A VELHA CASA
A VELHA CASA
Lucas sentiu o cheiro poeirento escorregar das tabuas da janela. Seus olhos se penduraram pelo vidro quebrado e ele observou lá dentro por alguns instantes. Estava escuro, mais do que pensara estar, só conseguia enxergar os azulejos marrons manchados de limo e mais a frente alguns moveis cobertos por uma grossa camada de sujeira. Lucas mudou o olhar para a porta de acesso a cozinha, seus olhos se aproximaram de um fogão velho e enferrujado, havia uma barata presa num pedaço de pano velho caído ao lado do fogão, e mais a frente uma dúzia de talheres espalhados, facas, garfos e colheres ensebados.
Marcos forçou as pernas e empurrou Lucas para cima impedindo que caísse sobre ele.
— Vê se não me deixa cair.
Marcos assentiu e continuou segurando suas pernas com o máximo de forças que ainda tinha nelas.
Perto dali, na calçada, um homem usando chapéu preto passou, e quase os viu. Marcos pensou em correr quando o homem pigarreou. Lucas tirou a cabeça para fora da janela e olhou para o rosto vermelho de Marcos.
— O que foi?
— Nada, anda logo.
— Espera.
— Encontrou a bola.
— Acho que caiu mais para dentro.
Devagar é receoso, seus olhos voltaram para dentro da velha casa e pensou ter visto a bola rolando para a cozinha, após o limite de onde conseguia enxergar. Lucas pode ouvir um ronco lá dentro, pensara ter imaginado, mas o som grave ecoou de novo.
— Ouviu isso?
Marcos balançou a cabeça fazendo que não, suas bochechas tinham ganhado cor suficiente para parecerem dois tomates rechonchudos.
O braço de Lucas encostou na tabua ao lado da janela e ele forçou a entrada de metade do pescoço lá dentro, Marcos sentiu seus ombros aliviarem e respirou, com peito pulsando para frente e para trás. Lucas balançou o braço e retirou da frente dos olhos um punhado de teias de aranha, então pode ver a sombra da bola parada talvez dez metros ou menos d´onde estava, ao lado de uma mesa com um dos suportes quebrados que fazia ela tombar para a direita. Vendo a bola ali parada, sentiu-se seguro de caminhar alguns metros e pega-la, segura-la como tinha feito desde que seu pai a comprou a alguns meses atrás numa loja perto de onde trabalhava. A bola era feita de couro, e o pai de Lucas pagará quase oitenta reais nela, ele sabia que não poderia perde-la tão fácil, não para uma velha casa.
Marcos empurrou suas nádegas com o pescoço e os ombros ele tomou impulso, jogando metade do corpo para dentro da janela.
— Toma cuidado cara.
— Tá bom. — Lucas respondeu, e Marcos viu seus pês deslizarem lá para dentro.
Marcos caiu de cabeça no chão da sala quando se inclinou para descer da janela. A dor foi tão grande que quase pode sentir o liquido quente molhar seu rosto, em seguida quando voltasse a mão para a luz veria sangue entre os dedos, mas não foi isso que aconteceu, o rosto de Lucas estava normal, não tão normal, talvez um pouco inchado, mas não tinha começado a sangrar. Lucas assubiu para Marcos de lá de dentro e Marcos assentiu assoviando de novo.
— Pega a bola logo.
Lucas caminhou, um paço de cada vez, quis ser rápido, mas tinha medo do que poderia encontrar se fosse mais para dentro da casa escura. Seus pés começavam a escorregar com a capa de sujeira que havia no chão. O cheiro da casa lhe pareceu familiar e logo relacionou-o com cheiro que sentia do vazo sanitário na sua casa quando ficavam algum tempo sem dar descarga. Ele fechou a boca e apertou o nariz com força, ainda assim precisava respirar, e pensar em respirar aquele ar de cheiro de privada o deixava nauseado.
Constantemente alerta, seguiu o pequeno corredor entre a sala e a cozinha e conforme se aproximava, sentia algo parecido com claustrofobia, as sombras lá dentro riam dele, e ele pensava que elas tiravam sarro dele, pois sabiam que Lucas não teria coragem de se aproximar mais e pegar a bola.
Marcos continuou do lado de fora da casa observando atentamente a rua, eram quase nove horas da manhã, Núbia a vizinha começara a abrir seu salão de cabeleireiro que ficava quase no fim da rua, próximo do bar da Zefá. Marcos ouviu Núbia subir o portão de ferro da garagem, ouviu mais um monte de barulhos repetidos de metal se contraindo e em seguida não ouviu mais nada.
— Vamos logo Lucas, alguém pode ver.
Lucas não quis gritar, então assoviou, um pouco mais forte que antes e tornou a andar devagar na direção da cozinha.
Ele empurrou com os pés alguns pedaços de madeira caídos no chão, jogou-os para o lado direito e viu eles baterem num objeto parecido com um armário, mas sem as portas e as gavetas, estava parcialmente desmantelado e parecia querer tombar na sua direção.
Da posição aonde estava Lucas conseguia enxergar a bola, e mais alguma coisa...
Lucas olhou de novo, mais uma vez e se certificou que seus olhos não estavam vendo coisas. Havia um braço caído no chão, um braço decepado, sendo devorado por vermes nojentos e insetos estranhos. Lucas recuou, mas a bola estava tão perto agora, só bastava esticar a mão. Ele sentiu alguma coisa se aproximar dentro do escuro, e novamente um ronco engasgado perfurou seus ouvidos como alfinetes. Estava com medo, muito medo e precisava sair dali.
— Marcos. — Lucas gritou.
Marcos deu um salto e observou Lucas brevemente por uma das brechas da janela.
Marcos achara que não tinha visto direito, então pulou uma segunda e vez e foi o suficiente para identificar uma sombra próxima de Lucas.
— Tem alguma coisa atrás de você Lucas, saí daí já.
Lucas grunhiu quando o ouviu dizer aquilo e seu pavor tomou mais força do que imaginava. Um grito mudo saiu pela sua garganta e ficou travado lá dentro, sem conseguir sair, ele não queria acordar seja o que havia ali dentro.
Lucas deu um novo passo para trás e alguma coisa caiu do teto no seu ombro. Absurdamente rápido, Lucas só teve tempo do reflexo, de abanar o ombro com força e uma aranha de cinco centímetros caiu no chão, onde ficou parada o encarando, como se quisesse uma revanche. Com um soluço atrás do outro ele voltou até a janela, se segurou nas bordas e deu um salto até manter-se em pé nas beiradas de madeira. Marcos viu o rosto de Lucas voltar para fora, tinha perdido quase toda cor e estava pálido, pálido de medo.
Marcos sorriu e o chamou.
— Desce logo bebezão. Depois eu venho e pego essa bola.
Antes dele se pendurar e descer, uma garra surgiu erguendo-se por trás de seu pescoço, Lucas sentiu o calafrio fresco pairando por sua pele e então um dos dedos daquela coisa apertou sobre sua pele, fazendo um arranhão e depois apertou mais fundo, cravando a unha próximo de sua clavícula.
Lucas gritou e um jato de sangue voou no rosto de Marcos que começou a gritar desesperado. Um dos pés de Lucas se soltou e ele ficou pendurado, com o pescoço sendo erguido por aquela garra peçonhenta e restante do corpo tombando para baixo. Marcos puxou sua perna e ouviu o som lacerando da unha daquela coisa rasgar sua carne.
— Socorro. — Gritou Marcos.
Lucas continuou pendurado até que a garra conseguiu puxar seu pescoço para cima e enfim agarrou sua cabeça. Lucas começou a se debater com a voz abafada por aquela garra imensa que envolvia seus olhos, nariz e boca ao mesmo tempo. Marcos começou a chorar, e correu até a calçada, rápido o suficiente para gritar: tem alguma coisa matando o Lucas. Sua voz saiu como um tiro e quase toda a vizinhança ouviu naquele momento, usou toda potência que um pulmão de doze anos conseguia suportar. De longe observou as pernas de Lucas subirem e desaparecem dentro da janela. Marcos deu mais um grito e correu na direção da janela.
Uma fita de sangue escorria da beirada, escorria numa linha vertical perfeita até o chão.
— Lucas. — Berrou Marcos.
Marcos ouviu Lucas se debatendo lá dentro, ouviu também uma possível luta desigual, um gritinho engasgado e ronco ensurdecedor. Em seguida os sons tomaram um cordial arranjo de mordidas e dentadas, um barulho molhado prosseguiu e depois parou. Marcos não conseguiu ouvir mais nada, seus olhos ficaram compenetrados na janela velha por mais de dez minutos, então alguma coisa arremessou a bola de couro para fora.
Ele a segurou com a mão direita em choque e a suspendeu na frente dos olhos. Havia um naco de carne preso na bola, com um tufo de cabelo sangrento envolta de uma cartilagem amarela que parecia gordura, daquelas que seu pai fritava em dias de churrasco.
A bola tinha um buraco redondo em um dos lados que a fizera murchar rápido. Marcos a deixou onde estava e voltou para rua. Do outro lado da calçada ele continuou observando, por muito tempo, esperando que Lucas estivesse bem, mas Lucas nunca mais saiu daquela casa. E quando foram procura-lo lá dentro, a única coisa que encontraram foi um dente roído e algumas manchas de sangue.