém, se por um lado a abertura da porta não o surpreendeu, por outro o figurino de sua anfitriã provocou uma reação mais eficaz que uma surpresa para arrepiar seus pelos. Ela estava de biquíni, com uma tanga transparente na cintura que, longe de cobrir suas coxas torneadas, valorizava suas pernas e realçava suas curvas. O chapéu de abas largas e onduladas sombreava o sorriso acolhedor e o olhar misterioso oculto sob os óculos de sol. A visão, unida com outras sensações, aqueceu a pele do rapaz.
– Onde está sua roupa de banho?
– Bom, a verdade é que eu não tenho.
– Não? – Lara pareceu intrigada. – Venha! – Ela o pegou pelo braço e o puxou para dentro. – Lembre-me de comprar mais roupas para você.
A ideia de precisar de um novo banho de loja fez Tales se sentir ainda mais estranho ao entrar na sala fina e meticulosamente decorada. A iluminação natural que entrava pelas janelas emolduradas por cortinas brancas realçava as cores do ambiente, colaborando na harmonia de cada objeto, como os caros jarros pretos e brancos da estante, as esferas vítreas da mesa de centro que serviam de peso de papel para um punhado de revistas e o quadro de arte contemporânea na parede. O rapaz vinha sendo submetido a diárias duchas nos últimos tempos, o que não o impediu de se sentir deslocado, como se não estivesse limpo o suficiente para estar ali.
– Pode se sentar se quiser – disse Lara, vendo seu convidado continuar em pé perto do sofá. – Está com medo de que meu marido chegue e corra atrás de você com uma espingarda? – Ela terminou com um sorriso. A comicidade e o sarcasmo da colocação residiam no fato de Tales saber que ela era divorciada e morava sozinha. O motivo da separação ninguém nunca o contou, mas ele tinha suas suspeitas, afinal, não devia ser o único modelo com que a agente já tinha flertado, ou manteve no apartamento de baixo, acessível para ela como um hamster em uma gaiola.
– Estou bem assim. Obrigado.
– Você quer um refresco ou um refrigerante?
– Não, não quero. Agradeço.
– Está bem. Eu ofereceria uma cerveja, mas sei que você odeia álcool.
– Pois é – disse o rapaz, sendo que não era verdade que odiava álcool. Uma vez tinha até feito um teste com bebidas, se embriagando para ver se a fera ainda tinha ânimo para correr a noite inteira, matando o que encontrasse pela frente. Pela maneira com que acordou na manhã seguinte, o plano não tinha dado muito certo. O que o fazia evitar bebidas alcoólicas e outras entorpecentes era o receio do que poderia fazer durante o momento em que não estivesse sóbrio. Mesmo durante o dia e na forma humana, ele não confiava em si mesmo.
– Bom, está uma tarde muito boa para ficarmos aqui dentro. Venha comigo. – Lara se afastou, indicando o caminho, e Tales a acompanhou um pouco mais aliviado por sair daquela sensação desconfortante de intimidade de um ambiente fechado.
Os dois saíram por uma porta envidraçada, passando por baixo de uma espécie de alpendre sem telhas, cuja madeira de que era feito era pouco a pouco tomada por uma trepadeira um pouco seca para a época do ano. Do lado esquerdo estava a churrasqueira, atrás de um balcão, e, mais perto deste, havia duas pequenas mesas redondas, cada uma com quatro cadeiras e um guarda-sol. Além da piscina e das duas espreguiçadeiras, as pontas dos prédios mais altos eram vistas despontando acima dos arbustos muito bem podados que bloqueavam os muros.
– Amo esse lugar – Lara disse, passando bem perto do rapaz e o fazendo sentir sua respiração quente no ombro. – Passo maior parte do tempo aqui.
– É muito bonito mesmo. – Tales andou devagar até a borda da piscina, apreciando a vista. Pouco tinha entrado no apartamento de Lara e ainda não conhecia o jardim. Virando-se, viu que a mulher estava com os pés na água da piscina, na parte mais rasa que descia gradativamente como uma escadaria para a parte mais funda. Ela desceu mais um degrau, olhando para ele, e começou a desenrolar a tanga devagar, conscientemente chamando a atenção para o ato.
– Um dia como esse é um convite para um mergulho, não é? – Tirou os óculos e o chapéu, exibindo o cabelo castanho preso em um coque. Ela jogou os objetos em uma das espreguiçadeiras e deslizou para o meio da piscina. – Por que não vem?
Tales olhou para baixo e a mulher revirou os olhos.
– Não acredito que esteja com vergonha de ficar de cuecas na minha frente, não depois de tudo.
Recebendo aquilo como um desafio, o rapaz tirou a camisa e a jogou de lado. Fez o mesmo com o short e, diante do olhar de Lara, pensou se não seria do desejo dela que ele ficasse com ainda menos peças de roupa. Sem esperar por mais nenhum convite, esticou os braços e saltou em um ponto do azul, não muito longe da mulher, espirrando água para cima. Estar parcialmente submerso o fazia se sentir menos exposto.
– Belo mergulho – disse ela, vendo o modelo emergir. – Quando eu coloquei os olhos em você, na cafeteria, logo percebi que tinha um charme especial. – A mulher se aproximou dele, deixando um rastro de ondulações pelo trajeto e ficando cara a cara com o rapaz. Mesmo a água não impediu Tales de sentir o calor da pele dela, os batimentos cardíacos acelerados e o desejo que pairava como uma aura.
– Se você diz que tenho charme... – Ele automaticamente se afastou, recuando para a borda da piscina.
- Ah... Sim. – Lara o encurralou, o olhar ocasionalmente descendo do rosto para os ombros dele. – Tenho encontrado muitos talentos e você é um deles. Se quiser, posso ajudá-lo na sua carreira, caso decida se dedicar a isso.
– Não sei – disse Tales. O que não sabia, na verdade, era se voltaria depois da próxima lua. Cada vez que pensava, lamentava mais com a perspectiva de sair para se transformar e se debandar definitivamente pelo mundo, sem oportunidade de volta. Era uma infeliz possibilidade para quem estava se apegando ao que tinha. – Não sei se essa vida é para mim.
– Não se assuste. A vida dentro da indústria da moda parece ser uma rede de intrigas e inveja, mas dá para sobreviver e tirar muito proveito dela. – Lara se encostou a ele, falando em seu ouvido. – É só saber agradar as pessoas certas.
Com os dois corpos juntos, Tales girou cento e oitenta graus com ela, como um passo de dança, e se afastou para o meio da piscina.
– Eu... Eu vou pensar com carinho.
– Pense mesmo. Até lá, dá para fazer outras coisas com carinho. – A mulher voltou a se aproximar e Tales se esforçou para se esquivar, as marolas da água empurrando-o para qualquer direção. – Tales? O que foi?
– Nada... Eu só... – Ele deu um passo desajustado para o lado, vencendo a resistência da água que não apenas o detinha, como também o impedia de cair. Se não estivesse um pouco boiando, teria se esborrachado contra o piso de azulejos.
– Para onde você vai?
– Preciso... – ele balbuciou, usando os braços para se impulsionar rumo à escada. – Eu não estou bem. – Tales chegou aos degraus e apoiou as mãos no primeiro, ficando curvado, confuso com a agonia repentina. Não se lembrava de ter tido alguma vez semelhante sensação, não durante o dia.
– O que você sente? – Lara chegou mais perto e passou a mão pelas costas molhadas do modelo.
– Um pouco zonzo. – Tales tomou fôlego e engatinhou, subindo para a borda.
– Vem... – A mulher o ajudou a se levantar. Pisou na borda um pouco lisa e, com apoio da anfitriã, caminhou para a espreguiçadeira, onde se sentou com as mãos no rosto.
– Você quer um copo d’água?
– Se eu por qualquer coisa na boca agora vou acabar vomitando, mas não se preocupe. Acho que vai passar logo.
– Você tem pressão alta?
Tales balançou a cabeça, negando.
– Comeu algo diferente hoje que possa estar fazendo mal?
– Eu... Eu não me lembro.
– Nem está tão quente para ter insolação. – Lara tocou o queixo do jovem e levantou a cabeça, fazendo-o olhar para ela. – Você está me evitando?
– Como?
– Não finja que não está entendendo. – Ela pegou nos ombros molhados e o empurrou, jogando o peso do próprio corpo contra o dele e o fazendo se deitar de costas. – Não finja que não há nenhuma atração entre a gente. Nós nos damos muito bem e poderíamos estreitar essa relação, mas você nunca relaxa. Há algum problema comigo? – perguntou, um braço de cada lado para mantê-la erguida sobre o rapaz, que sentiu a dificuldade na respiração se acentuar.
– Lara... Por favor. Preciso ir embora. – Tales tentou se levantar.
– Por quê? Não precisa ter medo. Eu não vou lhe fazer nenhum mal. Prometo que não vou morder. – Ela o empurrou de volta e se apoiou completamente nele, pele contra pele. – Nada há nada de errado nisso. – A boca dela roçou pela bochecha do rapaz e, quando finalmente os lábios se encontraram, Tales viu o céu escurecer antes de fechar os olhos e partir. De certa maneira, ele tinha ido embora, mas não da forma que queria.
De repente, Lara foi jogada no ar, caindo na piscina sem ter oportunidade de saber o que tinha acontecido. Surpresa demais para uma atitude racional, ela continuou se debatendo no fundo, como se tentasse se livrar de amarras, até se recuperar do mergulho forçado e emergir a tempo de ver Tales escorregando da beira da piscina e caindo na água, sendo abraçado logo depois por uma sombra espessa que o envolveu, fazendo-o sumir em seu meio, e se espalhando como uma mancha de piche.
A onda escura eclipsou o azul dos ladrilhos e atingiu a mulher, que voltou para o fundo, oprimida sob o peso daquele volume misterioso. Aquilo se virou, girando no próprio eixo, e arrastou Lara consigo. Quando se deu conta, ela estava agarrada a um corpo peludo, cuja respiração marcava a subida e descida do peito em um ritmo sonolento. Parecia um grande urso encolhido na piscina, quase como um bebê ainda no útero da mãe. Lara estava encostada à barriga, os braços esticados sobre a lateral. As patas do animal, à direita e à esquerda, se uniam atrás dela, envolvendo-a em um estranho abraço.
Prendendo o fôlego por precaução, ela levantou as mãos e se esforçou para que as pernas a obedecessem. Andando de costas, descolou o abdome dos pelos e parou com cuidado para não tocar nas patas e acordar a fera. O medo embargava o grito e a visão a embevecia, de modo a neutralizar as reações mais bruscas. A mulher ouviu o barulho de água escorrendo e, se virando para o lado, viu a criatura levantando a cabeça, procurando por ar. O focinho era comprido e fino, lembrando mais o de um lobo do que o de um urso. Quando os olhos abriram – amarelos e hipnotizantes como a chama de uma vela –, Lara soube que não adiantava mais acreditar que não era notada.
Patas se moveram suavemente pela água e tiveram como resposta o deslocamento lento de um corpo humano ensaiando uma fuga. Era uma dança que tinha um rosnado baixo como trilha sonora. As patas se afastaram e as quatro tocaram o fundo, todos os membros se articulando para assumirem uma postura firme e aterradora, enquanto os olhos miravam a presa. Sem desviar a atenção do animal, Lara deu as costas para a escada e obteve certo êxito em esboçar alguns passos pretenciosos em direção aos degraus e, em um sentido mais amplo, em direção à porta.
Ela tocou o tornozelo na primeira elevação ladrilhada, levantando a perna, e se perguntou o que aconteceria no instante em que deixasse de fitar aquele olhar investigativo de predador curioso. Não vislumbrando muitas opções melhores para sua sobrevivência, Lara se virou e se impulsionou rumo à saída, mas, por mais que tentasse, não tinha condições de ser mais veloz que o bote armado de garras que explodiu da piscina. Antes mesmo que ela pudesse gritar, o lobo a envolveu pela cintura com uma mordida voraz e, sacolejando-a como um cachorro destruindo um rolo de jornal, puxou-a de volta para a água. O que era azul foi tomado por um jogo de sangue e sombras, negro e vermelho, exatamente como o sol que coroava o firmamento.
Chegando ao fim o encontro do dia e da noite, um jovem emergiu da poça de sangue e se arrastou pelo jardim. A nudez não deixava de ser uma alusão a um novo nascimento, mais um entre tantos outros que foram e que ainda virão. A repetição sistemática do processo estava revestindo cada vez mais seu coração de uma crosta de insensibilidade. As lágrimas não vieram ou qualquer resquício de culpa, somente uma sensação úmida de vazio no peito indicava que não estava totalmente indiferente à realização do que mais temia e da descoberta de que a lua cheia não era a única ameaça que despertava sua segunda natureza.
O rapaz não ousou olhar para trás, não queria encontrar nenhum corpo ou o que tinha sobrado de um. Levantou-se e pegou as roupas jogadas à beira da piscina. Olhando para frente, encarou a porta que se colocava diante dele como o início de um longo caminho. Além dela, Tales devia se livrar do sangue no chuveiro do apartamento e atravessar a sala, procurando não deixar rastros de sua passagem. Depois, havia o corredor, o elevador e, por fim, a portaria. Após esse trajeto, o que restava era o horizonte se alargando indefinidamente.
Ele se perguntou quanto tempo levaria para alguém encontrar o corpo, para descobrirem quem esteve naquele lugar pela última vez e onde estaria quando isso acontecesse. As questões eram muitas e pesavam como correntes em seu pescoço, juntamente com um “sinto muito”, cuja destinatária não estava presente para ouvir. Mas não havia tempo para refletir sobre tudo. Tales precisava se apressar para o próximo recomeço nessa sua vida cíclica, como cíclicos são os astros celestes.