A Bruxa do Cristal

Descendo por uma estrada sinuosa, atrás de uma pequena serra, nas cercanias da minha cidade, existe um descampado íngreme e verdejante margeando um tranquilo rio, onde descansa um antigo moinho, que lembra uma cabana velha. Este velho moinho se tornou o principal responsável pela lenda que acabrunha tal insólita paisagem, e que agora eu vou contar:

Muitos falam de uma bruxa que fica a vagar por aqueles meandros malditos, sobretudo à noite e pela manhãzinha, quando a neblina do rio é especialmente densa.

-Corre que a Azamora vem ai! - gritam os pais aos filhos pequenos, na tentativa de amedrontá-los e afastá-los de perto do rio.

-Quem fez isso? -Foi a Azamora! -responde um engraçadinho qualquer, para se livrar da resposta, desconversando...

E assim fica, por qualquer coisa, Azamora pra cá, Azamora pra lá... - de boca em boca. Até que um dia, coisas estranhas começaram a acontecer...

Luzes estranhas eram vistas perto do moinho, vultos sinistros e ruídos medonhos. Risadas e sussurros de origem incerta, bem como sensações de arrepios e de toques invisíveis.

Logo, um morador mais atuante - que futuramente com certeza pretenderá se candidatar a algum cargo público - reuniu todos na porta da velha igrejinha, na esperança de achar um otár... quer dizer, um corajoso exemplar masculino, para ir ver se a origem dos boatos tinha razão de ser. Candidatei-me a tal apalermada empreitada, já que necessitava mostrar a minha macheza para a Rosinha – a maravilhosa filha do João boca de cavalo, dono de uma chacarazinha perto de casa – Fiz isso, na certeza de que outros tantos homens destemidos fizessem o mesmo, e na escolha final e óbvia, não configuraria a minha pessoa, já que eu não era exatamente um exemplar de mister universo e coisa e tal, e eu seria apenas e eternamente lembrado como “um dos caras machos que se candidatou”. Dei com os burros n’água, quando percebi estupefato, que ninguém mais se oferecera para semelhante sandice!

Dois minutos depois, lá estava eu, me dirigindo com um arsenal antibruxas, de deixar com inveja Napoleão, para a margem esquerda do rio. Sim, isso mesmo, como ninguém se candidatou a tal empreitada, como já era de se imaginar, lá fui eu.

Emprestaram-me totó, como escudeiro e guarda-costas, o até então mais bravo cachorro da cidade. Um vira-latas pulguento e sem vergonha, que tinha a mania de perseguir todo mundo da cidade. A braveza dele durou até que avistasse a primeira bruma da tarde e o fantasmagórico moinho através da neblina, quando então, um grito fino surgiu do nada na nossa frente. Depois disso, não vi mais totó! Foram longos e árduos anos para ele adquirir a sua fama de bravo, mas bastaram poucos segundos para ele a perder. Como tudo na vida...

Desci acabrunhado - e sozinho - o morro que terminava na margem do rio, estava devidamente armado de uma inchada, um rastelo, dois chuchos (coisa de Chuchar - cutucar - em alguém), algumas pedras, um isqueiro, que descobri depois estar sem gás, e a imagem de um santo famoso lá de Budapeste.

Nem bem cheguei, e um outro dilacerante grito de horror, saído sei lá de onde, congelou a minha alma e expulsou a imagem do santo do papel em que estava impressa, de tal forma que me sobrara em mãos apenas um cartão em branco, imprestável até mesmo para a reciclagem.

Como correr? Eu estava perdido na neblina, e só enxergava a maldita cabana! Eu tinha de entrar... Sob pena de ser alvo mais fácil ali fora do que lá dentro. Eu estava agindo mais ou menos como faz um avestruz que enfia a cabeça na areia, e fica com o resto do corpo todo pro lado de fora. Assim, sem muitas escolhas, atravessei a porta da insossa choupana, cruzando o limiar entre a razão e a insanidade, embora eu me pegasse pensando mais de uma vez, se eu já não tinha atravessado essa fronteira.

Pois é, eu estava dentro da casa de Azamora, torcendo para que ela realmente não passasse de uma lenda, e qual não foi a minha surpresa, quando dou de cara com uma maldita bruxa de estilo "tradicional" bem na minha frente! Não tive tempo nem de ter esperanças!

Estilo tradicional, entenda-se: velha, corcunda, gagá, chapéu pontudo, vassoura, nariz comprido e verruguento! Papagaio! Vai ser azarado assim no inferno - pensei - e do jeito que entrei, já dei meia volta para sair. Mas, cadê a porta em que eu tinha acabado de entrar?

Azamora deu um risinho, daqueles que fazem você engolir seco e falar fino, como se fosse uma donzela. Quer dizer, analise a situação: preso dentro de uma cabana pulguenta, com uma mulher horrível (acho que era mulher, mas não colocaria a minha mão no fogo), as mesas e prateleiras cheias de ratos e baratas vivos, e cabeças e órgãos humanos empalhados, e, se eu já não estivesse ficando louco, os órgãos faziam discretos movimentos, como se ainda lhes restassem um quê de vida!... Inclusive, de pronto, identifiquei uma das cabeças como sendo a do Marivaldo, que todos pensavam ter ido virar jogador de futebol na capital, e pra quem eu devia 5 reais.

-Seja bem vindo, minha criança! - Falou a bruxa. Já que entrou de livre vontade em minha casa, por que não puxa uma cadeira e se senta?

A única cadeira em condições de ser usada naquela bagunça toda era a que sustentava a cabeça de Marivaldo! Acho que foi meio no impulso, ou no pavor mesmo, que resolvi atender ao pedido da bruxa, no receio de contrariá-la tentei agir o mais naturalmente possível...

Peguei a cabeça de Marivaldo, cuidadosamente, e coloquei-a no chão:

-Cadê os meus 8 reais? -Me cobrou de primeira! E ainda com os devidos juros. Ele de fato tinha perdido a cabeça.

-Depois falamos disso. -Ri sem graça. Isso lá era hora pra uma coisa dessas?!

A bruxa me serviu uma bebida - o que gentilmente eu dispensei - e se aproximou de mim, amistosamente:

-Você é corajoso, ou burro demais para vim aqui - disse ela, balancei a cabeça sorrindo de nervoso, pois não entendi se aquilo havia sido um elogio, uma pergunta ou uma afirmação...

Ela continuou:

-O que acha que vou fazer com você agora?

Engoli seco de novo. Mas respondi no reflexo:

-Me deixar sair, e ir embora pra casa?...

Ela enfiou a mão no decote , e puxou alguma coisa redonda do sutiã! Só me faltava essa - murmurei - foi quando percebi que não passava de uma bola de cristal!

Ela a colocou em cima da mesa, e disse:

-Observe. Observe atentamente menino...

Comecei a ver um grande vale onde cresciam, como se brotassem do chão, imensos cristais de quartzo! Eram brancos, rosas, azuis, vermelhos... Do tamanho de um homem, e até maiores do que uma casa! Era uma região desolada, tomada pelos cristais, e de onde até mesmo as nuvens do céu procuravam afastar-se, e isso criava um enorme círculo no azul do céu sobre os cristais. E, no meio do vale, havia um único ser vivo: Uma deslumbrante rosa azul!

-Traga-a para mim, e te libertarei. - disse Azamora.

Era isso, ou virar um eterno e macabro enfeite pendurado na parede da bruxa. Mais ou menos como viver no Brasil...

Azamora cuspiu no fogo que crepitava em sua velha lareira, e a este ato, abriu-se numa explosão, um portal que me levaria direto ao vale de cristal.

Pois desta forma, lá estava eu! À entrada daquele estranho lugar, e imbuído de uma ingrata missão da qual sequer fazia ideia do desfecho, embora a minha imaginação fosse suficientemente fértil para poder imaginar.

Desta feita, o vale começava por diminutos cristais, que iam aumentando à medida que se entrava mais para dentro. Primeiro, do tamanho de homens, e depois, tão grandes quanto árvores! No início da caminhada, o vale era até bonito, mas com o tempo, e quanto mais se penetrava naquela densa floresta de pedras, a coisa se tornava realmente sinistra... Os grandes cristais se entrecruzavam sobre a minha cabeça, formando um grande teto ou cúpula, que dificultava a passagem da luz por sua superfície translúcida. Isso jogava todo o ambiente numa penumbra multicor bizarra e claustrofóbica. Mas a coisa ficou feia mesmo, quando encontrei, na junção de dois caminhos, figuras humanas semicristalizadas, com sorrisos satisfeitos, imortalizados no rosto pétreo daqueles que tocaram nos cristais. Algo, ou alguma coisa, fizera com que tocassem naquelas pedras... E percebi que isso não era uma coisa muito inteligente de se fazer. Visivelmente, os cristais sugavam a energia vital daqueles que os tocavam, e pareceu-me que mesmo um leve esbarrão seria o suficiente para condenar para sempre alguém que por ali se aventurasse a passar. Entendi então, porque a bruxa não queria por os pés ali.

Ainda perdido em meus pensamentos, eis que um grande cristal ao meu lado se acende, como se fosse uma imensa tela a reproduzir uma perfeita imagem tridimensional!

Ah...sim... Caminhava em minha direção, uma bela imagem da doce Rosinha, com todas as características da realidade, até mesmo o perfume que ela usava alcançou o meu apaixonado nariz... Era ela sim... Ainda mais maravilhosa! E não fui eu, afoito, em sua direção, para abraçá-la e beijá-la, quando, de tanto apanhar e sofrer na mão dela lembrei que jamais a Rosinha verdadeira iria me dar alguma bola, ou mesmo caminhar com tanta sensualidade e com os braços erguidos na minha direção, reclamando um abraço, que num lapso de clareza, percebi tratar-se de uma armadilha bem arquitetada, e na minha hesitação de cair nela, o cristal brandiu e urrou, e uma estranha mão saiu de dentro dele tentando me agarrar, que o mesmo se partiu em mil pedaços bem pequeninos!...

-Parabéns, criança! - era a voz de Azamora, que surgiu do nada. - Você conseguiu, e venceu o teste do cristal. Agora, traga a rosa azul para mim!

A bela flor estava a poucos metros de mim. Crescia impávida e altiva, de pétalas robustas e brilhantes, de um azul difícil de descrever.

Assim que a colhi, fui automaticamente transportado de volta para o velho moinho, casa de Azamora.

-Cadê os meus 10 reais?! - Outra vez fui cobrado pela cabeça de Marivaldo, mas desta vez, preferi ignorá-lo.

A bruxa avançou afoita na minha mão, e arrancou dela a bela flor que eu trazia. Mergulhou as pétalas da rosa num pequeno cálice com água quente, e tomou!

E não é que aquele asqueroso ser se transformou, lentamente, numa linda e bem abençoada mulher, diante dos meus olhos incrédulos! Uma verdadeira modelo de dar inveja a qualquer mulher sob este céu, das cataratas do Iguaçu até as montanhas do Himalaia, passando também por Bombaim, Praga, Tóquio, Atlantis, e qualquer outra cidade que um dia possa ter abrigado uma ninfa grega.

-Você está livre, e a sua cidade também! - disse Azamora.

E dizendo isso, partiu feliz, disse-me que iria tentar a sorte na cidade grande, num tal programa de televisão chamado big bode, ou pingue-pongue, ou algo assim...

De fato, algum tempo depois, pareceu-me tê-la visto apresentando um programa de entrevistas, mas não dei maior atenção ao caso.

Quanto a Marivaldo, deixei sobre a mesa os 10 reais da minha dívida, que na verdade eram cinco, mas devido a alta do mercado de ações e dos juros exorbitantes, assim como o aumento do salário mínimo, viraram 10. Três anos depois, lembrei-me de que ele não tinha mais braços e nem pernas, e voltei à velha cabana para deixar o dinheiro mais perto da sua cabeça... Mas, ele já tinha atravessado meio cômodo com a língua, e no exato momento em que cheguei, ele escalava com certa dificuldade o pé da mesa, e ainda proferia palavrões escabrosos usando o meu nome, e decidi voltar para trás, mas não sem antes parabenizá-lo por semelhante habilidade.

O que tempos depois encontrei ele e totó, juntos num circo, fazendo os números da cabeça que anda sozinha e do desaparecimento, respectivamente.

Quanto a Rosinha, desisti dela... Sabe né... Beleza não põe a mesa... E no mais, na correria de Azamora, ela deixou uma pequena pétala da rosa cair no chão...

E claro, eu a peguei.... E dela fiz um delicioso chá para Josefina tomar... (Josépha Imaculada Cajueiro da Mata Grande Xavier de Paula Miguel Gabriel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, era a menina mais feia do bairro inteiro! Porém, era um doce de pessoa, e me amava em segredo... E isso era o que importava).

Hoje, vivemos no principado de Mônaco, e sou sustentado por Josefina, que adotou um nome mais condizente com a sua atual beleza, e vive de passarela em passarela, ganhando rios de dinheiro. E me amando... Não mais em segredo!

London
Enviado por London em 29/10/2018
Código do texto: T6489258
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