O sonho que o binóculo não mostrou

Ally teve um sonho diferente naquela noite. Pelo que seu pai falava a habilidade de sonhar era um fato novo para o seu povo e isso tornava tudo ainda mais assustador.

No começo somente os humanos podiam sonhar, mas quando as criaturas como ela começaram a se casar com humanos essa habilidade passou para os descendentes. Mas antes mesmo deles adquirirem essa capacidade os sonhos já eram de grande importância. Todavia os valorizados não eram os sonhos que são sonhados pelo corpo cansado. Eles valorizavam os que eram sonhados pela alma enquanto os olhos estão abertos. Os que são desejos para o futuro. Por algum motivo os humanos muitas vezes abriam mão desses sonhos ou a própria vida os tirava. Esses sonhos eram alimento...

O sonho que Ally teve naquela noite foi uma mistura dos dois tipos. Foi um de alma, mas também de corpo cansado. Além disso, ainda teve traços dos sonhos do pobre menino que ela viu morrer mais cedo...

*

A chuva havia ficado mais forte e isso espantou os curiosos que rodeavam o corpo caído no chão. Ally, de pé do lado da placa com o nome da rua, poderia facilmente ser confundida com um dos observadores se alguém a enxergasse, porém ninguém via a linda mulher de cabelos levemente ondulados e de olhos negros como a noite. Talvez se alguém a visse estranhasse o binóculo que ela usava pendurado no pescoço ou o fato da chuva não molhá-la.

-Natalie querida, venha comigo. -disse ela chamando a criança que olhava hipnotizada para uma das poças formadas pela chuva. A menina foi em direção a água empossada logo que saiu do apartamento. Foi preciso chamar mais uma vez.

-Desculpe, mãe. –disse a menina atendendo o chamado e assumindo a mesma forma invisível de Ally. Natalie era uma criança alegre e que falava muito. Tinha os olhos brilhantes de quem achava que o mundo é uma grande aventura. Esse brilho ficava ainda mais intenso quando falava com a mãe – Eu gosto muito da chuva, de água, de poças de água e de tempo frio. A senhora brinca comigo depois? O Nicky também pode brincar?

Ally desconversou e pegou na mão da filha. As duas atravessaram a multidão com facilidade. As pessoas apenas sentiam um suave vento, que atribuíam a chuva, quando elas passavam, ou um leve arrepio.

Quando ficaram de frente para o morto, que estava coberto por jornais esperando o resgate, viram além do sangue que manchava os jornais e se espalhava pelo chão uma luz rosada que parecia sair do corpo tipo fumaça saindo de comida quente.

-Ele está dormindo não está, mamãe? Essa luz rosada são os sonhos dele? Ele não se importa da gente pegar? Porque ele está embrulhado com jornais e não com lençóis? - perguntou Natalie inocentemente.

-A mamãe está com dor de cabeça, querida. Não faça tantas perguntas. E sim, essa luz são os sonhos dele e ele não se importa da gente pegar. –disse Ally suspirando, lembrando do que havia visto pelo binóculo. Apesar do muito tempo em que fazia isso, ainda ficava meio triste em alguns casos. Como no caso desse menino.

Os curiosos viam apenas um corpo de um menino de rua que foi atropelado . Mas apenas Ally, por causa de seu binóculo especial, conseguia ver os sonhos que não se concretizaram. Ela não apenas os via, se alimentava deles também. Assim como sua filha.

Estava na janela de seu apartamento quando o atropelamento ocorreu. Foi ela que ligou para a ambulância, pois os curiosos que rodeavam o menino apenas pareciam preocupados em olhar o que ocorria ou então registrar em seus celulares. Outros, por se tratar de um menino de rua, apenas passavam como se nada tivesse ocorrido. O primeiro a fingir que nada ocorreu foi o responsável pelo atropelamento.

O garoto morreu um pouco depois da ligação, já fazia um tempo e mesmo assim o resgate não havia chegado. Ally ficou com pena do menino, principalmente depois que olhou com seu binóculo na direção dele. Ele tinha tantos sonhos...

O binóculo mostrou para Ally que o garoto tinha o sonho de ser jogador de futebol. A mulher viu o menino chutando latinhas na rua e fingindo que era uma dos jogadores que ele conhecia somente por nome. Também o viu olhando de forma triste para meninos da idade dele que jogavam bola no campinho de areia. A única coisa que restava era olhar, pois os meninos nunca o deixaram jogar com eles. Ally viu que o garoto até tentou se aproximar uma vez e pedir para jogar, porém acabou sendo expulso a tapas. A mulher baixou o binóculo e respirou fundo. Sentiu uma lágrima escorrer pelo seu rosto.De todas as coisas que viu em sua vida aquela foi uma das mais tristes.

Os sonhos não realizados saiam do corpo da pessoa assim que ela morria. Os humanos não conseguiam ver, mas ela e seus semelhantes sim. Era isso que os alimentava. O local perfeito para se nutrir era o cemitério. Durante sua vida Ally viu mais velórios que qualquer pessoa. Assim como através do seu binóculo viu muitos sonhos que morreram juntos com o dono.

Ela viu pessoas que sonhavam ser bailarinas, pintoras, cantoras e muitas outras coisas, mas que morreram sem nunca terem realizado esses desejos. A maior parte não os realizou porque estavam presas na prisão do medo de arriscar. Enquanto a humanidade permanecesse nessa prisão seu povo sempre teria alimento...

Mas o caso do menino era diferente. Ao contrario das pessoas que não concretizavam os sonhos por medo, ele nunca teve chance de realizá-los. Viveu praticamente a vida toda invisível para os que o viam pedindo esmolar e correndo pela rua chutando as suas latinhas.

Talvez se os curiosos vissem o que ela viu, principalmente o responsável pelo atropelamento, eles conseguissem sentir um pouco de amor pela vida que se foi.

Mesmo com muito pena do menino, Ally e a filha precisavam se alimentar. Elas consumiram os sonhos. As duas sentiam as forças invisíveis que formam os sonhos saindo do menino e entrando em seus corpos. Naquele dia e nos próximos ela não iria precisar ir atrás do que comer.

Mas mesmo sabendo que a alimentação era uma necessidade, uma parte de Ally ainda sentia como se estivesse roubando os sonhos do menino, mas outra parte dela dizia que aquilo era uma forma dos sonhos não morrerem junto com o dono, pois era como se uma parte do garoto ficasse com ela.

Seria mais fácil se tivesse apenas consumido os sonhos. Não tinha nada que a obrigasse a olhar pelo binóculo e saber exatamente todos os sonhos do garoto, mas fez isso porque era preciso. Porque precisava lembrar que o morto era único, assim como seus sonhos. Precisava olhar pelo binóculo, que seus pai as vezes chamava de binóculo da empatia, para não se tornar parecida com um dos curiosos que não via o morto como um semelhante. Que não lamentaria o ocorrido. Que veria o corpo e mais tarde daquele dia comentaria sobre a morte do menino como se comentasse algo corriqueiro.

Aquele binóculo havia pertencido ao seu pai e antes disso ao pai dele e assim por diante. O objeto estava na família há muito tempo. Ele havia pertencido ao fundador da família, um ser de aparência humana que havia chegado naquela dimensão há séculos. Chegou em busca de uma forma diferente de alimento e encontrou bem mais que isso. Ou isso teria ocorrido há milênios? O tempo para a sua raça era contado de forma diferente...

-Mamãe?- a voz de sua filha a tirou de seus pensamentos -Está tudo bem? A senhora está em silencio para não acordar o menino?

-Sim, querida. – mentiu Ally olhando para o corpo e para os que se aproximavam para o remover. Finalmente haviam chegado para levá-lo.

Natalie ainda não entendia as coisas direito, apenas sabia que tinha que se alimentar, assim como a mãe. Ally teve o cuidado de descer com a menina somente quando o corpo já estava coberto. Natalie não entendia como o mundo poderia ser cruel e nem o que exatamente eram os sonhos com que se alimentava e nem que o menino nunca mais acordaria . Quando chegasse a hora explicaria tudo para ela, da mesma forma que seu pai lhe explicou. Mas Ally não planejava fazer isso logo, pois a menina era tão alegre e risonha. Era melhor ela ficar em seu mundo de inocência.

E quanto a seu outro filho. Bem, Nicky era totalmente humano, não precisava se alimentar de sonhos como ela e Natalie.

*

Quando abriu a porta do seu apartamento viu seu pai sentado na poltrona com Nicky em seu colo.

-O que vocês ficaram fazendo enquanto a gente tava fora?- perguntou Natalie alegremente

-Estava contando ao meu querido neto histórias do nosso povo e tentando ver se ele já desenvolveu alguma habilidade.

-Desista, papai. O Nicky é totalmente humano. – disse Ally. Ela não queria que o pai criasse expectativa em relação ao neto desenvolver as habilidades que seu povo desenvolveu ao viver na Terra. A raça de Ally conseguia ficar invisível e enxergar no escuro, tudo isso eram mecanismos para que conseguissem seus alimentos sem chamar a atenção de seus companheiros humanos

.Nicky era totalmente humano e não era filho dela. Ally o achou em um beco escuro, quando voltava para casa. Alguém o havia abandonado entre os sacos de lixo e restos de comida. Mas seu pai não sabia disso.

-Não acredito nisso. Sinto o sangue dos nossos antepassados nele. Você não se lembra, mas você tem um primo que até os 18 anos, segundo a contagem dos humanos,vivia como as pessoas normais, não tinha habilidade nenhuma e nem precisava se alimentar como nós, mas depois se tornou um dos mais poderosos. Com o Nicolas será assim. Lembro que...- seu pai continuava falando mais Ally estava perdida em seus pensamentos novamente. Pensava na época em que achou Nicky.

Naquela época seu pai morava longe. Ele apenas veio morar com a filha após ele ficar viúvo. Foi nesse momento que conheceu os netos. Ally o deixou acreditar que Nicky era dela assim como Natalie. Ele nunca questionou sobre a paternidade dos netos.

-Os filhos de minha filha meus netos são, os filhos de meu filho serão ou não. – Ally lembra de ter ouvido o pai dizer certa vez esse antigo provérbio e depois completar- Eles são meus netos não importa quem seja o pai, já que você é a mãe. No caso do filho do seu irmão tenho minhas dúvidas se o menino é mesmo dele... Por isso o binóculo tem que ir para a Natalie ou para o Nicolas.

Ally sentiu uma pontada na cabeça por causa das lembranças. Por algum motivo ao pensar em como achou Nicky se lembrou do garoto morto. Precisava dormir.

*

No começo do sonho Ally se viu em um lugar que não conhecia. Estava tudo meio nublado. No meio da neblina era possível ver uma figura sem forma definida sentada em uma pedra. A forma falava:

-Os seres humanos sempre se sentiram únicos em todo o Universo. Não foram capazes de perceber que você não é um deles, querida Ally, porque não são capazes de olhar para fora deles mesmos. Olhe para fora, Allyce. Veja o que ainda não viu.

Se espantou de ser chamada sem ser pelo apelido. Apenas conseguiu sussurrar:

-Quem é você?

-Eu sou o Tempo e as memórias, querida.

Antes que pudesse se recuperar do espanto da informação a figura mudou. Viu sua filha usando uma venda em seus olhos. Na venda estava escrito a palavra inocência em letras garrafais. Ao seu redor muitos corpos, alguns cobertos por jornais e outros não. Mesmo com os olhos vendados a criança parecia brincar no local sem perceber os cadáveres.

-Eles estão dormindo, não estão, mamãe? Meus saltos não vão os acordar?- perguntou a criança inocentemente depois de ter dado dois saltos para chegar mais perto dela.

A criança não era a única no local. Haviam pessoas que iam de um lado para o outro ignorando os cadáveres e haviam outras que batiam fotos e algumas até mexiam dentro das barrigas abertas dos corpos como se procurassem alguma coisa ou como se tivesse alguma curiosidade mordida e quisessem ver os órgãos internos de perto . Ally lembrou-se dos vídeos e fotos de vítimas de acidentes que por vezes se espalhavam pela web. Lembrou dos que batiam foto do corpo do menino e não faziam nenhum movimento para ajudar. Mas as coisas naquele sonho eram no limite da loucura. Começou a notar que algumas pessoas estavam com celulares grudados pelo corpo, por baixo da pele, de uma forma que celulares e pessoas formavam um só ser estranho. Um homem que passou por ela tinha um celular no lugar de um dos olhos dele.

Quando a cena não poderia ficar mais surreal, uma moça muito bonita se aproximou de um dos corpos e sem o menor respeito roubou o colar e os anéis que ele usava. Um dos anéis ficou preso e ela cortou o dedo sem a menor cerimônia e colocou o objeto ainda ensaguentado no dedo,. Com a outra mão livre bateu uma selfie sem nenhum sentimento . Ally sentia náusea devido a tudo aquilo. O ser humano estava banalizando a morte de outras pessoas, dos seus próprios semelhantes.

Tudo mudou novamente. Viu uma versão mais jovem do menino que morreu. Ele estava em um lugar muito escuro e sujo. O lugar que chamava de lar. Estava vendo o que o binóculo não mostrou. Existem coisas que são para serem vistas com os olhos da alma.

Ally não sabia como, talvez junto com os sonhos que sugou tenham vindo as lembranças, pois ela estava revivendo as memórias do garoto.

-Mário, o nome dele era Mário.- ela se viu falando enquanto seguia a pequena figura que se direcionava há um dos quartos da casa improvisada. Nesse quarto encontrou uma mulher caída no chão. A mãe dele.

A mulher estava caída no meio da sujeira. Perto do corpo Ally viu uma seringa largada ainda com algo dentro. Uma entre outras. Mário chamava a mãe. Achando que dormia...

Mário e Ally se assustaram no mesmo momento. Com o choro de um bebê. A mulher reconheceu o choro imediatamente. Era seu filho adotivo Nicolas.

Tudo mudou novamente. Dessa vez viu o menino com Nicky no colo vagando pelas ruas. Vislumbrou ele tentando parar as pessoas na rua para pedir ajuda:

-A mamãe não acorda há dias e meu irmão não para de chorar... Deve está com fome... O senhor poderia me ajudar? Senhora não poderia o levar e o alimentar? Você...- a voz do menino era baixinha e facilmente ignorável pelos que passavam. Nem o choro do bebê os comovia. A verdade era que ninguém se aproximava muito devido ao cheiro conseqüência dos dias sem tomar banho.

Em um dado momento Mário desistiu de pedir ajuda e foi em direção ao beco. Deixou o irmãozinho deitado entre os sacos de lixo enquanto revirava a lata. Estava meio escuro.

-Vou procurar algo para você comer, Bruninho.

“Então esse era o nome dele”- pensou Ally pensando que sempre achou que seu filho tinha cara de Nicolas, nome que assim como Natalie, foi dado em homenagem a um de seus antepassados.

Ele se afastou para as latas mais distastes. Foi nesse momento em que Ally reviu o momento em que pegou o filho no colo e o aceitou como sendo seu. Mas viu mais uma coisa. Enxergou Mário escondido vendo o irmão sendo levado embora. E viu nos olhos dele o sonho que o binóculo não mostrou.

*

No dia seguinte Ally ainda sentia uma leve dor de cabeça por causa do sonho. Algumas partes ainda estavam confusas. Pensava em como aquele menino que morreu na frente do seu apartamento era irmão de seu filho. Ele morreu há poucos metros do irmão sem saber. Como a vida era... Mas desde o começo sentiu um tipo de amor pelo menino, mesmo antes de saber.

Ally viu com o binóculo que Mário queria ser jogador de futebol, ter amigos e tantos outros desejos que não se realizaram. Mas o sonho mais importante não viu. O garoto sonhava com o irmão tendo uma vida melhor. Ally, exatamente quem se alimentou dos outros sonhos, conseguiu o realizar. Quando viu Nicky aquela manhã era como se Mário olhasse para ele também.

*

Esse conto foi publicado originalmente no DTRL 30, estou publicando novamente agora com algumas alterações e correções.