Festa dos Mortos

O cemitério vivia seu dia atípico: estava lotado de gente passeando entre suas ruas e quadras. Uma multidão barulhenta de pessoas, desde velhinhos saudosos a crianças estupefatas, andava de lá para cá, visitando os túmulos dos parentes, vizinhos e amigos. O sol forte da manhã realçava o colorido das flores, bandeiras e enfeites que ornavam desde os túmulos mais simples, cada qual com sua cruzinha enferrujada enterrada no chão nu, aos mausoléus mais altos, com seus grossos portões de ferro e paredes revestidas por pedras polidas. Vez ou outra uma cantoria irrompia aqui e ali, e grupos se reuniam em procissões e orações. No ar, os aromas da culinária local se encontravam, levitando dos banquetes conduzidos improvisadamente em todos os cantos. Embora fosse um lugar quase sempre lúgubre, o cemitério naquela ocasião explodia em vida e alegria: era o dia da Festa dos Mortos, realizada todos os anos pela comunidade que habita uma tradicional e paradisíaca ilhota do litoral.

Por conta deste evento, um antropólogo vindo de muito longe foi para lá acompanhar in loco a celebração, e estava extasiado com tudo o que via e sentia. Buscara por muito tempo em sua universidade o financiamento necessário para a longa viagem, onde finalmente poderia ver de perto aquilo que conhecia apenas por livros e conteúdo multimídia. Não sabia explicar o porquê, mas aquele povo e seus costumes lhe fascinavam desde que teve contato com eles pela primeira vez, num programa de TV que assistira quando criança. O fascínio era tamanho que jamais o esquecera e, depois de crescido, o inspirou a estudar antropologia com especialização naquela cultura. Por tudo isso, sentia em seu peito uma torrente de emoções, e anotava e fotografava tudo quanto pudesse. Interagia com as pessoas, ria e se divertia: era a conjunção perfeita entre trabalho e lazer.

E, desta forma, passou o dia inteiro ali, desde manhã até de noite, quando se encantou com as procissões luminosas, as grandes tochas e olorosos incensos. Só tencionou ir embora quando não restava quase ninguém no cemitério, e o silêncio habitual retomava seu lugar. Caminhando com dificuldade graças à escuridão e aos muitos e tortuosos caminhos, enfim chegou ao pequeno prédio da zeladoria, que ficava ao lado do portão de acesso. Feliz e satisfeito por tudo o que vivenciara naquela data especial, fez questão de assinar o livro de visitantes, enquanto puxava assunto com o vigilante noturno:

- Uau! Que festa, ein amigo? - Disse, enquanto debruçava-se sobre o livro, escrevendo rapidamente uma série de elogios ao local.

- Hum. - Resmungou o vigilante, um pouco desconcertado com o comentário.

- É sempre assim, divertido, a esta época do ano? - O antropólogo tentava quebrar o gelo, puxando assunto.

- Amigo… Não estou entendendo o que está dizendo. - Respondeu o vigilante.

- Ora essa… A Festa dos Mortos, é sempre assim? Animada? - Insistiu, entregando de volta o livro, sorridente.

- Festa dos Mortos…? Hum, aconteceu há alguns dias. O senhor esteve nela? - Questionou o vigilante, arriscando um sorriso amarelo.

- Mas… Como assim? O que está me dizendo? - Perguntou de volta o antropólogo, agora visivelmente confuso. - O que aconteceu hoje, por acaso não foi a Festa?

- Não… Hoje não teve nada. A propósito, só o senhor esteve aqui. Veja o livro.

O antropólogo, pensando que estivesse sendo alvo de uma brincadeira, pegou o livro de volta e olhou: de fato, a assinatura anterior datava de três dias atrás. Assustado, elevou a cabeça e correu para fora: o cemitério estava vazio, e não havia nenhum enfeite nos túmulos, nem restos de comida nos caminhos, ou qualquer outra coisa que denotasse que houvera uma festa ali, naquele dia. Embasbacado, voltou à pequena sede da zeladoria, e não havia ninguém lá. Nem sequer a velha lâmpada incandescente estava acesa.

Nada. Ninguém. Ao redor, só o som de grilos.

Assustado por aquela situação inusitada, gritou.

E acordou.

***

Despertado subitamente pelo próprio grito, o antropólogo sentia o coração disparar e o corpo inteiro tremendo em calafrios. Nossa! Que susto! E que sonho maluco! Sonho, não; um pesadelo! Uau!

Rindo-se, fez menção de levantar para buscar um copo d’água e acalmar-se um pouco.

- TUM! - O barulho seco de sua cabeça batendo numa superfície sólida acima de si lhe arrancou um doloroso grunhido, obrigando-o a deitar-se novamente. O que seria aquilo? Não conseguia se levantar?

Elevou as mãos e sentiu que havia algo como uma tábua acima de si. Não conseguia ver nada, pois estava muito escuro. Tateou ao redor, e concluiu que estava…

- Encaixotado? Como assim…? Será que estou dentro de um… Caixão?!

Apalpou-se e sentiu que estava trajado em roupas finas. Ao redor, havia flores e tecidos envolvendo seu corpo repousado num caixão de madeira. O ar estava abafado e sufocante, e teve certeza de que estava preso.

- Socorro! Socorro! Alguém me ajude! Me tire daqui! - Gritou, desesperado. Como os sons que emitia não reverberavam nem faziam eco, concluiu que estava enterrado. Engoliu seco e tentou se acalmar, buscando uma resposta. Evocou a memória e, de fato, a última coisa que conseguia se lembrar é de que estivera no avião, a caminho da ilha onde participaria da Festa dos Mortos. Mas… Uma tempestade forte aconteceu, e o avião se descontrolou… E ele não se recordava de mais nada além da gritaria e choro dos passageiros desesperados…

- Será que eu… Morri num acidente aéreo?

Tateou o corpo e parecia-lhe que estava vivo. Decerto, enterraram-no por engano. Resignado, sabia que não tinha chance. Sobre si, uma grande massa de terra impossibilitava qualquer tentativa de fuga. Lágrimas vieram aos olhos assim que começou a sentir o ar faltar. Logo que as convulsões que o levariam à morte começaram, a música e os aromas da Festa vieram a si, cada vez mais intensos, até que ele finalmente deixou seus sofrimentos enterrados naquele caixão, libertando-se para poder celebrar com seus novos e derradeiros vizinhos a Festa no cemitério: o mesmo cemitério que lhe fascinava desde criança, e que o atraiu a embarcar em sua última viagem.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 11/10/2018
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