Defunta

Contam os antigos que, há muitos anos atrás, um homem enfrentou a viuvez bem cedo. Foi de forma repentina, pois tão logo havia casado e sua esposa adoecera de um mal desconhecido. Em menos de um mês, ela faleceu. Como a amava demais, ficou tão abalado que não conseguia se desgarrar dela; por conta disso, resolveu não enterrá-la. Juntou suas economias e, contrariando totalmente o bom senso, contratou um taxidermista da capital, convencendo-o - a muito custo - a empalhar o cadáver.

OK, não preciso nem dizer o quanto isso soou estranho e repugnante aos que ficaram sabendo. Ele, consciente da inevitável rejeição dos demais, procurou envolver a história em segredo, mas não teve jeito: o caso tornou-se conhecido nas redondezas, e causou reboliço.

O pobrezinho estava maluco, coitado.

E assim foi. Ao receber a esposa de volta da taxidermia, assentou-a na única poltrona da casa e manteve-a ali, sempre limpa e bonita, próxima de si. Conversava com ela, cuidava, cantava, penteava seus cabelos, arrumava suas roupas… Enfim, zelava muito por ela.

Mantinha a casa e as cortinas sempre fechadas para evitar a curiosidade dos moleques e futriqueiros, e evitava ir à cidade ou coisa assim. Só saía se fosse para trabalhar em sua plantação, voltando para casa sempre depressa, preocupado se alguém a havia invadido para ver e mexer na esposa empalhada. Graças a Deus ninguém fez isso, pois o povo daqui sempre foi muito ordeiro, sabe. Por mais estranho e macabro que fosse o caso, ninguém tencionou entrar na casa dele - mas muito pelo contrário. Na verdade o povo tinha medo. Ninguém queria visitá-lo, nem mesmo sua família.

Entretanto, conforme a poeira ia baixando, o rapaz foi aceitando a perda da amada, e passou a pensar a respeito daquilo. Acho que sua ficha foi caindo. “Conversava” cada vez menos com a defunta, e começou a sentir necessidade de tocar sua vida pra frente.

Foi aí que a coisa principiou a ficar realmente estranha para ele.

Conforme ia saindo mais de casa, voltando a interagir com o mundo e etc, foi reparando que a esposa ia… Comportando-se de forma diferente. A primeira mudança que ele percebeu foi nos olhos dela. De fato, o taxidermista colocou belos olhos de vidro, muito reais, mas o rapaz achava que eles estavam… Vivos demais, sabe. Em dados momentos parecia que o acompanhavam para onde quer que fosse, e frequentemente se sentia observado.

O próximo passo foi a posição dela na poltrona. Muitas vezes, quando ele voltava para casa mais tarde do que o habitual, reparava que ela estava sentada de um jeito diferente. Numa hora estava meio de lado, noutra levemente reclinada… Isso sem dizer da posição da cabeça, meio torta, pescoço virado… Ele a ajeitava, mas a mulher sempre voltava a mover-se sozinha.

Não preciso nem falar que ele estava ficando mais amedrontado do que enamorado por aquela casca vazia de gente, né. Passava minutos contemplando seu rosto sem vida, pensando no que fazer. Embora fosse ficando cada vez mais consciente da sua morte, ainda não sentia a coragem suficiente de enterrá-la e dar-lhe o devido descanso… Enfim, estava confuso. No ponto de viragem. Só precisava de um empurrãozinho para, enfim, decidir-se pelo mais sensato a fazer.

E isso não tardou a acontecer.

Numa quermesse, por acaso conheceu uma moça de fora dali, que não sabia do caso. E, papo vai, papo vem, acabaram se interessando um pelo outro. Como ela estava nas redondezas só de passagem, trocaram endereços e passaram a corresponder-se por carta.

Foi a gota d’água.

O cadáver “soube” de alguma forma. Sei lá, aquilo não era normal. De algum jeito ficou sabendo, por mais que seu viúvo guardasse isso em segredo, já temeroso de alguma reação dela. Os olhares e movimentos da defunta deixaram de ser uma impressão, passando a ser certezas. Ele a via, de relance, se mexendo. Voltando-se em sua direção conforme ele passava. Movendo-se no assento. De noite, ouvia o barulho da poltrona estalar, como se a mulher estivesse se levantando. Chegava a ouvir até alguns balbucios. Pela manhã, os olhos dela estavam arregalados, e a boca, escancarada; punhos cerrados, expressão retorcida, como se estivesse magoada ou brava. Sempre a aprumava, mas isso repetia-se cada vez mais intensamente no dia seguinte.

Por tudo isso, decidiu o que ia fazer: enterrá-la.

Acordou em certa manhã nublada e arrumou-se para ir à cidade chamar o coveiro e o padre. Enquanto calçava os sapatos, percebia que a defunta tremia-se inteira, e um murmúrio grave saia ininterruptamente de seus lábios entreabertos. Apavorado, mal amarrou os cadarços e, ao dirigir-se para a porta, assustou-se com o barulho de um corpo caindo. Voltando-se na direção do som, viu que a mulher lançara-se ao chão, arrastando-se na direção de seus pés e rosnando seu nome, visivelmente enfurecida. O rapaz, num grito, destrancou a porta e lançou-se para fora como um raio, trancando a defunta em seguida. Desceu correndo o caminho para a estrada que levava à cidade, ouvindo os berros tenebrosos da morta clamando por ele.

Não preciso nem dizer o estado de pavor em que ele ficou, né.

Chegado à cidade, não pensou duas vezes e foi chamar o padre. Não precisou explicar-lhe tudo desde o começo, pois o sacerdote já sabia a maior parte da história, então pulou logo para aquilo que presenciara naquela manhã, sobressaltando o velho. Saíram da igreja correndo e, chamando o delegado de polícia, subiram rapidamente até a casa do viúvo para buscar o cadáver e proceder com seu sepultamento.

Quase chegando lá, mal acreditaram no que viram: uma grossa coluna de fumaça erguia-se da região. Acorreram depressa, pois havia um incêndio em curso. Como não existia outra casa por perto, logo concluíram que era na residência do rapaz. Chegados, não puderam aproximar-se muito, pois o fogo era anormalmente quente. Vizinhos já estavam postados na colina ao redor, observando atônitos aquele estranho espetáculo de destruição. Diziam que o calor era o fogo do Inferno queimando aquele lar desgraçado. O rapaz ajoelhou-se em prantos, sem ter o que fazer. Bom, ninguém tinha o que fazer. Na época não havia bombeiros com hidrantes e mangueiras potentes. Como ninguém podia se aproximar muito para tentar apagar o fogo com baldes, tudo o que puderam fazer foi observar a casa arder até o chão.

E isso não foi o pior. No meio dos sons do incêndio, de vidros quebrando e madeiras caindo e estalando, vez ou outra escutavam um urro de dor animalesco, inumano, que ecoava na região, causando arrepios em todos que ali estavam. Nenhum dos presentes nunca mais se esqueceu disso.

Aquilo foi demais para o rapaz. Retirado dali em choque, foi levado pelo delegado e pelo padre até a cidade. No dia seguinte, soube-se que ele foi embora, para a casa de parentes. Nunca mais voltou para sua antiga morada. E ninguém mais ouviu falar dele. E ninguém também encontrou os restos mortais da falecida quando as cinzas da casa esfriaram. Seu corpo desapareceu sem deixar vestígio.

Hoje a cidade cresceu, aquelas terras foram loteadas e há um grande bairro residencial lá. Mas há quem diga que ainda se ouvem gritos na região quando é aniversário do estranho incêndio. Por conta disso a lenda continua viva, e ninguém daqui a esquece.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 21/09/2018
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