Para onde vai, meu coração?
“Pergunto-me: Que é o inferno! E afirmo ser o tormento da impossibilidade de amar”
Fiódor Dostoiévski
O motorista usava óculos escuros, o que era incomum para aquele dia do ano. Um vento frio e cortante sacudia a cobertura da marquise. O ônibus parou com um barulho rouco e quente. A lataria estava respingada e suja como se tivesse saído de um vulcão em atividade. Bom, de qualquer modo, a volta para casa é rápida como um golpe de canivete.
Não sei por que pensava isso enquanto adentrava e passava o cartão do passe. Sei apenas que o ônibus estava quase vazio para o horário. Seis da tarde. Os trabalhadores deveriam estar voltando de um longo e cansativo dia. Mas, o que se via era uma velhinha com seu guarda-chuva, um adolescente com suas espinhas, um senhor de meia idade e metade do rosto contemplando a tempestade, um vestido floral com uma mulher dentro e eu com todos os sintomas da fome e do tédio.
Atravessei o longo corredor e me sentei no último banco. O ônibus rodava entre o tráfego como uma tênia no intestino delgado de um bípede qualquer. O calor do ambiente e os relâmpagos lá fora transmitiam para o meu corpo um frenesi angustiado. Comecei a sentir um medo que não vinha do cérebro, da razão. Vinha de algum lugar no centro do peito. Era como se meu coração pudesse sentir uma dor, a mais profunda de todas, antes mesmo de ter sido atingido. Uma antecipação da tragédia.
E ela veio. Primeiro, com uma freada brusca que me lançou contra o encosto do banco da frente. O meu nariz comichava e senti descer uma espécie de líquido que só não era sangue porque não tinha cor. No entanto, doía como se houvesse sido extraído de dentro de mim. Antes que eu pudesse organizar algum tipo de pensamento, que também pode ser um tipo de defesa percebi que apenas eu houvera caído e que todos os demais passageiros estavam inertes em seus lugares.
O único que se movia, silencioso e ágil, em minha direção era o motorista. Antes que eu pudesse me mover adequadamente senti sua mão grande e fria em meu ombro. Tentei explicar que estava tudo bem comigo e que podia me levantar sozinho, entretanto algo em seu semblante fechado e furioso me dissuadiu de qualquer explicação. Mesmo assim forcei a subida com as duas mãos no assoalho e os músculos das panturrilhas retesados. Senti o corpo todo tremer e fui tomado de uma vertigem. Sentei-me a contragosto. Ele, o motorista, olhou ao redor. Foi a última vez que o vi de óculos. Foi a última vez que vi qualquer coisa que tivesse algum sentido.
Suas duas mãos estavam em meu ombro. Embora assustado eu não mais tinha medo, nem voz, nem corpo. Portanto, não sentia dor, só agonia. Era como se eu não fosse eu e sim outro. Aquele outro estava diante de mim. Olhava de cima para baixo com dois buracos na cara e olhava ao redor solicitando, pedindo ajuda. E ela veio como uma procissão, um cortejo de três almas.
A senhora com o guarda-chuva postou-se a minha frente. O jovem ficou do meu lado esquerdo e o senhor de meia idade ficou do lado direito. Não se olhavam, nem se falavam. Olhavam para mim. Os três sacudiram vigorosamente suas cabeças como se estivessem saindo de uma piscina. Os óculos voaram de seus rostos, caíram nos assentos e sumiram ou desintegraram, não sei ao certo. Restaram os rostos deformados de cratera. A cara deles era como a superfície da lua.
A seguir, o homem de meia idade me plantou um fenomenal chute no rosto que me fez cair arrastando comigo vários pedaços gélidos e duros dos dedos do motorista. Antes que eu pudesse esboçar qualquer reação a senhora enterrou seu guarda-chuva em um dos meus olhos e, ao mesmo tempo, o jovem espinhento enfiou seu dedo esquálido, que antes estivera cutucando o nariz, na outra órbita ocular. A surpresa eliminou a agonia. Fiquei cego para o exterior, mas com a visão interior pude ver o inominável terror que perpassava o meu corpo.
Permaneci grudado ao assoalho vendo tudo o que antes nunca vira, nem quisera ver. Ficaria indefinidamente deitado se os três não abrissem caminho para a mulher de vestido que se aproximava grave e lenta. Sentei-me em um dos bancos e esperei. Nesse momento já sabia que não tinha nada a perder, nem a ganhar. Portanto, tinha um mar de possibilidades diante de mim.
E ela chegou. Com um gesto ondulante e feminino abriu sua necessaire, procurou entre os pertences e, por fim encontrou. Eu, já intuindo o que me aguardava, abri os braços para facilitar o serviço. Então, ela avançou o punho e golpeou. O canivete entrou suave como se entrasse em uma barra de chocolate. Com um amplo movimento giratório ela abriu um buraco em meu peito. Retirou algo de lá. Algo que pulsava, ou parecia pulsar. Levantou-o até a altura do buraco dos seus olhos e a seguir o jogou pela janela. O que quer que fosse caiu próximo de uma banca de jornal.
Depois de guardar a arma, ela me sorriu maldosamente e eu pude sentir com a cavidade dos meus olhos os buracos que outrora foram os olhos dela. Pareciam, apesar de tudo, chorar. Virou-se para o lado e remexeu outra vez na bolsa. Encontrou e, repentinamente, me entregou um par de óculos. Apesar do estranhamento da situação, voltei para o lugar no qual estava sentado e todos fizeram o mesmo. Lá fora, os relâmpagos clareavam o céu.
O ônibus atravessava a periferia. Quem o olhasse de relance não veria mais que o barulho, a fumaça e o brilho dos faróis. Quem realmente parasse um pouco e se quedasse a meditar à beira do caminho veria um facho de luz ágil e permeado de escuridão.
Aqui dentro, uma paz tumular tomou conta do ambiente. Ninguém falava, ninguém sorria, ninguém sofria ou se alegrava. Todos, inclusive eu, ansiavam por encontrar algum passageiro, qualquer que fosse, para preencher a lotação. Se não encontrássemos hoje, encontraríamos amanhã ou no futuro. Disso eu estava certo, como estava certo que em algum lugar tem sempre alguém fazendo outro alguém sofrer. É para lá que nós vamos...
No outro dia o lindo sol estival bronzeava a pele dos garis e esturricava seis rústicos pedaços de carne, ou algo parecido. Seriam recolhidos com o lixo noturno e levados para o aterro sanitário mais próximo. Talvez sejam comidos por cães, talvez apodreçam ao relento. Agora, para mim nada mais importa.