Facas
Dois jovens estavam exultantes com o casamento. Liberdade para tocar a vida juntos, da melhor forma possível, sem mais rédeas ou limitações por parte dos pais ou irmãos. Dali em diante tudo seria exatamente do jeito que desejassem. Mas, como começar a vida de adulto não é fácil, tiveram de fazer muita pesquisa até encontrar um sobrado em ótima localização e com um aluguel muitíssimo atrativo. Sem pestanejar, negociaram com a imobiliária, assinaram o contrato e se mudaram para lá. Após árduo trabalho, e contando com a ajuda de amigos e parentes, conseguiram organizar as coisas nos seus devidos lugares e iniciaram sua nova rotina como casal.
Como quem já casou deve bem saber, o começo é ótimo: muito amor e carinho o tempo todo, e tudo tinha um toque de redescoberta e novidade. Era maravilhoso! Acordar diariamente ao lado de quem se ama, organizar as coisas juntos, ir e voltar do trabalho para casa, assistir filmes sozinhos ou com os amigos até tarde nos finais de semana, comer besteira e conversar bobagens… Até as tribulações eram divertidas, como resolver contas e vazamentos, sempre em cumplicidade e companhia. Sensacional!
Mas - como quem já casou também deve bem saber - as mil maravilhas têm prazo para acabar. As diferenças surgem e alguns desentendimentos vêm junto. Afinal, mesmo casados, são duas pessoas distintas, cada uma com seus defeitos e manias. Não tardou muito, e a primeira discussão aconteceu. Foi tão séria que o rapaz sequer quis dormir com a moça: foi deitar-se no sofá da sala.
Na manhã seguinte à briga, ambos constrangidos, evitavam trocar palavras e olhares. Usaram o banheiro na ordem de praxe: ela primeiro, ele depois. Arrumaram-se e partiram para a cozinha tomar café. Foi aí que algo estranho foi notado:
- Você sabe onde está a faca de pão? - Ela questionou.
- Não… A última vez em que a vi, estava na gaveta, como de costume. - Ele respondeu, com um tom de voz árido, sem delongas. Intrigada, a moça debruçou-se sob a pia a procurar, e nada. Checou no meio das louças lavadas no escorredor, nas prateleiras da parede, no armário dos copos, no balcão das panelas… Nada, em lugar nenhum.
- Desapareceu! Não sei onde foi parar! - Exclamou, decepcionada, mordiscando as unhas.
- Esqueça isso. Seu café está esfriando. - Disse ele, finalmente lançando um olhar, de soslaio, para ela. Ela, apercebendo-se desta abertura, fez a carinha de emburrada que sabia que ele amava e lançou-se sobre a cadeira ao seu lado, mexendo ruidosamente o café na caneca de cerâmica com a colher de metal. Sorriu quando recebeu um cafuné na orelha direita, também arrancando do seu marido um sorrisinho de canto de boca.
Tudo começava a se acertar novamente. Mas a faca continuava desaparecida.
***
As semanas foram passando e, como em grande parte dos casais, altos e baixos se sucediam. E outras facas sumiam. No começo, não compreendiam o porquê do sumiço, e isso inclusive foi matéria para alguns bate-bocas, com acusações mútuas de desorganização que poderia estar causando o problema. Mas, conforme a coisa persistia, repararam que as facas perdiam-se quase sempre após as discussões mais sérias. Intrigados, consultaram a imobiliária sobre algum incidente sobrenatural naquela residência no passado, ao que receberam uma resposta negativa, sob risos da atendente do outro lado da linha. “Decerto acharam que somos loucos”, disseram um ao outro. E continuavam sem entender o que estava acontecendo.
Resolveram conversar com amigos e parentes sobre o caso, e recebiam vários tipos de opinião a respeito: desorganização, acidente, distração e até sonambulismo. Mas nenhuma sugestão realmente útil. Uma tia mais espiritualizada resolveu fazer algumas orações na casa, e chamou até os confrades de sua religião para um ritual ali. Porém, de nada adiantou: na divergência seguinte, mais uma faca desapareceu.
- Logo a minha faca de porcelana favorita! - Lamentou o rapaz, coçando a nuca. Seus churrascos não seriam mais os mesmos sem ela.
A situação agravou-se tanto que chegaram ao ponto de pedir facas emprestadas. “Engraçado que estas não somem!”, disse a moça, estranhando mais ainda o fato. Somente as facas de sua propriedade se perdiam. Fez questão de esconder no sótão a última faca que subsistia ao sumiço. “Essa não vai embora!”, disse resoluta a si mesma.
De fato, ela não sumiu. Foi encontrada juntamente com todas as outras que haviam desaparecido.
Deixe-me contar como:
Numa noite de muita chuva, a maldita goteira da sala voltou com força. Por uma banalidade oriunda disso, houve novo desentendimento e briga severa entre o casal. E, mais uma vez, ela foi dormir no quarto e ele na sala. Enquanto ela chorava baixinho na cama, pensando em como as coisas estavam começando a desandar entre ambos, cansou de tanto se assustar com os raios e trovões e caiu no sono.
Acordou horas depois, com uma goteira sobre si.
Levantou-se furiosa, afastou rapidamente a cama da direção das gotas e foi ao banheiro urinar, para dar tempo de pensar no que fazer em seguida. Sonolenta e aborrecida, acendeu a luz e viu que a portinhola de acesso ao sótão pendia do teto, completamente aberta. Intrigada, arrastou a escadinha até lá e resolveu subir. “Aquele idiota deve estar aqui em cima, tentando arrumar alguma coisa. Arrumar o quê? Ele não sabe de nada a respeito. Nunca sabe!”, resmungava em pensamento, sacudindo o celular para acender a lanterna e iluminar o recinto.
O sótão estava tremendamente barulhento por conta da chuva forte que batia nas telhas baixas, e ela suspirou de cansaço e raiva ao ter de subir e engatinhar por aquele teto empoeirado. Lançou a luz do telefone por todos os lados, mas não havia ninguém ali.
Digo, não havia; mas parecia haver.
A moça sentiu uma presença muito forte no local logo após jogar o facho de luz num canto obscuro dali. Como muitas caixas mofadas e bagunça jaziam no local, aquele canto estava parcialmente obstruído e ela não conseguia vê-lo completamente. Gritou o nome do marido, mas não obteve resposta. Já se sentia mal por estar naquele lugar claustrofóbico e empoeirado, e a tal presença que sentia lhe despertou um sentimento de medo crescente, fazendo-a voltar rapidamente para trás e descer pela pequena escada aos tropeções, quase caindo. Travou a portinhola do sótão, sacudiu a poeira das roupas e foi à sala chamar o marido. Acendeu a luz do cômodo e pôde vê-lo sentado na poltrona, voltado na direção da janela, em silêncio. Aproximou-se dele e sacudiu-o.
Sem resposta.
- Mas que sono pesado é esse? Acord…! - Pausou abruptamente, soluçando de pavor. Lançou-se ao chão ajoelhada e atônita, quase sem forças, quando viu seu marido morto com uma dúzia de facas cravadas no peito. Eram suas facas desaparecidas. Todas elas, inclusive a que escondera no sótão.
Atordoada e sem conseguir exprimir um único som, voltou para a cama, em estado de choque. Estava fora de si, não sabia o que fazer. Encolheu-se sob as cobertas e permaneceu acordada a noite toda; somente pela manhã é que dormiu novamente. Acordou na noite seguinte e, finalmente voltando a si, chorou copiosamente e foi buscar ajuda. Ligou para a polícia, que não tardou a aparecer. Os agentes, avaliando a ocorrência, removeram-na dali, bem como o corpo inerte do seu marido.
Ninguém nunca teve uma explicação para o caso, que foi definido como inconclusivo pelas autoridades. A hipótese de suicídio foi descartada, pois a perícia avaliou que as facas penetraram lentamente e em sequência no peito do homem, inviabilizando uma ação consciente e sustentada do mesmo, por tamanho prazo. Homicídio foi a suspeita mais plausível, mas nenhuma pista ou evidência foi encontrada para sustentar essa versão ou apontar para um culpado.
E esta é a terrível história deste pobre casal. O sobrado foi dado como assombrado pelo povo da vizinhança. Digo, já era dado por assombrado. O casal é que não sabia disso. Nem o pessoal da imobiliária quis dizer, por razões óbvias, porém era por isso que o aluguel estava tão abaixo do preço praticado na região.
Somente após muito tempo é que o imóvel foi alugado novamente, mas como manifestações suspeitas ocorreram novamente, finalmente os seus proprietários resolveram demoli-lo, e hoje o terreno nu está à venda.
Abaixo do preço de mercado.