SEGREDOS NUMA CAIXA

Victor, como todo menino de 9 anos, era curioso. Porém as curiosidades que tinha é que não eram comuns à todas as crianças. Ele se interessava pelas coisas místicas, pelos grandes mistérios do universo, por magia e a sabedoria dos povos antigos. Compartilhando com seu pai, Evandro, todos esses interesses, ele cresceu num mundo vasto de descobertas e mistérios adoráveis que iam sendo um a um revelados. Porém teve um mistério ao longo de sua vida que ele não fora capaz de revelar e é sobre este mistério a nossa história.

Só é preciso saber que com 9 anos, voltando de bicicleta da casa de seu melhor amigo Ariel, Victor topou pela primeira vez com o objeto misterioso. Foi quando caiu um tombo, tamanho o impacto causado pela roda da bicicleta ao prender e algum obstáculo. Vinha rápido e fazendo manobras, não prestando muita atenção no caminho. Victor ficou caído e gemendo de dor. Teve medo de ter quebrado a perna, por isso não se mexia. Chorava e tentava limpar a boca de boa quantidade de poeira. Só que ao perceber no que a bicicleta tinha batido, teve o ímpeto heroico de levantar e já não sentiu dor. Percebeu que podia se manter de pé, o que descartava uma perna quebrada. O fascínio causado pela coisa misteriosa o induzia, anestesiando a dor. Era uma quina de um objeto, uma coisa qualquer apontada para cima, formando um triângulo.

No fundo ele sabia que significava alguma coisa e que seria grandiosa e que estava ali para possuí-la, ser seu dono. Com uma longa e afiada pedra ele começou a escavar ao redor do objeto. Era um trabalho árduo, o solo era duro e pedregoso, difícil de perfurar. Mas depois de uns 20 minutos na laboriosa tarefa, finalmente desencava o objeto, tendo-o inteiro ali revelado na sua frente. Uma caixa, que parecia muito antiga, ainda não era tão visível debaixo de todo aquele barro que a cobria, mas deduzia-se uma bela caixa de madeira adornada e muito bem trabalhada por um talentoso artesão. Amarrou a caixa no bagageiro da bicicleta e pedalou. Pedalou mesmo com aquela roda da frente torta, pois queria chegar logo e ver a caixa. Seus olhos chegavam a brilhar nas vezes em que olhava para trás e via a sua caixa, sua caixa.

Chegando em casa teve o cuidado de entrar pelos fundos, descendo pelo porão. Entrou quieto, olhando ao redor, não queria ser notado. Foi para um quartinho no porão da casa, onde tinha uma bancada e ferramentas, um velho cortador de grama no canto. Pôs a caixa sobre a bancada e pegou uma estopa velha, mas consideravelmente limpa e começou a desvendá-la. De fato, era uma bela caixa. Em sua tampa ilustrava-se magnificamente um rei em uma sala, cercado de mulheres e seu séquito. Em posse do rei, no centro de tudo, sobre uma almofada, uma caixa que o rei abria revelando seu interior somente para si, longe da vista dos intrometidos. No ombro esquerdo do rei, uma aranha com as presas armadas e pronta para picá-lo, mas claro, este detalhe pormenorizado da picada, era impossível de se perceber e estava mais na cabeça inventiva de Victor. Fechando o quadro, emoldurando a tampa, um dispendioso e paciente trabalho manual, onde se destacavam madressilvas e romãs, tendo em sua totalidade os espaços preenchidos por ramos de folhas de freixo e espinhos de roseiras. Na frente, além dos frondosos detalhes, um livro aberto sobre o qual uma mão se estendia e no centro da mão um triângulo invertido. A fechadura era uma dourada e sinistra aranha, que se encaixava perfeitamente na convexidade da tampa, com suas patas longas todas bem articuladas e dispostas. Do seu orifício na extremidade do abdômen a fechadura. Seu ângulo obrigava o uso da chave em pé, já que era perpendicular ao corpo da aranha e à caixa. A riqueza impressionante de detalhes fascinava Victor, que contemplava a caixa maravilhado. Só o que o desviou daquele delírio tão agradável e hipnótico foi perceber que ela não tinha chave e não poderia abri-la.

Sua esposa obviamente sabia que não podia mexer na caixa ou sequer perguntar sobre ela. Era um segredo que ele guardava à sete chaves e ela muitas vezes se perguntava: “O que há naquela caixa”? De tanto pensar nisso passou a sofrer e se abater profundamente. Já não conhecia o Victor de antes, com o qual tinha se casado há 10 anos. Sim, quando o conheceu já tinha a maldita caixa, mas era ainda o Victor alegre, brincalhão, que fazia piadas e adorava fazê-la sorrir. Eram felizes. Daí, depois de receber a primeira promoção no serviço e subir de cargo, uma crescente e violenta ambição passou a dominá-lo. Victor preocupava-se somente com o ter e deixou para trás todas as outras coisas que realmente importavam. Não queria filhos, o que era um sonho muito desejado por Miriam, além de tantas outras coisas que os dois planejaram juntos e que agora só pareciam ter valor para ela.

Victor colocava alguma coisa dentro da caixa, era um par de brincos, brincos da sua mulher e os colocara de forma cuidadosa, quase cerimonial, depois do que pronunciou umas palavras quase num sussurro: “Invoco que me reveles um segredo da pessoa à qual esse objeto pertence. Segredo esse que é”... (traduzido do persa antigo) e então terminava a sentença contando o segredo em sua própria língua mãe: “Revele-me, ó conhecedor dos mistérios dos mundos habitáveis e inabitáveis, se a dona deste objeto trai o seu marido. Porque é só de interesse próprio que o quero que reveles e por ser seu portador assim ordeno”. Logo após dizer tais palavras a caixa se fechou sozinha e de forma brusca e ele deixou seu escritório, não antes de colocar a caixa no seu devido esconderijo, dentro de um cofre, atrás de um dos quadros que formava sua galeria de arte. Saberia em breve se sua angústia tinha uma razão verdadeira.

Lustrava seus sapatos com esmero. Tinha empregados para tais serviços, mas algumas coisas, preferia fazer ele mesmo. Pois eram coisas em sua maioria que lhe lembravam a infância e o pai. O dia, a noite, a chuva, o estio. Eram outros tempos, mas tudo era uma mesma sensação e doía.

Aquela noite quase não dormiu olhando para a caixa. A deixara ali ao seu lado sobre o criado mudo e levantava-se, ia ao banheiro, tomar água, ouvindo qualquer barulho se metia para dentro do quarto, pois sabia que viriam brigar. Não sabia como solucionar o problema da chave e sossegou diante uma ideia fantástica. Contaria a seu pai, ele saberia o que fazer. Juntos abririam a caixa. E esperançoso, com aquele sorriso cativante de criança, dormiu.

A manhã dominical era reservada às obrigações com Deus e Victor como, nunca tinha feito, acordou antes de todos e colocou sua melhor roupa, digo, sua melhor roupa das roupas de ir à missa. Sentado na cadeira alta da bancada, com as pernas balançando, as mãos cruzadas no colo, esperava. Quando acordaram não seguraram as risadas. Adele, sua mãe, ao vê-lo, admirando-se e com as mãos no rosto largou um estrambólico, “Meu filho lindo. Que gracinha ficou. Parece um manequim de vitrine”.

“O que mãe? Manequim de vitrine? É sério isso”? e seguramente sabia que não podia evitar a bomba que viria de sua irmã adolescente problemática Ana, “Ah, moleque! Vocês vão se arrepender. Isso não é de graça não, tem alguma coisa. Tá aprontando né”?

E revirando os cabelos do irmão Ana completou sua troça e sentou-se à mesa do café com o celular e os dedos ávidos por teclar prontos para a ação. O pai,

 

Evandro, que chegou depois, apenas observou e olhou daquele jeito que os dois conheciam, cumplice, me conta depois, dos amigos que não precisam dizer o que estão pensando um para o outro, simplesmente se olham e sacam.

A missa pareceu durar uma eternidade. Victor ansiava por aquelas palavras mágicas: “Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe”. Nunca esperou tanto por elas até aquele momento. E quando finalmente a missa acabou ele saiu correndo. A capelinha pequena de madeira não demorava a esvaziar-se e não eram poucos fiéis, era uma cidade pequena mesmo, 15 mil habitantes e ali na paróquia todos eram cristãos praticantes e devotos. Victor arrancava a grama verde da colina da capela sob seus pés ligeiros. Procurava o pai, que estava conversando. Parou assustado, ficou quieto em respeito, para terminarem e poder falar. Ah, mas aquela conversa também parecia não ter fim, “Por Deus”! – Pensou.

– Pai, pai, escuta!

– O que é garoto? Não me puxa! Parece que vai tirar o pai da forca!

– Pai. Temos que ir pra casa. Eu quero te mostrar uma coisa. É importante pai, você tem que me escutar.

– É claro, vamos falar sobre isso. Mas vamos almoçar na casa da sua avó hoje. Domingo, né? Você já sabe disso! – E cruzando os braços Victor fez aquela cara de contrariedade. Apertando os beiços e franzindo o cenho. O pai o segurou pelo ombro e disse: “Entre no carro, garoto”!

Sapatos brilhando, roupa passada, cabelo penteado, Victor alinhava sua gravata. Foi até o cofre e tirou a caixa. A depositou delicadamente sobre a cômoda do quarto e olhou para ela por um instante antes de abri-la e ao abrir sentiu em sua respiração, em seus poros, toda a magia acontecendo. O som que não era a voz humana, mas uma sussurrante, aquosa voz, tremulante e ainda assim vibrante, forte. A caixa revelaria então: “ Tal esposa amante não possui. Mas convém cuidado, esquecida ela está, carente assim logo o lugar do marido, algum outro irá tomar. Ela se lembra de coisas que o marido já esqueceu e isso a faz chorar. Se quer sua vida de volta é melhor ele a tomar pelas rédeas e a segurar”. Sim, ficou claro para ele. Isso a caixa nem precisava lhe dizer. Mas as suspeitas pela mulher tinham de ser confirmadas e isso a caixa respondeu. Depois de fechar-se sozinha como de costume, tornou-se novamente uma caixa inanimada e simples como qualquer caixa. Victor esvaneceu aqueles pensamentos iludidos, nutriu seu espírito das memórias mais felizes em que pode pensar e foi para a cozinha, deu um tórrido e demorado beijo em Miriam e no trabalho foi simpático, extrovertido e ainda produtivo. A caixa tinha esse poder, ela poderia deixar tudo bem, mas também poderia acabar com tudo, revelando coisas que talvez fosse melhor não saber. Mas era difícil você ter um poder assim nas mãos e saber quando deveria usar ou não.

– Vamos dar uma olhada. Deixa-me examinar. – O homem, dono de uma loja de antiguidades no centro da cidade, fazia uma investigação cuidadosa na caixa usando um monóculo. Então batia na madeira com o nó do dedo indicador e finalmente voltou sua atenção para a aranha que compunha o fecho.

– O que vocês têm aqui é um objeto muito especial. Arrisco dizer que é do século XIX antes de cristo, do império medo persa, ou antes até, é difícil identificar, há diferenças de estilos. Por exemplo, a aranha, ela destoa do resto, como se fosse colocada depois, talvez para assustar a pessoa que encontrasse a caixa. Vamos ao que interessa, essa tranca, uma fechadura muito complexa. Eu nunca vi nada parecido em todos esses anos de profissão. Terei que olhar com mais calma. Voltem amanhã. Vocês vieram tarde, já vou fechar. Amanhã é sábado, não tenho muitos clientes, poderia dar mais atenção ao artefato intrigante de vocês.

– Pai, aquele homem da loja me dava medo. O senhor viu o que jeito que ele olhava pra caixa e o jeito que falava? Parecia de outro mundo, maior bizarrice.

– Meu filho, você é muito imaginativo. Mas eu percebi mesmo que o sujeito era meio estranho. Ele não me passou muita confiança. Vamos amanhã e não sairemos de perto dele até que abra a caixa. Fechado?

– Sim! – E bateram as mãos no ar.

No outro dia bem cedo, antes da loja de antiguidades abrir já estavam lá. O homem os encarou com displicência e riu debochado. – Vocês querem mesmo abrir essa caixa. O que acha que vai encontrar garoto? Um tesouro?

– Só quero abrir moço, depois a gente vê, né pai?

– Isso aí, cara! – Confirmou Evandro piscando para o filho que retribuiu sorrindo.

O Homem ficou no seu espaço dentro da bancada, um espaço exíguo com uma mesa pequena e uma cadeira. A loja tinha os mais variados objetos antigos: vitrolas, malas, rádios, móveis, aparelhos científicos, domésticos e até mecânicos. Os dois já tinham olhado tudo que se tinha pra olhar na loja até que ouviram um clique e rapidamente os dois juntos foram na direção do homem, que voltou-se para eles com a caixa em mãos.

– Senhores, a caixa está aberta. Quem quer fazer as honras? – Pai e filho se olhavam até que Evandro disse:

– Claro que você né, filho? Vai lá! – Nervoso Victor abria a caixa devagar, querendo desfrutar um pouco daquele suspense antes que uma revelação brusca acabasse com o encanto do momento, mas ao abrir eis que a caixa estava completamente vazia.

– Bom, sinto muito garoto. Mas a caixa vale um bom dinheiro. Se mudarem de ideia e pensarem em vender voltem. Terei prazer em recebe-los.

A tristeza de Victor diminuía ao perceber na caixa, depois de aberta, um sortilégio. Ele percebeu que ao abri-la ela sussurrou e o som rebombou no seu ouvido como uma campainha ou um sino, que avisa de alguma coisa. E ali começou sua obsessão pela caixa, muito mais grave que o fascínio que já alimentara. Guardou as coisas mais caras a ele dentro da caixa, estreando-a com sua coleção de figurinhas de futebol e quando acordou e abriu a caixa teve a revelação do que a caixa era capaz de fazer. A caixa falou naquela nota mágica entre o som da fala humana e dos anjos, entre um sussurro e um grito, diluindo palavras foneticamente como açúcar se dissolve na água. E no seu repertório a descrição completa de todos os jogadores daquela coleção e tudo o mais que ele perguntasse, referente ao futebol.

Victor continuava firme no seu propósito de ser um bom marido, um funcionário exemplar. Mas algumas coisas passaram a incomoda-lo bastante. Como a promoção de Jairo, seu colega de trabalho. Victor também disputava a vaga e foi Jairo que a conseguiu. Ele tinha de fazer alguma coisa a respeito e sabia o que era. Esperou Jairo descuidar por um segundo, foi até sua mesa e sem que percebesse pegou seus óculos e sorrateiramente os enfiou no bolso depois do que iniciou a conversa, para despistar. Na manhã seguinte a caixa lhe contara o que precisava saber e Victor, usando de chantagem fez Jairo renunciar ao cargo. Nada era mais importante para Jairo que aquele emprego e se soubessem que estava se envolvendo com uma funcionária da empresa, ainda subalterna sua, seria demissão imediata. E assim Victor conseguiu mais uma vez. E as férias a caminho, planejou uma viagem com sua esposa Miriam. Quando chegou em casa não encontrou a mulher na sala, nem no quarto. Então foi ao escritório, ao chegar no corredor percebeu que a porta estava aberta, o que o alertou. Um assalto, pensou, voltou pro quarto, pegou sua arma que escondia na prateleira de cima do guarda-roupas. Foi devagar, até respirando baixo. Ao chegar à porta segurou na maçaneta e abrindo-a prontamente gritou empunhando a arma: “Parado! Larga isso agora”! e ao se deparar com sua própria mulher na sua mesa, com a caixa na mão, caiu de joelhos transtornado. Mãos no rosto, a boca aberta, faltava-lhe o ar, o chão. Miriam parecia querer dizer algo mas não conseguia até que enfim articulou essas palavras: “Isso a caixa não te disse que aconteceria”? E então caiu sobre a mesa, morta. Victor correu para acudir a mulher, mas era tarde demais. Ficou deitado sobre a mesa chorando abraçado com a mulher morta. Foi quando viu a aranha descendo do ombro direito dela e a picada ali mesmo no ombro e a caixa, onde estava? Ali, tinha de se certificar. A caixa sem fecho, a aranha robusta de ouro desaparecera. A maldita caixa tirou-lhe tudo na medida em que falsamente parecia lhe dar. Com raiva e chorando jogava a caixa no chão, na parede, chegou a pisar em cima, nada a podia quebrar. Foi até a caixa de ferramentas e pegou sua marreta. Marretava a caixa com toda a sua força e a caixa continuava intacta. A maldita caixa intacta e seu coração estilhaçado.